10 anos da PEC das Domésticas e a urgência de um direito do trabalho decolonial
POR HELENA MARTINS DE CARVALHO | CARTA CAPITAL
No dia 2 de abril de 2013, foi promulgada a Emenda Constitucional n.º 72, decorrente da chamada PEC das Domésticas. Trata-se de importante conquista para a categoria, que merece e deve ser celebrada. Ainda há, no entanto, muito o que avançar.
As mulheres representam 91,4% das pessoas no trabalho doméstico no Brasil, das quais 67,3% são negras. A maioria é responsável pelo sustento de sua família, e recebe menos do que o salário mínimo. Além disso, mais de 75% das trabalhadoras domésticas são informais.
Esse percentual alarmante de informalidade deve-se a múltiplos fatores, entre eles o empenho da elite em driblar a legislação trabalhista e o discurso da autonomia, microempreendedorismo ou parceria, por meio do qual frauda-se uma relação diagonal, travestindo-a de pretensa horizontalidade.
A Lei Complementar n.º 150/2015 regulamentou tais práticas nefastas ao flexibilizar um dos mais centrais institutos do direito do trabalho, o contrato-realidade, transferindo ao empregador o poder de definir o enquadramento jurídico da relação no caso de trabalho doméstico executado em periodicidade semanal inferior a três dias.
Trata-se de figura jurídica anômala e incompatível com o sistema protetivo trabalhista, que estabelece, para reconhecimento da situação fática de uma relação de emprego, tão somente o preenchimento dos elementos continuidade, subordinação, onerosidade e pessoalidade.
Desse cenário, decorre uma crescente precarização estrutural do trabalho, bem como a marginalização de milhões de trabalhadoras da proteção social, não obstante empenhem sua força de trabalho em prol do sistema de acumulação capitalista, sendo indispensáveis para que a classe média possa ocupar postos considerados produtivos na divisão social do trabalho.
No Brasil, milhões de mulheres negras acordam todos os dias antes do nascer do sol. Percorrem longas horas de transporte público de manhã cedo, a fim de deixarem pronta a mesa do café antes que a classe média possa se levantar. Após limparem os banheiros, lavarem a roupa, prepararem a comida, retirarem o lixo, cuidarem de crianças, idosos e animais de estimação, enfrentam mais longas horas de retorno às suas casas, onde chegam esgotadas e sem forças físicas para cuidarem de si ou dos seus.
Nesse contexto, ao Direito do Trabalho é frequentemente atribuída função civilizatória. Mas o que pode ser considerado civilizatório, afinal?
Segundo o Dicionário Houaiss, civilizar significa “tornar cortês, civil, bem educado”; “converter ao estado de civilização”. O termo civilização, por sua vez, designa o “conjunto de aspectos peculiares à vida intelectual, artística, moral e material de uma época, de uma região, de um país ou de uma sociedade”.[2]
Trata-se, portanto, de um conjunto de valores altamente variável, a depender da subjetividade coletiva de grupos de poder. Sua utilização como ferramenta discursiva, ao tempo que fundamenta ideais progressistas, humanistas e inclusivos – como os de dignidade da pessoa humana, justiça social e centralidade do valor-trabalho –, serve também de instrumento ao colonialismo, ao patriarcado e ao racismo.
Historicamente, a necessidade de “civilizar” culturas, corpos, afetos e existências tem sido fundamento para as mais cruéis formas de violência.
A cientista política Françoise Vergès, problematizando a expressão, refere-se ao feminismo civilizatório como um movimento burguês branco, transformado em empresa de pacificação e absorvido pela agenda humanitário-liberal.
Nesse contexto, é possível afirmar que a instrumentalização do direito para perpetuação das estruturas de dominação social faz parte da estratégia de consolidação daquilo que grupos dominantes consideram civilizado: a manutenção pacífica do estado das coisas.
Considerando as diversas formas de opressão que atravessam as trabalhadoras domésticas, é preciso pensar sua proteção jurídica sob perspectiva interseccional, a fim de que o direito seja, de fato, instrumento de emancipação, e não de legitimação de opressões.
A garantia de equidade de gênero no mundo do trabalho ultrapassa – e muito – o acesso a cargos de gestão e a igualdade salarial. Embora tais debates sejam importantes, trata-se de discussões essencialmente brancas, uma vez que as funções desempenhadas por mulheres negras estão muito bem delimitadas na divisão social, sexual e racial do trabalho: trabalho de limpeza e de cuidado. Como pretender equiparação com homens, se eles não desempenham significativamente tais atribuições?
O trabalho doméstico é atravessado por uma série de marcadores. Opressões estruturais e sistêmicas de classe, gênero e raça somam-se a uma cultura elitista escravocrata e ao estigma do trabalho de limpeza, tão necessário quanto invisibilizado.
É preciso, portanto, ancorar a regulamentação do trabalho doméstico em política decolonial, incorporando expressamente não apenas a luta feminista e antirracista, mas a luta contra o neoliberalismo econômico, o colonialismo cultural, o eurocentrismo histórico e o imperialismo geopolítico. A luta por direitos de mulheres negras, povos originários, pessoas com deficiência, população LGBTQIA+, imigrantes, sem o que uma sociedade não se pode pretender verdadeiramente democrática.
Certo é que ou constrói-se efetivamente um direito do trabalho interseccional, em todo o seu potencial decolonial, ou tornamo-nos corteses, civis e bem educadas, aceitando um direito do trabalho meramente civilizatório – na pior acepção do termo.
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Fonte: Carta Capital
Data original de publicação: 05/05/2023