Trabalhadores de Apps em Cena: Raquel Balbueno
Raquel Balbueno é motorista e entregadora de plataforma digital em Porto Alegre-RS. Administradora do grupo #SonoZero.
Por Daniele Barbosa | Jornal GGN
Com a academia, mas para além dela! É assim que continua a próxima etapa da coluna Trabalhadores de Apps em Cena, iniciada em 2021. Além dos acadêmicos de diversas áreas do conhecimento, em 2022, ampliaremos o diálogo com juízes, procuradores e advogados, uma vez que a luta contra a precariedade politicamente induzida[2] deve implicar também os que atuam na Justiça do Trabalho no Brasil.
Busca-se, com esta coluna, fazer com que as vozes das trabalhadoras e dos trabalhadores de plataformas digitais compareçam à cena principal em um constante questionamento das formas restritivas por meio das quais a esfera pública vem sendo acriticamente proposta[3] pelo enquadramento da grande mídia[4]. Dando continuidade ao projeto[5], convidei para a formulação de uma pergunta: Danieli C. Balbi, Grijalbo Coutinho, Ivan Garcia, Marcelise Azevedo, Marildo Menegat, Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Rodrigo Carelli e Sayonara Grillo. Nas entrevistas deste mês, “nova forma da contradição entre capital e trabalho”, “trabalho por aplicativo”, “algoritmo”, “formação popular”, “metamorfose ou colapso do mundo do trabalho”, “formas de organização e de luta”, “direitos trabalhistas” e “gênero e trabalho” serão alguns dos temas abordados.
A construção coletiva das entrevistas é também uma forma de resistirmos à racionalidade neoliberal. Christian Laval e Pierre Dardot, em A nova razão do mundo, afirmam que “é mais fácil fugir de uma prisão do que sair de uma racionalidade, porque isso significa livrar-se de um sistema de normas instaurado por meio de todo um trabalho de interiorização”[6]. Segundo os teóricos ainda, para uma resistência à racionalidade dominante, é necessário “promover desde já formas de subjetivação alternativas ao modelo da empresa de si.”[7]. Na esteira dessa reflexão, em vez de se fortalecer aqui uma lógica da concorrência, da destruição dos laços sociais, da maximização do desempenho individual, a ideia foi buscar, neste agir juntos, com as entrevistas sendo produzidas coletivamente, uma outra maneira de nos relacionarmos.
A entrevista de hoje é com Raquel Balbueno.
Raquel Balbueno
Motorista e entregadora de plataforma digital em Porto Alegre-RS. Administradora do grupo #SonoZero.
DANIELI C. BALBI: De acordo com a sua avaliação, o conjunto das trabalhadoras e trabalhadores de aplicativos tem consciência de que a vulnerabilidade de suas condições de trabalho se relaciona às questões mais gerais, resultado da nova forma da contradição entre capital e trabalho e da necessidade que o capital tem hoje de criar condições precárias ao exercício desse trabalho, retirar direitos e, assim, deprimir o valor da força de trabalho?
Sim. Eu acredito que grande parte da maioria dos motoristas e entregadores hoje, eles têm consciência disso, tá. Eles têm consciência que eles tão tendo os direitos suprimidos. Mas hoje, com a economia da forma que as coisas estão indo, que cada vez existe menos trabalho formal, tá, essas pessoas, elas não estão vendo outra saída a não ser vir pro aplicativo, né, pro aplicativo, tanto de transporte quanto de entrega, pra tentar levar o básico do sustento pra família. Então, essas pessoas entendem que elas estão tendo os seus direitos cortados. Só que elas não estão encontrando outra forma, porque não existe. Tanto no mercado formal quanto em qualquer outra área de trabalho autônoma, está cada vez mais difícil as pessoas se manterem por causa da crise econômica que está se formando no país, né, que já se formou, já se instaurou. Então, o que que acontece? Todas essas pessoas migram, né, pros aplicativos, porque veem que é uma forma fácil. Tu só precisa ter um meio de transporte, né. Ou carro ou moto, que seja, pra que tu comece a trabalhar. Tu pode começar a trabalhar imediatamente depois da aprovação, né, do teu perfil no aplicativo. Então, essas pessoas estão sendo praticamente forçadas a migrar pra esse tipo de trabalho, mesmo estando cientes que todos os seus direitos estão sendo suprimidos.
GRIJALBO COUTINHO:O que levou você a escolher o trabalho por aplicativo?
O que acontece? Eu tenho dois filhos pequenos. Quando eu comecei no aplicativo, a minha filha tinha seis anos e o meu filho estava quase completando dois anos. Eu não queria que eles ficassem em escolinha em tempo integral. E eu nem tinha condições de colocar os dois numa escola integral, né, devido aos altos custos. Então, o que que eu fiz? Eu ficava em casa, durante o dia, com eles, né, pra evitar que eles fossem à escola em tempo integral, né. E, à noite, quando o pai deles chegava em casa, cuidava deles. E eu trabalhava durante à noite. Então, a gente… era um revezamento. E o único trabalho que eu encontrei, né, que adaptaria esses horários de forma perfeita e que eu poderia ir para a casa o horário que eu quisesse, qualquer coisa que me chamassem ou que a criança estivesse doente e precisa da mãe, eu vou sem problema nenhum. Eu não preciso pedir folga ou não preciso explicar o porquê eu estou indo para casa. Eu simplesmente iria. Então, foi uma forma, pra mim, na época, viável, né, pra que eu pudesse ter essa liberdade de estar próxima aos meus filhos e também ter uma renda. Só que, na época que eu comecei no aplicativo, há quatro anos atrás, era outra realidade. Nós tínhamos outra realidade. A gasolina, na época, era 3,75. Hoje nós estamos pagando quase 7,00 reais a gasolina. E o preço do aplicativo que ele nos pagava, na época, era maior do que o aplicativo paga hoje pra gente. Então, era uma realidade totalmente diferente. E, naquela época, sim, o aplicativo era muito viável. Hoje em dia, né… e daí que a gente vê que acontece com todo mundo. A gente acaba ficando preso e escravo do aplicativo, por quê? Porque tu assume dívidas, né. Daí tu compra carro, faz seguro. Tu tem todo um investimento em volta do teu veículo e tu acaba ficando escravo daquela dívida. E aí tu não consegue mais sair do aplicativo, porque é inviável, entende? Mesmo a gente tendo os ganhos reduzidos em mais de 50%, né, devido à “suba” de tudo, tanto de gasolina quanto de manutenção, quanto das despesas básicas de casa, a gente ainda está refém dos aplicativos.
IVAN GARCIA: Os algoritmos do aplicativo criam um sistema de recompensas e punições (“sticks & carrots”) que estimulam, como num jogo (“gameficação”), que o motorista se direcione para o local de maior demanda, no momento em que ela se forma. Caso o motorista pare, por exemplo, para almoçar, a empresa envia diversas mensagens estimulando o motorista a voltar a rodar. Por outro lado, além de uma série de diretrizes, a empresa monitora a movimentação do motorista em tempo real. Isso sem contar a utilização que a empresa dá para as avaliações dos passageiros. Sabendo então que a empresa acaba colocando o motorista no local que ela quer e na hora que ela quer, você considera que tem autonomia real para definir seu horário de trabalho? Considerando seus gastos para trabalhar e o valor médio de ganho com as tarifas definidas exclusivamente pela empresa, quantas horas por dia de trabalho você precisava fazer para ter um ganho efetivo? Ainda assim você considera que tinha plena liberdade para definir o horário que trabalhava?
É porque assim… aí nós abrimos um leque gigante, tá. Primeiro, nós temos a questão da suposta liberdade que eles nos dão, tá. Essa liberdade não existe, tá, simplesmente ela não existe, por quê? Primeiro, questão de direcionamento de viagens. Não, tu não consegue direcionar, tá, dentro do aplicativo não. O que que eu faço? Eu vou com o aplicativo desligado para o ponto que eu quero trabalhar, por quê? Porque, se eu fico recusando corridas ou cancelando corridas, eu tomo advertência do aplicativo, tá. Eu deixo de ganhar promoções do aplicativo, tá, e eu perco. Eles têm uma espécie de bonificação, tá, de acordo com a tua taxa de aceitação e de acordo com o teu cancelamento. Então, se eu deixo de aceitar a corrida ou se eu cancelo corridas demais, eles me tiram essas bonificações. E, inclusive, eles deixam de me mandar certos passageiros, que são os passageiros vips, tá. Então, eu perco essas regalias dentro do aplicativo. Então, não. Eles me forçam a aceitar corridas, inclusive, para lugares que eu sei que eu estou me colocando em risco, né, colocando em risco o meu bem pra manter essas taxas pra eles, né. Porque, pra eles, é interessante que o passageiro seja atendido, mas, pra eles, não me parece tão importante a segurança do motorista, tá. Segundo, em questão de horário, tá, a gente tem essa suposta liberdade também em relação a horários, mas isso não existe, por quê? Porque, se tu quer ter um ganho real, tá, que tu consiga ter liberdade, né, financeira, tu seria obrigada a trabalhar de catorze a dezesseis horas por dia. Menos que isso, tu não consegue ter um ganho real, contando gasto com gasolina, manutenção do carro, prestação do carro, que muitos assim… eu te digo que, hoje em dia, que 90 a 95% dos motoristas não têm carro próprio. Ou eles alugam ou o carro é da financeira. É financiado, tá. Então, pra gente conseguir manter, né, ou a prestação do veículo pra financeira, que seja, ou o aluguel de um carro, tu tem que estar muitas horas por dia online, tá. E não é trabalhar um dia esse tempo. Não. Tu tem que trabalhar, no mínimo, seis dias por semana, esse tempo pra ti conseguir ter uma liberdade financeira. Só que daí tu tem a liberdade financeira. Só que tu não tem a tua vida, porque é dirigir e descansar pra dirigir de novo no outro dia. Então, é uma suposta liberdade de horário, mas, enfim, a gente tem que trabalhar horas a fio pra conseguir ter algum retorno. E a outra pergunta, eu não lembro. Se tu puder recapitular, eu não lembro a terceira. Eu lembro que eram três abas, três respostas (…) Na verdade, assim, no início, quando eu comecei, tá, como eu já te expliquei, há quatro anos atrás, era mais fácil, por quê? Porque a gente precisava trabalhar menos horas pra ter o mesmo retorno que a gente tem hoje, tá. O que que acontece? A gente não deixou de ganhar menos. A gente começou a aumentar o horário de trabalho, tá. Então, lá no início, quando nós erámos melhores remunerados, a gente tinha essa liberdade, porque a gente precisava trabalhar menos. Menos horas pra fazer o mesmo valor, pra ter o mesmo lucro, que nós temos hoje, trabalhando catorze, dezesseis horas, entende? Então, naquela época, era mais fácil. E o que que acontece também? As coisas foram nos cercando, tá. As condições de vida foram cercando os motoristas e obrigando, cada vez mais, a trabalhar, tá. Eu lembro que algum tempo, né, logo no início, eu trabalhava seis horas por dia e era o suficiente. E eu tinha um lucro, muitas vezes, maior que hoje, tá, porque eram menos motoristas, né. O aplicativo não tinha tanta abrangência e eram menos motoristas, mas o aplicativo nos remunerava melhor. E, hoje em dia, o aplicativo está pagando cada vez menos, né, fazendo um cálculo cada vez para o motorista ganhar menos, embora tenham subido as tarifas para os passageiros, né. E isso nos força a ficar na rua é… cada vez mais tempo. E aí o que que acontece? Quanto mais tempo tu fica na rua, mais custo tu tem também. Então, tu é obrigado a ficar na rua mais tempo pra cobrir o custo a mais e pra tentar ter o lucro semelhante ao que tu tinha antes. Bom, eu acho que é basicamente isso.
MARCELISE AZEVEDO: Você acredita que uma formação popular sobre os direitos trabalhistas que esses trabalhadores têm, estabelecidos em legislação e em razão de decisões judiciais, poderia auxiliar na conscientização sobre a precariedade das suas condições de trabalho?
Eu acredito que ajudaria na conscientização, tá. O esclarecimento sempre é muito bem-vindo, tá. Às vezes, as pessoas agem por ignorância, né, por não saberem dos seus direitos, mas também, tá, o movimento que eu vejo hoje, né, como eu já havia citado anteriormente dessa crise econômica, às vezes, as pessoas abrem mão, de forma consciente, dos seus direitos por não terem outra alternativa. Eu acredito, claro, que a conscientização é válida, né, e é necessária. As pessoas precisam saber dos seus direitos e a gente luta muito pra que isso seja cada vez mais… que essa divulgação seja amplificada, né, mas hoje eu não vejo que isso mudaria a situação dos motoristas. Talvez mudasse no sentido de que eles começassem a pedir pelos seus direitos, mas não que fosse haver uma… “Ah, não vou mais trabalhar nisso, porque os meus direitos estão sendo negados.” Entende? Porque o que eu vejo muitas pessoas hoje, famílias inteiras, dependerem desse dinheiro do aplicativo. Então, eu não acredito que as pessoas vão deixar de fazer isso, porque estão tendo os seus direitos suprimidos. Elas simplesmente acabam se acomodando.
MARILDO MENEGAT: Minha questão sobre este tema é entender e delimitar se estamos diante de uma ‘metamorfose do mundo do trabalho’ – entendida como resultado de uma reestruturação produtiva e do choque de novas tecnologias -, ou diante do ‘colapso do mundo do trabalho’ – devido às novas tecnologias poupadoras de trabalho humano, como as da terceira e, agora, quarta revolução industrial – , com as atividades assalariadas regulares tornando-se cada vez mais raras e insignificantes na dinâmica da acumulação do capitalismo atual. Tal diferença muda completamente o tratamento que se deve dar ao tema. Se for uma metamorfose, teremos no futuro chances de produzir novos instrumentos de regulação – como ocorreu no fordismo. Se for colapso, não haverá futuro reconhecível por padrões do passado. Como você percebe esta zona cinzenta da fronteira, ou seja, como são suas projeções de futuro – otimistas? Ou são sombrias?
Olha, eu vejo realmente como uma época muito sombria, porque, na verdade, hoje nós não conseguimos ter certeza de nada. Pode ser, sim, uma época de metamorfose, tá, onde nós vamos nos reestruturar e nós vamos conseguir definir, né, os nossos novos direitos. Mas também, diante dessa incerteza, o que tudo indica é que nós estamos caminhando pra um colapso, tá, porque não é só na nossa área que os direitos estão sendo negados. Nós estamos vendo isso em várias áreas. Então, diante da incerteza que o nosso país, principalmente, vive hoje, né, sabendo que, em outros países, os direitos dos motoristas já estão sendo reconhecidos, né, os direitos trabalhistas, e aqui, no Brasil, não, é muito incerto. Nosso país tá em um momento muito incerto hoje. E eu não consigo ver perspectivas otimistas pra que a gente comece a ganhar direitos hoje, entende, nem num futuro próximo. Eu acredito que a gente tem um caminho muito longo ainda pra trilhar, pra que a gente consiga ter algum retorno positivo em relação aos nossos direitos, né. Mas o que eu vivo, o que eu sinto hoje é essa incerteza. É que a gente tá caminhando pra um colapso, por quê? Porque as empresas que deveriam, né, garantir esses direitos, elas não parecem nem um pouco preocupadas, tá. Elas não estão preocupadas nem com a nossa segurança, nem com o quanto nós estamos trabalhando, tá, nem com quanto nós estamos ganhando. Elas só estão preocupadas em o quanto elas estão atendendo e o quanto nós estamos gerando lucros pra elas. Tanto que a gente viu o movimento da Uber, né, que é a nossa principal empresa, de que, caso fosse obrigada a dar direitos trabalhistas pros motoristas, poderia ser retirada do país. Então, tu entende essa incerteza é… que ou a gente continua trabalhando quieto, da forma que está, ou a gente pode, amanhã ou depois, não ter, né, o trabalho que a gente tem. Então, assim, eu vejo muito essa questão da incerteza hoje e do medo, né. A incerteza e o medo que gera, porque as empresas… eu não vejo preocupação real das empresas de trazerem direitos, né, de garantirem os direitos, nem de garantirem o básico pra gente, que é uma boa remuneração e segurança pra trabalhar.
NAIR HELOISA BICALHO DE SOUSA: A distribuição do trabalho através de plataformas digitais pretende isolar os trabalhadores, tirando o espaço físico de trabalho que sempre foi a sua mais importante base organizativa. Em muitos lugares, na Europa principalmente, esses trabalhadores, porque são trabalhadores e não empreendedores, desenvolveram estratégias, pontos de encontro, redes de comunicação que os mantiveram em contato, para estabelecerem formas de organização e de luta. Com toda a fragmentação que recai sob esses trabalhadores, a greve ainda é o horizonte forte de luta da classe. Há exemplos de greves bem sucedidas nesse campo. Qual é a sua experiência nesse processo (greve por exemplo, se já participou de alguma) e o que identificou como núcleo duro dessa forma de luta, enquanto reconhecimento, agenda de reivindicações, ganhos de proteção e de remuneração?
Sim. Eu já participei. Eu já participei de algumas greves e alguns atos, né, que nós temos além das greves. Nós temos alguns atos específicos, né, dentro da nossa cidade. Nós nos organizamos por grupos, né, de motoristas. E esses grupos, quando necessário, se unem todos pra cobrarem essas questões do aplicativo, tá. O que que eu vejo? O que que eu sinto? Que essas greves, tá, e essas organizações de motoristas começaram a perder a força, tá. No início, quando a gente recém tava começando, a gente se organizava e a gente conseguia uma adesão enorme de motoristas, por quê? Porque a gente acreditava que poderia mudar alguma coisa, tá. Aí, na verdade, com o passar do tempo, as pessoas começaram a ver que, por mais que a gente se organizasse, por mais que a gente fizesse greve, a gente conseguia apenas migalhas do aplicativo, tá. Só pequenas coisas que o aplicativo dizia que ia mudar e depois não era bem assim ou, depois de algum tempo, aquela mudança caía do aplicativo. Era só como se fosse “cala a boca aí. Fiquem quietos aí. Eu vou dar isso aqui pra vocês, mas, em seguida, eu vou tirar de novo.” O que que aconteceu? Essas greves começaram a perder força. Começaram a perder participantes, por quê? Porque a gente começou a entender que o aplicativo burlava um pouco os nossos pedidos. Por mais que a gente tenha conseguido algumas vitórias, mas elas foram pequenas, diante de todas as reivindicações que a gente fazia. E é bem isso, que eu também já citei anteriormente, que é o descaso, né. É o que eu sinto hoje. O descaso que o aplicativo tem com os trabalhadores, tá, que, por mais que a gente faça, por mais que a gente reivindique, por mais que a gente se organize pra lutar, né, pelas nossas reivindicações, que, geralmente, era a questão de segurança, tá. A gente pediu, várias vezes, que os aplicativos nos mostrassem a foto do passageiro. Isso eles sempre prometeram e a gente nunca foi atendido, né. Que eles nos mostrassem a nota do passageiro, mas a gente entende que, várias vezes, essa nota também não condiz a realidade, que eles nos avisassem a respeito dos passageiros, né, de acordo com a frequência, que a gente pudesse ver quantas corridas esse passageiro tinha no aplicativo pra saber se ele era confiável ou não. Essas reivindicações também nunca foram atendidas, tá, que são coisas importantes pra gente ter segurança pra trabalhar. Então, eles nos avisam: “Ah, o passageiro é frequente.” Mas é frequente como? Quantas corridas esse passageiro tem? Ele fez cinco corridas num dia. Ele fez o aplicativo hoje, ele fez cinco corridas num dia. Ele é frequente? Então, isso não quer me dizer muita coisa. Só que, quando tu estás num momento de perigo, né, numa situação de perigo, geralmente, a gente recorre a esse recurso. Só que esse recurso não é totalmente confiável, entende? Da mesma forma, na Uber, se um passageiro tem mais de cinco corridas, aparece como se ele fosse um passageiro frequente. Aí não aparece nenhuma notificação pra gente. Essa notificação só aparece, se o passageiro tem menos de cinco corridas. No momento que ele fez cinco corridas, ele aparece como outro passageiro comum, tá. Então, a gente não tem garantia nenhuma de segurança com esse passageiro, né, ao contrário de que, se eles tivessem atendido o nosso pedido de dizer quantas corridas. “Ah, o passageiro com mil corridas, pode atender tranquilo, que esse passageiro é, muito pouco provável, que ele vai te dar algum problema.” Entende? Então, assim, várias coisas a gente pediu, né. Nós solicitamos ao aplicativo e, pra eles, é totalmente viável colocar essa informação pra gente, mas eles não colocam, né. Na Uber, até hoje, a gente não sabe o destino das corridas. Então, tu vai. Por exemplo, eles te dão um bairro. Pode ser em qualquer lugar daquele bairro. Então, tu não sabes se tu vai entrar num beco sem saída ou se tu vai pra uma boca de fumo ou se tu vai pra um lugar bom, entende? Então, eles só nos dão uma área. E, muitas vezes, essas áreas, que o aplicativo nos mostra, são errôneas. Eles falam que é num bairro e é em outro bairro, por quê? Porque eles querem nos ludibriar pra que a gente faça a corrida de qualquer forma, entende? Então, o que que aconteceu? A gente acabou perdendo a força enquanto grevistas, enquanto reivindicantes, porque a gente perdeu a adesão de motoristas. Os motoristas não acreditam mais que uma greve vá resultar em algum benefício.
RODRIGO CARELLI: Pela nossa lei, um empregado pode ter horário de trabalho fixo ou variável, remuneração fixa ou variável e ter mais de um empregador. Mantendo a flexibilidade que você tem, você gostaria de ser reconhecida/o como empregada/o da plataforma para a qual você trabalha? Você gostaria de ter direitos trabalhistas?
Com certeza. Com certeza, esses direitos trabalhistas seriam muito válidos. Até porque hoje nós somos obrigados a não ter férias, entende? O que é uma coisa básica. Férias para trabalhadores, porque a gente precisa de descanso. E hoje a gente é obrigado a trabalhar doze meses por ano, porque, no momento que a gente não trabalha, a gente não recebe. A gente não tem nenhum direito garantido, tá. Seria muito importante que esses direitos, sim, fossem preservados. E, sim, claro que gostaria de ser reconhecida como trabalhadora para ter meus direitos garantidos.
SAYONARA GRILLO: Poderia nos contar como é ser entregadora ou entregador de produtos comprados por uma plataforma, relatar como é sua vida e seu trabalho? Como é sua vivência concreta na recepção de produtos e serviços com os fornecedores e na entrega de mercadorias para pessoas? Você recebe gorjetas? Seu trabalho é atravessado por seu gênero? Existem desafios específicos na singularidade do trabalho, considerando o seu gênero?
Sim. Eu vou te relatar alguns fatos que aconteceram comigo. Em relação aos fornecedores, é muito tranquilo, tá, porque, geralmente, quando a gente chega pra buscar a mercadoria, a mercadoria já está pronta. E tu só retira, né. Dá o “ok”, no aplicativo, que tu estas retirando a mercadoria. E fica tranquila. Tu pega a mercadoria e vai para a entrega. No momento da entrega, é que geralmente acontecem os problemas, tá. No meu caso específico, eu trabalho de carro. Eu faço essas entregas de carro. E o que que acontece? Eu sou obrigada a estacionar o carro, às vezes, longe da portaria, porque não tem estacionamento. E, pelo fato de eu trabalhar no período da noite e a nossa cidade ter uma questão de segurança bem séria, eu tenho que estacionar o carro longe e voltar caminhando até a portaria, né. Entrar no prédio. Às vezes, levar na porta da pessoa, se a pessoa requerer isso no aplicativo, né. Isso me faz repensar as entregas, tá, porque essa questão de descer do carro nos expõe a um perigo muito grande. Não é uma questão de não querer descer do veículo. A questão é que, se eu desço do veículo, eu estou exposta à violência, né. O momento que eu caminho até o prédio, eu estou exposta a sofrer um assalto. Então, no momento que eu volto também para entrar no carro, eu estou exposta a receber um assalto. E isso me faz repensar, muitas vezes, a entrega. Outra questão, sim, a questão de gênero interfere sim, tá, por quê? Porque nós nos tornamos alvo mais fácil, né. Não é uma questão de machismo, nem de feminismo, nem nada. É reconhecer que uma mulher tem menos força física que um homem, né. Então, a gente se torna um alvo muito mais fácil pra que, né, por exemplo, eu, quando ando no carro, eu já ando com o meu vidro todo fechado, né. Eu tenho insulfilm em todo o carro pra tentar me proteger, pra que as pessoas não vejam que é uma mulher que está dentro do carro, entende? Uma questão que um homem, por exemplo, já não daria tanta bola, não daria tanta questão. Quando eu paro num sinal vermelho, que eu sou obrigada a parar no sinal vermelho, o que que acontece? Eu entendo que, se um assaltante tiver que escolher entre mim e escolher entre um homem, ele vai vir em mim, porque eu sou um alvo mais vulnerável. Então, a questão de gênero, sim, interfere muito em todos os sentidos, tanto no sentido de entrega quanto no sentido de transporte de passageiros, tá. E eu vejo que, na entrega, a questão é bem essa. Nos torna mais vulnerável por essa exposição que a gente tem que ter, que é de descer do veículo pra fazer entrega e depois retornar até o veículo novamente. E isso nos torna um alvo muito vulnerável. E isso já me fez repensar, várias vezes, essa questão da entrega de produtos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS DE RAQUEL BALBUENO: O que que acontece hoje? Na questão do aplicativo, né, que ele nos dá essa suposta liberdade, não é assim que acontece em momento nenhum, né. Nós vemos vários colegas que foram expulsos da plataforma, né, tiveram as suas contas retiradas de uso pelo simples fato de cancelarem corridas ou de não ter uma aceitação boa de corridas. Ou, de qualquer forma que tu aja, né. Ou até, nas questões das greves também, quando aconteciam as greves, a gente via que muitos colegas, depois, eram excluídos da plataforma. Então, é uma liberdade que não existe. É uma liberdade falsa, porque, se tu não está de acordo e agindo da forma que eles acham que tu deve agir ou que não está trazendo benefício pra eles, né, que tu tenta lutar ou que tu tenta, de alguma forma, se proteger, não aceitando corridas ou cancelando, eles acabam ou te dando… te tirando alguns direitos, né, te tirando passageiros melhores ou te tirando passageiros mais frequentes, né, ou eles te excluem da plataforma de forma injusta. Então, essa liberdade realmente não existe. Hoje a gente se vê preso, né. Praticamente escravo de um trabalho que, sim, te dá um retorno. Tu consegue pagar as tuas contas, mas tu não… tu sobrevive com o dinheiro que o aplicativo dá hoje. Tu não consegue mais viver, por quê? Porque tu não tem mais os teus direitos, tu não tem mais o teu direito a férias, tu não tem mais essa hora de lazer, né. A gente está sempre escravo do trabalhar para ter dinheiro para pagar as contas, né. E é isso que eu vejo com todos os motoristas que eu conheço e que são vários aqui, na minha cidade. E a gente tá muito escravo disso, né. O que seria resolvido, se o aplicativo nos desse, nos garantisse nossos direitos, e se o aplicativo nos remunerasse melhor, né. Que a gente não precisasse ficar tantas horas trabalhando pra conseguir ter o básico. Então, essa é a minha consideração final. Eu acredito que o aplicativo tem como nos garantir, né, esses direitos e essa remuneração melhor, mas a gente tá preso nisso. O aplicativo não tem nenhuma boa vontade de nos dar, né, de atender as nossas reivindicações. E a gente está preso por todo quadro que se desenha na economia atual e que a gente fica patinando e não consegue sair dessa roda, né, dessa roda que nos empurra pra, cada vez mais, ficar refém do aplicativo.
Participantes:
Danieli C. Balbi: Professora Substituta na Escola de Comunicação Social da UFRJ (2019/2021). Assessora Parlamentar da Comissão de promoção de Direitos das Mulheres da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) desde 2019.
Grijalbo Coutinho:Desembargador do TRT da 10ª Região. Membro da AJD e da AAJ. Presidente da ANAMATRA (2003/2005), da AMATRA-10 (1999/2001 e 2001/2003) e da ALJT (2006/2008).
Ivan Garcia: Professor de Direito do Trabalho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Advogado.
Marcelise Azevedo: Advogada. Membra da ABJD.
Marildo Menegat: Professor do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NEPP-DH/UFRJ).
Nair Heloisa Bicalho de Sousa:Coordenadora do Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos Humanos da UnB. Docente-Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania CEAM/UnB.
Rodrigo Carelli: Professor de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ). Procurador do Trabalho (MPT1-RJ).
Sayonara Grillo:Professora de Direito do Trabalho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ). Desembargadora do TRT da 1ª Região. Membra da AJD.
[1] Idealizadora e coordenadora do projeto “Trabalhadores de Apps em Cena”. Professora na pós-graduação lato sensu em Direito do Trabalho e Previdenciário (CEPED/UERJ). Professora Substituta de Direito do Trabalho na UERJ (2017/2019). Autora do livro A precariedade politicamente induzida e o empreendedor de si mesmo no caso Uber: Sob uma perspectiva de diálogo entre Butler, Dardot e Laval. Advogada.
[2] BARBOSA, Daniele. A precariedade politicamente induzida e o empreendedor de si mesmo no caso Uber: Sob uma perspectiva de diálogo entre Butler, Dardot e Laval. RJ: Lumen Juris, 2020.
[3] BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. 1ª ed. RJ: Civilização Brasileira, 2018, p. 14.
[4] BARBOSA, op. cit., p. 100.
[5] https://jornalggn.com.br/destaque-secundario/trabalhadores-de-apps-em-cena-por-daniele-barbosa/
[6] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo– ensaio sobre a sociedade neoliberal. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 396.
[7] Ibidem.
Fonte: Jornal GGN
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Data original de publicação: 4 de março de 2022