5 romances brasileiros que tematizam relações de trabalho

Rafael Lucas da Silva

Por Rafael Lucas da Silva | Nexo Jornal

A convite da seção ‘Favoritos’, o pesquisador Rafael Lucas da Silva indica cinco livros que colocam o trabalho no centro de suas narrativas

O trabalho é um assunto sinuoso e fugidio na literatura brasileira   contemporânea. Muitas narrativas literárias não inserem personagens em contextos profissionais nem destacam suas relações de trabalho. 

A pesquisadora Regina Dalcastagnè possui dados estatísticos que revelam uma drástica ausência do trabalho como fundamento para escritores e escritoras construírem imagens, personagens, enredos e estruturas narrativas, como se o trabalho não fosse considerado um tema digno de representação literária. É instigante refletir sobre como essa falta de representação pode revelar injustiças e opressões presentes na própria estrutura social brasileira.

Reuni nesta lista cinco romances brasileiros contemporâneos, publicados na última década. Essas obras inserem o trabalho no centro da construção da narrativa, das personagens e das suas relações interpessoais. São romances que possibilitam refletir e repensar a relação entre trabalho e cultura. Desse modo, contradizem um senso comum que ainda acredita que a classe trabalhadora é somente o proletariado industrial e ficcionalmente demonstram  que o trabalho vai além de apenas uma ocupação – e que, na verdade, contribui para a formação da personalidade dos indivíduos e constitui modelos de subjetividade.

Passageiro do fim do dia

RUBENS FIGUEIREDO (COMPANHIA DAS LETRAS, 2010)

No livro, Pedro sai do centro da cidade rumo a um bairro periférico para passar o fim de semana com sua namorada, Rosane. Durante essa longa viagem, a construção da narrativa é guiada por suas memórias e associações mentais. Apesar da aparente desordem do fluxo de consciência, as relações de trabalho perpassam toda a narrativa, como um elemento coesivo. A história de Rosane é emblemática. Ela se submete a condições de trabalho precárias, sem horário fixo, obrigada a fazer horas extras não remuneradas e a enfrentar mudanças de turno constantes que a obrigaram a abandonar os estudos. Ao arrepio da lei, mesmo tendo a carteira de trabalho assinada, a ela não é garantido nenhum direito trabalhista. E quando precisa sobreviver a partir de uma dinâmica de informalidade, enfrenta grandes dificuldades para se inserir novamente no mercado de trabalho formal.

De gados e homens

ANA PAULA MAIA (COMPANHIA DAS LETRAS, 2013)

A narrativa focaliza a experiência cotidiana de Edgar Wilson, personagem que exerce a função de atordoador em um abatedouro.  Ele e os demais personagens centrais, colegas de trabalho, residem em um alojamento na própria fazenda onde fica o abatedouro. O espaço é de confinamento, demarcando desde o início a ausência de autonomia. Desde a colonização, a pecuária é uma atividade responsável por um contingente de existências condenadas ao descarte, empregadas apenas residualmente. As marcas da desigualdade estão impregnadas no perfil histórico do trabalhador que lida com gado.

É possível perceber que Edgar Wilson é um sujeito sem horizonte de integração ao mercado de trabalho formal, por isso a sua trajetória é um desafio, que tem correspondência no plano histórico-social e apreende um dilema da estrutura socioeconômica brasileira contemporânea.

Solitária

ELIANA ALVES CRUZ (COMPANHIA DAS LETRAS, 2022)

O livro retrata a experiência cotidiana do trabalho doméstico e se centra  na história de duas personagens, Mabel e Eunice, mulheres negras. Eunice é empregada doméstica no luxuoso condomínio Golden Plate, onde também reside com sua filha, Mabel, no quarto de empregada.  A trama se desenvolve no condomínio, e cada capítulo alude a um de seus espaços: cozinha, quarto de despejo, área de serviço, sala de estar e escritório. Espaços nos quais Eunice enfrenta uma rotina de trabalho sem férias, folgas ou fins de semana. 

As questões raciais e as desigualdades sociais são atreladas à experiência do trabalho, que assume dimensão importante na construção da narrativa. Desvalorização, precariedade, acúmulo de função e um tratamento que relega as personagens à subalternidade, características historicamente reconhecidas na reprodução dos serviços domésticos na sociedade brasileira. 

Inferno provisório

LUIZ RUFFATO (COMPANHIA DAS LETRAS, 2016)

Esta narrativa é povoada por uma vasta gama de personagens trabalhadores rurais, operários, desempregados, pequenos comerciantes e trabalhadores informais. Suas vozes são trazidas à tona com uma sensibilidade que capta as nuances de suas lutas cotidianas. Ruffato se vale de um foco móvel para observar essas personagens, formando na obra um mosaico complexo de histórias individuais que colocam em questão certas irresoluções histórico-sociais através da dramatização de impasses nos processos de construção de uma sociedade salarial.

O olhar crítico que o autor dedica à matéria do trabalho nesta obra traz, retrospectivamente, na construção da narrativa, dilemas da urbanização e modernização da sociedade brasileira nos últimos 50 anos de história. 

Alguém para amar a vida inteira

RONIWALTER JATOBÁ (POSITIVO, 2015)

A narrativa  conta a história de Jacinto e Emília, que se conhecem enquanto trabalham em uma fábrica. Ambos são filhos de operários cujos pais migraram do interior da Bahia para São Paulo no final da década de 1950. O romance problematiza o imaginário de ascensão social das personagens, que inicialmente acreditavam que a migração para São Paulo possibilitaria uma melhora da condição de vida. A relação amorosa entre os protagonistas é uma busca afetiva de amparo contra as experiências cotidianas de humilhação e precarização das relações de trabalho.

Rafael Lucas Santos da Silva é doutor e mestre em letras, na área de estudos literários, pela Universidade Estadual de Maringá. Participa do grupo de pesquisa “Aplicação do pensamento de Slavoj Žižek na análise literária e em outras artes narrativas” (CNPq). Dedica-se à investigação das relações entre literatura e trabalho e das relações entre estética e política.


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Por Rafael Lucas da Silva | Nexo Jornal
Data original de publicação: 26/07/2024

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