No Brasil, 24 milhões de trabalhadores atuam no setor do cuidado

Foto: EBC

Por Christina Queiroz | Revista Pesquisa FAPESP

Número corresponde a 25% da população empregada e é divulgado no momento em que o país elabora sua primeira política nacional dedicada ao tema

Trabalhadoras domésticas, enfermeiras, cuidadoras, médicos, cozinheiros, faxineiros, motoristas, professores, cabeleireiros, entre outros profissionais do segmento do cuidado, somavam 24 milhões de pessoas e respondiam por 25,2% dos indivíduos ocupados no Brasil em 2019. Divulgado no momento em que o país prepara o lançamento de sua primeira política nacional para o setor, o tamanho dessa força de trabalho era desconhecido e foi mensurado em estudo realizado por pesquisadoras do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) entre 2022 e 2023.

O conhecimento acadêmico sobre o cuidado avançou desde o ano 2000 no Brasil em sintonia com o debate internacional, segundo a socióloga Nadya Guimarães, da FFLCH-USP e do Cebrap. Ela é uma das autoras da pesquisa, financiada pela FAPESP e pela Plataforma Transatlântica, colaboração entre órgãos de ciências humanas e sociais da Europa e das Américas. Guimarães explica que, antes disso, a literatura acadêmica já vinha se dedicando ao estudo do trabalho não pago desempenhado por mulheres em ambientes domésticos, tema prioritário na teoria feminista.

A reportagem de capa de janeiro de 2021 de Pesquisa FAPESP abordou o assunto (ver Pesquisa FAPESP nº 299), que foi tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em 2023. “No Brasil, também se destacavam os estudos sobre o emprego doméstico, uma forma de inserção econômica de especial relevo para as mulheres mais pobres”, diz a socióloga. De acordo com ela, essas pesquisas chamaram a atenção não apenas para as necessidades de quem requer cuidado, como crianças menores, idosos dependentes e pessoas com necessidades especiais, como também para quem provê cuidado, cujos direitos e necessidades tendiam a ser deixados em segundo plano.

No Brasil, uma das lacunas de pesquisa sobre esse mercado se relaciona com a escassez de estatísticas oficiais sobre o segmento. Artigo publicado no ano passado por Guimarães e pela socióloga Luana Simões Pinheiro, do Ipea, indica, por exemplo, que somente em 2002, a partir da nova Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), passou a ser possível mensurar uma parcela importante da força de trabalho remunerada do setor do cuidado: os cuidadores de idosos, de pessoas com deficiência e indivíduos acamados. “Considerando esse panorama, assumimos o desafio de medir de forma mais abrangente a quantidade de profissionais dedicados ao cuidado no Brasil, sistematizando os diferentes tipos de serviço que circulam nesse mercado, de modo a estabelecer os contornos e limites do trabalho remunerado de cuidar no Brasil”, esclarece Guimarães, cujo artigo com Pinheiro foi publicado na coleção Documentos de trabalho, do Cebrap. O artigo também faz parte da coletânea Cuidar, verbo transitivo, lançada pelo Ipea em 2023. A determinação dessas fronteiras é importante, por exemplo, para identificar quem são os profissionais de setores como saúde e educação que efetivamente se dedicam ao cuidado.

Alguns estudos precedentes procuraram medir o tamanho da força de trabalho do cuidado, como é o caso de relatório de 2018 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). No documento, foram contabilizadas todas as pessoas ocupadas em estabelecimentos do setor, incluindo indivíduos que não se envolvem diretamente com esse tipo de serviço, como são os casos de gerentes de hospitais e funcionários administrativos de escolas. “Buscamos destrinchar as estatísticas oficiais e ampliar a precisão das estimativas”, diz Guimarães. O estudo foi desenvolvido a partir de informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad-C), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cruzadas com as definições da CBO.

Com a proposta de compreender a diversidade do segmento do cuidado, as autoras se apoiaram em três dimensões. A primeira diz respeito ao contexto em que o trabalho se estabelece. Assim, ele pode ter lugar no espaço do domicílio, em uma relação de emprego doméstico, ou fora deste. O segundo aspecto se refere à natureza da relação com a pessoa cuidada, que pode ser direta, caso de babás e cuidadoras, ou indireta, caso de faxineiras ou cozinheiras. Por fim, a terceira dimensão abarca a recorrência da relação de cuidado, que será maior quanto mais dependentes forem os indivíduos cuidados. “Em situações de autonomia muito reduzida, a recorrência assume caráter imperioso e qualquer descontinuidade não apenas coloca em risco a qualidade do cuidado e o bem-estar da pessoa que dele se beneficia, como até mesmo sua própria vida”, enfatiza Guimarães.

O núcleo principal do setor de cuidado abarca as ocupações exercidas em domicílio, que são divididas em duas categorias. A primeira envolve profissionais com relação direta e recorrente com a pessoa cuidada, como as cuidadoras de idosos e as babás. Em 2019, elas correspondiam a 1,1 milhão de pessoas (ver gráfico). O segundo grupo de ocupações do espaço doméstico desempenha atividades recorrentes e se caracteriza pela relação indireta com a pessoa cuidada, caso de faxineiras, empregadas domésticas e cozinheiras. Em 2019, esse grupo contabilizava 4,8 milhões de pessoas.

“Os profissionais que atuam em ambientes domésticos foram os mais impactados durante a pandemia”, afirma a demógrafa Simone Wajnman, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Em estudo finalizado em 2023 com Mariana Almeida, que faz doutorado em demografia na instituição, ela constatou que esses empregos registraram queda de 20% a 30% logo no primeiro semestre de 2020. No entanto, no final de 2021, o mercado se recuperou, e a estrutura de ocupações do setor voltou a ser a mesma de antes da Covid-19. “Nos trabalhos domésticos de cuidados com pessoas dependentes, há evidências de que, apesar da recuperação das oportunidades de emprego, esses profissionais passaram a vivenciar maior sobrecarga de responsabilidades”, detalha a demógrafa.

Além do grupo de trabalhadoras que atuam no espaço doméstico, em seu estudo, Guimarães e Pinheiro também caracterizaram outro conjunto de ocupações que se desenvolvem fora dos domicílios. Nele, três grupos se destacam. No primeiro, os profissionais têm relação direta e recorrente com as pessoas cuidadas, caso de professoras de educação infantil e educação especial, enfermeiras e cuidadoras que atuam em instituições de acolhimento. Nessa categoria, o país contava com 2,9 milhões de indivíduos empregados.

Já o segundo grupo abarca profissionais como esteticistas e cabeleireiros, que têm relação direta com a pessoa cuidada, mas em condições de menor recorrência e dependência. Médicos, fisioterapeutas, dentistas, nutricionistas, entre outros profissionais da saúde com nível superior, também fazem parte desse mesmo grupo, que incorporava 7,3 milhões de profissionais, segundo dados da Pnad de 2019 e conforme contabilizou o estudo de Guimarães e Pinheiro. Segundo a pesquisa, nessas duas categorias, em que estão concentradas as ocupações do setor de educação e saúde, o Estado responde por 40% e 50% das contratações, respectivamente. Esse grupo é o único em que pessoas negras não são maioria (ver gráfico). “Trata-se, justamente, do segmento de ocupações com rendimentos mais altos”, informa Pinheiro.

Já o último grupo, que inclui atividades em que a prestação do serviço é indireta e não frequente, abarca profissionais como cozinheiros de restaurantes e trabalhadores da área de limpeza de edifícios. Esse contingente é o maior no segmento de cuidado e reunia 7,6 milhões de pessoas, sendo que a maioria delas era empregada no setor privado.

“No total, temos cerca de 70 ocupações dedicadas ao cuidado no mercado de trabalho brasileiro, incluindo desde categorias mais óbvias, como por exemplo as enfermeiras, e outras que não são vistas como provedoras de cuidado pelo senso comum”, comenta Guimarães. Um desses grupos são as trabalhadoras do sexo, que foram incorporadas à CBO em 2015 com a justificativa de que são profissionais que “cuidam de necessidades sexuais e dão acolhimento”. Outro conjunto inserido no levantamento é o de pessoas que atuam em instituições religiosas.

Além das diferenças em relação à natureza do serviço prestado, a pesquisa também mapeou disparidades de raça e gênero em cada grupo de ocupações. Identificou que as mulheres estão presentes em 75,3% dos 24 milhões de postos de trabalho do setor do cuidado. No núcleo principal, ou seja, em profissões desempenhadas no espaço doméstico, em relações de maior intimidade e recorrência, a participação feminina alcança 98% das vagas. A análise revelou, também, que 45% dos 24 milhões de postos de trabalho do segmento do cuidado eram ocupados por mulheres negras.

De acordo com a pesquisa, de cada 100 mulheres empregadas no Brasil em 2019, 14 atuavam como trabalhadoras domésticas, desempenhando funções de cozinheiras, faxineiras e cuidadoras. Nesse tipo de profissão, 63% das vagas são ocupadas por pessoas negras. “Os números evidenciam que o trabalho doméstico segue sendo um dos principais caminhos para a entrada de mulheres no mercado de trabalho, especialmente de mulheres negras com baixos rendimentos e nível de escolaridade”, observa Guimarães. Estudo de 2018 da OIT indica que o Brasil tem a maior proporção de empregadas domésticas no conjunto de sua força de trabalho entre os 187 países-membros da organização.

A economista Luiza Nassif Pires, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e diretora do Centro de Pesquisas em Macroeconomia das Desigualdades (Made) da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, aponta que 92% dos trabalhadores domésticos do Brasil são mulheres e 63% delas negras. Segundo a pesquisadora, mesmo com a Lei Complementar nº 150, de 2015, que regulamentou o direito dessas profissionais, sua situação laboral é marcada por precariedade, pouca proteção do Estado, informalidade e baixos salários.

Assim, Pires calcula que mais de 70% das trabalhadoras domésticas são informais no país e mais da metade recebe menos de um salário mínimo (R$ 1.412,00) por mês. “Além do valor ser insuficiente para suprir necessidades básicas no presente, o valor também implica uma contribuição previdenciária baixa, que pode comprometer a aposentadoria delas no futuro”, pondera a economista, ao comentar os achados de pesquisa elaborada por ela e outros integrantes do Made em 2022, em parceria com o Núcleo de Justiça Racial e Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV). Os resultados foram publicados em artigo no começo do ano passado.

Ainda sobre as diferenças de raça, Pinheiro, do Ipea, comenta que o estudo realizado com Guimarães evidencia a existência de divisões sexuais e raciais no trabalho de cuidado. Tomando como exemplo o caso das enfermeiras e técnicas de enfermagem, apesar da prevalência feminina em ambas as categorias, há desigualdades entre elas: no caso de enfermeiras em postos que demandam formação de nível superior, as mulheres brancas eram maioria, enquanto na função de técnica de enfermagem, cuja atuação prevê salários mais baixos e relações interpessoais intensas, as mulheres negras predominavam.

Na perspectiva de Pinheiro, os dados mostram que investimentos em políticas para criar ou aprimorar serviços públicos de provisão de cuidado tendem a beneficiar especialmente as mulheres e, entre elas, as negras. Em 2023, a socióloga do Ipea foi cedida ao Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome para atuar como diretora de Economia do Cuidado na Secretaria Nacional da Política de Cuidados e Família. Hoje, é uma das coordenadoras do processo de construção da Política Nacional de Cuidados e do Plano Nacional de Cuidados, previstos para serem anunciados pelo governo federal neste primeiro semestre. As propostas de políticas que integrarão o plano estão sendo elaboradas por um grupo interministerial, criado em março do ano passado, que envolveu 23 organizações do governo federal, além de representantes de governos estaduais, municipais, organismos internacionais e a sociedade civil.

Pinheiro esclarece, ainda, que as políticas serão direcionadas a quatro públicos prioritários: crianças e adolescentes, com atenção especial à primeira infância; idosos e pessoas com deficiência que precisam de apoio para realizar atividades básicas da vida diária; além dos indivíduos que cuidam – de forma remunerada ou não remunerada. “Com o envelhecimento populacional, a demanda de idosos por cuidados é cada vez maior, assim como aumenta a carga sobre as mulheres que exercem esse cuidado no âmbito das famílias”, comenta. Segundo ela, a ideia é que o Estado seja capaz de, ao mesmo tempo, prover o cuidado que essa população necessita e reduzir a sobrecarga de trabalho de cuidadoras familiares.

Projeto

Reconstruindo o cuidado num mundo pós-pandemia (nº 21/07888-3); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Nadya Araujo Guimarães (USP); Investimento R$ 326.927,23.

Artigos científicos

ALMEIDA, M. E. e WAJNMAN, S. Occupational transitions of paid care workers during the Covid-19 pandemic in Brazil. Coleção Documentos de Trabalho. São Paulo: Centro Brasileiro de Análise e Planejamento ‒ Cebrap, n. 3, p. 1-25, 2023.

GUIMARÃES, N. A. e PINHEIRO, L. The halo of care. Measuring paid care work in Brazil. Coleção Documentos de Trabalho. São Paulo: Centro Brasileiro de Análise e Planejamento ‒ Cebrap, n. 2, p. 1-40, 2023.

NICOLI, P. A. G. e VIEIRA, R. S. C. Brazilian care law: Elements for an architecture of the legal field of care in Brazil. Coleção Documentos de Trabalho. São Paulo: Centro Brasileiro de Análise e Planejamento ‒ Cebrap, n. 4, p. 1-26, 2023.

Nota técnica

RESENDE, A. el al. Raízes e panorama do trabalho doméstico remunerado no Brasil: Reprodução social e algumas de suas contradições. Made ‒ Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades, FEA-USP, nº 038, 2023.

Relatório

El trabajo de cuidados y los trabajadores del cuidado para un futuro con trabajo decente. Organización Internacional del Trabajo (OIT), 2018.

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Por Christina Queiroz | Revista Pesquisa FAPESP
Data original de publicação: Março/2024

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