Trabalho no neoliberalismo ultra-tardio e o G20 Financeiro

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Por Jörg Nowak | Boletim Lua Nova

Este texto faz parte de uma série especial do Grupo de Reflexão G20 no Brasil do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Leia o texto anterior aqui.

A agenda do G20 Financeiro especificamente na área do trabalho, estabeleceu um foco em quatro pontos: 1) criação de emprego e trabalho decente; 2) transição justa; 3) tecnologia e bem-estar e 4) diversidade e desigualdade de gênero no local de trabalho. Conforme relatado na Folha de S. Paulo, a área com os debates mais avançados é a última, que pretende se basear na recente Lei da Igualdade Salarial brasileira, que impõe salários iguais para a mesma função para trabalhadores do sexo masculino e feminino. O fato de a lei brasileira ser vista como um protótipo emblemático já indica que, provavelmente, haverá apenas avanços simbólicos na área do trabalho na agenda do G-20.

É claro que a ideia de salário igual para trabalho igual deve ser apoiada, mas ela é uma medida muito limitada. Em primeiro lugar, devido à persistente segmentação do mercado de trabalho em termos de trabalho “masculino e feminino”, a começar por um dos tipos de trabalho mais exigentes fisicamente e mais individualizados: o trabalho doméstico remunerado, que é exercido majoritariamente por mulheres em todo o mundo. Mas isso não se limita a esse exemplo: os trabalhos de serviços com baixos salários, o trabalho de cuidados em geral e muitos outros trabalhos fisicamente exigentes são predominantemente realizados por mulheres.

A estratégia de trazer mais mulheres para a profissão XYZ também não é uma estratégia sustentável: a experiência histórica demonstra que as profissões são rebaixadas ou valorizadas dependendo da composição de gênero. O trabalho dos dentistas, por exemplo, era predominantemente exercido por mulheres na Europa do século XIX e, quando começou a se tornar tecnicamente mais sofisticado, as mulheres foram afastadas da profissão, até que ela se tornou quase exclusivamente masculina e bem remunerada. O movimento oposto foi registrado no caso dos/as secretários/as. Essa foi por algum tempo uma profissão exclusivamente masculina, bem remunerada e altamente reconhecida, até que se tornou mecanizada com a introdução da máquina de escrever. Os homens abandonaram a profissão e foram substituídos por mulheres mal remuneradas.

Entretanto, mesmo que nos limitemos a manter a meta de salários iguais para trabalhos iguais, sabe-se que, com base em exemplos históricos muito mais recentes, que os empregadores tendem a usar duas táticas, alternativa ou conjuntamente: ou os salários de toda uma categoria de trabalhadores são adaptados para baixo, ou seja, o pagamento igual é realizado, mas em um nível mais baixo; ou os empregadores inventam  uma nova gama de hierarquias de trabalho com descrições lúgubres que mascaram o fato de que essas diferentes categorias de trabalho são, na realidade, o mesmo cargo com nomes diferentes. É um caminho complicado provar no tribunal que esses trabalhadores fazem essencialmente o mesmo trabalho, pois as descrições de cargos, em geral, raramente estão de acordo com o que os trabalhadores realmente fazem.

As outras três áreas são, assim como a quarta, áreas essenciais para o futuro do trabalho; portanto, pode-se dizer que estas foram bem escolhidas. Grande parte da atenção do público estará voltada para a questão de saber se haverá algum acordo sobre como proteger os trabalhadores de plataformas. Os exemplos mais proeminentes de trabalho em plataformas são o transporte de passageiros em automóveis, a entrega de alimentos ou de compras online, todas profissões dominadas por homens. Curiosamente, em termos quantitativos, o trabalho em plataforma dominado por mulheres, principalmente na área de serviços domésticos, de cuidados e trabalhadoras/es do sexo, está em pé de igualdade com as variantes masculinas do trabalho em plataforma, mas atrai muito menos atenção no debate público.

Em alguns países europeus, como Reino Unido, Espanha e Alemanha, o trabalho em plataformas foi regulamentado e os trabalhadores passaram a ter um alto nível de proteção social. Em alguns casos, como o dos motoristas do Uber na Alemanha, os trabalhadores têm todos os direitos de trabalhadores no papel, mas permanecem desprotegidos devido a uma cadeia de subcontratados que é difícil de ser controlada. Mas, em um panorama geral, a situação dos trabalhadores de plataformas na Europa melhorou consideravelmente nos últimos anos. Iniciativas semelhantes nos EUA fracassaram e, na China, o Estado impôs, recentemente, alguns padrões mínimos aos empregadores de plataformas, mas sem grandes mudanças nas relações de trabalho.

Especialmente no Brasil, havia grandes esperanças de que o governo Lula, eleito em 2022, criasse uma regulamentação definitiva para os trabalhadores de plataforma. Mas, um primeiro projeto de lei promovido pelo Poder Executivo Federal adotou a proposta das empresas de plataforma de criar uma terceira categoria de prestadores de serviços que não são considerados nem trabalhadores, nem autônomos. As experiências com essa terceira categoria na Itália demonstraram que ela foi usada para minar o emprego formal. O fato mais difícil é que os trabalhadores de plataformas  não formaram algum consenso sobre as propostas e os diferentes grupos de trabalhadores de plataformas também diferem em suas demandas. Considerando que o Supremo Tribunal Federal (STF) no Brasil está na vanguarda do enfraquecimento de qualquer possível regulamentação do trabalho em plataforma e tende a submeter a legislação trabalhista à “liberdade de fazer negócios”, as expectativas nessa área também são bastante modestas.

Vejamos as áreas de transição justa e o uso da tecnologia. Essas áreas têm estado um pouco mais fora do radar e pode ser que sejam áreas em que algum sucesso possa ser alcançado. A África do Sul é um bom exemplo dos problemas com a transição justa: o sistema energético sul-africano é baseado principalmente no carvão, com um fornecedor de energia estatal em ruínas no centro. O governo pretende iniciar uma transição para as energias renováveis, mas essa transição está planejada para ser baseada em empresas privadas; ou seja, uma transição ecológica que levaria à privatização. É por esse motivo que os sindicatos sul-africanos bloquearam essa transição há anos, pois se opõem à privatização.

As preocupações com as transições justas não são apenas o fato de que uma transição justa levaria à perda de empregos – a produção de carros elétricos precisa de muito menos trabalhadores do que a de carros convencionais, por exemplo. Uma das preocupações centrais é que muitos dos novos empregos, por exemplo, no setor de paineis solares, são empregos precários com condições de trabalho perigosas, uma vez que a transição não é acompanhada por um forte movimento da classe trabalhadora, mas dominada por estratégias neoliberais. Muitas das fortalezas remanescentes do poder da classe trabalhadora estão em empregos poluentes, como na indústria automobilística, na indústria química e na mineração. Muitas pessoas se lembram das horrendas condições de trabalho na construção da represa de Belo Monte (Pará), que não só deslocou 30.000 pessoas de áreas rurais para favelas, mas também deixou muitos trabalhadores mortos, feridos e em péssimas condições de trabalho. Esse seria um bom exemplo de transição ecológica injusta.

O G20 seria uma ótima oportunidade para estabelecer algumas diretrizes gerais sobre transição justa que, uma vez adotadas pelos Estados, poderiam ser utilizadas como referência em casos de reestruturação. A transição justa é frequentemente vista como um tema de fundo ou de pouca importância, mas ela está no centro das transformações do trabalho. A transição pós-carbono é vista como uma grande oportunidade pelo capital para instalar a Uberização[2] de tudo em todas as áreas de trabalho. Um debate alternativo sobre a transição justa poderia destacar a questão de para onde vão os investimentos, os subsídios e o capital: mais recursos em educação, serviços de assistência e serviços de saúde não causam muita poluição e são socialmente úteis, mas a produção e o uso de armas estão entre os setores mais poluentes. É questionável se esses argumentos podem ser bem-sucedidos entre governos poderosos em um momento em que a empresa alemã de armas Rheinmetall está prestes a se tornar patrocinadora oficial do time de futebol Borussia Dortmund, e grandes guerras na Ucrânia e em Gaza levam a um boom na produção de armas. Mas os argumentos são, afinal, populares entre as populações, como mostram as pesquisas[3].

A quarta área, sobre tecnologia e bem-estar, não é menos importante, abrangendo desde a substituição de alguns empregos por inteligência artificial até a vigilância no trabalho. Muitas pesquisas demonstram que o medo do desaparecimento do trabalho devido à inteligência artificial é exagerado, pois cada nova tecnologia que economiza mão-de-obra cria novos empregos para gerenciar essas mesmas tecnologias. A questão crucial aqui é, como no caso das transições justas, como esses empregos são regulamentados.

O exemplo já bem conhecido dos moderadores de conteúdo do Facebook ou do Instagram que trabalham por salários baixíssimos no Quênia ou nas Filipinas e têm de suportar assistir a conteúdos traumatizantes é extremo, mas certamente revelador. A terceirização tem algum limite, e é possível controlar as cadeias de subcontratação? A Alemanha aprovou uma lei sobre a cadeia de suprimentos há dois anos para estabelecer a responsabilidade das empresas líderes pelas condições de trabalho nos fornecedores e, no entanto, quando caminhoneiros da Polônia que transportavam mercadorias para grandes empresas alemãs entraram em greve de fome nas rodovias alemãs devido a atrasos salariais, a lei não foi invocada. O reshoring é a solução para que se possa restabelecer algum controle sobre as condições de trabalho?

A vigilância no trabalho devido a dispositivos eletrônicos é outro grande tópico que está completamente fora de foco nos debates convencionais. As novas tecnologias permitem uma vigilância detalhada de todas as etapas do trabalho e, muitas vezes, são usadas para otimizar e aumentar a velocidade das tarefas de trabalho, como é o caso dos armazéns cada vez mais monitorados da Amazon. Mas isso também afeta o monitoramento de motoristas de ônibus do transporte público via GPS, por exemplo, e inúmeros outros grupos de trabalhadores. Padrões gerais sobre como esses dados podem ser usados, quantos desses dados podem ser registrados e como a propriedade desses dados é regulamentada seriam um grande avanço.

Provavelmente, essa é uma área que promete mais chances de progresso devido ao seu baixo perfil no debate público. Pesquisas recentes mostram que o registro de dados sobre os processos de trabalho é utilizado na produção industrial para simplificar as tarefas de trabalho, o que permite empregar quase qualquer pessoa sem educação prévia e sem conhecimento de idiomas, facilitando a contratação  de migrantes sem direito de residência que, em muitos casos, não ousariam arriscar seus empregos. A vigilância digital do trabalho e o registro de dados durante o trabalho são provavelmente as áreas mais importantes e mais subestimadas para o futuro do trabalho, e um debate global sobre elas poderia contribuir imensamente para melhores condições de trabalho.

* Este texto não representa necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova.


[1] Professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Membro do Grupo de Reflexão G20 no Brasil do mesmo Instituto. joerg.nowak@gmx.de

[2] Ludmila Abilio, 2020: Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estudos Avançados, 34 (98) • Jan-Apr 2020, 111-126.https://doi.org/10.1590/s0103-4014.2020.3498.008

[3] Ver Federal Financial Supervisory Authority, 2019: How safe are sustainable investments? https://www.bafin.de/SharedDocs/Veroeffentlichungen/EN/Fachartikel/2019/fa_bj_1906_nachhaltige_Geldanlage_en.html; Tarik Abou-Chadi, Jannik Janssen, Markus Kollberg, Nils Redeker, 2024: Debunking the Backlash – Uncovering European Voters´ Climate Preferences. Policy Brief. Jacques Delors Centre, Hertie School. 7 de março  https://www.delorscentre.eu/en/publications/detail/publication/debunking-the-backlash-uncovering-european-voters-climate-preferences

Referência imagética: Na região central de São Paulo, no bairro da Consolação, um entregador de aplicativo, pedalando uma bicicleta, confere no celular a rota para seu destino. Os comércios estão fechados por decreto emergencial durante a pior fase pandêmica enfrentada pelo país, e só uma ‘bomboniere’ continua de portas abertas, já que faz parte do comércio essencial. O entregador usa a máscara no queixo, desprotegendo nariz e boca, e contrasta com a atual situação. Enquanto rodam a cidade nos garantindo comida e proteção, pouco se faz para assegurar os direitos destes trabalhadores. Fotografia realizada no contexto de um projeto educacional na Faculdade Cásper Líbero, em 2021. Foto de Gabriella Capuano. Disponível em <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Mundo_de_Entrega-_Gabriella_Capuano-_Entregador_de_aplicativo_em_S%C3%A3o_Paulo.jpg>. Acesso em 10 jun 2024.

Fonte: Boletim Lua Nova

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Data original de publicação: 19 de junho de 2024

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