E os precarizados que alimentam a IA?

No projeto que visa regular a tecnologia, um tema está ausente: os direitos dos trabalhadores do “andar de baixo” das Big Techs — expostos a condições ilegais e abusivas. Entidades e pesquisadores elencam seis propostas que podem mudar o rumo dos debates no Senado

Imagem: Steve Johnson/Unsplash

Por Um documento coletivo

No âmbito da análise do  Projeto de Lei No 2.338 de 2023, que cria um marco legal para a Inteligência Artificial no Brasil, na Comissão Temporária sobre Inteligência Artificial, os signatários desta carta ressaltam tema ainda ausente no texto. Saudamos a importância da análise pelo Senado Federal e pela Comissão Temporária Interna sobre Inteligência Artificial no Brasil (CTIA) do Projeto de Lei. O relatório do senador Eduardo Gomes (PL-TO) avançou e apontou para a fixação de diretrizes e obrigações fundamentais para o desenvolvimento e uso dos sistemas de Inteligência Artificial, incluindo medidas para mitigar riscos e assegurar direitos aos vários grupos afetados, especialmente aqueles mais vulneráveis. 

O texto tem ensejado intensos debates, com forte e perigoso lobby de setores empresariais contrários ao estabelecimento de necessárias regras para evitar efeitos prejudiciais da implementação e adoção dessas tecnologias. Esta ofensiva das empresas já tem produzido efeitos, com flexibilizações de obrigações fundamentais para garantir o uso responsável e que mitigue consequências danosas para a população. Por isso, é mais do que urgente que a sociedade se mobilize em torno do tema e que o Senado continue persistente em sua autonomia, determinado a aprovar uma nova lei sobre tema da maior relevância para o presente e o futuro de desenvolvimento e bem-estar da população brasileira. Uma legislação soberana, que considere as oportunidades, mitigando riscos e respeitando direitos, colocará o Brasil em posição favorável na cadeia produtiva da economia digital.

Nas últimas discussões na CTIA no Senado Federal, o relator, senador Eduardo Gomes, incorporou uma emenda fundamental para incluir um tema até então pouco tratado entre as medidas: o do trabalho. O acréscimo é de extrema importância, uma vez que o impacto da IA nas relações laborais tem ensejado preocupações em todo o mundo. Reiteramos a importância  das propostas de proteção dos trabalhadores contra os efeitos prejudiciais da implementação dos sistemas de IA incluídos no texto. Sobretudo, faz-se necessário incluir a avaliação de riscos por órgãos competentes, vinculados a instituições que regem a saúde e o direito do trabalho, bem como  adotar medidas de transparência de gestão e proteção dos trabalhadores com  a obrigação de negociar a implementação desses sistemas junto a  entidades representativas dos trabalhadores.

Contudo, há ainda um tema chave ausente do PL: os direitos de trabalhadores envolvidos no desenvolvimento da Inteligência Artificial. Pesquisas acadêmicas têm demonstrado como este processo envolve uma quantidade enorme de pessoas em todas as fases do ciclo de produção dos sistemas, da coleta e anotação de dados à revisão e aperfeiçoamento dos modelos. Embora se trate de um processo essencial ao aprendizado de máquinas, esse trabalho é externalizado principalmente para plataformas digitais ou para redes especializadas de terceirização, submetendo os trabalhadores a desproteção trabalhista, bem como a formas de vigilância violadoras dos direitos à privacidade e à proteção dos dados pessoais.  Infelizmente, estudos têm revelado como tais trabalhadores têm experimentado condições precárias, especialmente nos países do Sul Global, incluindo o Brasil. Um estudo mostrou que 33% dos trabalhadores neste segmento têm nessas plataformas sua principal fonte de renda; 66% contam com uma quantia mínima de dinheiro a ser obtida nas plataformas para pagar suas contas e possuem rendimento médio 31,5% menor do que a população brasileira.

Outros estudos revelaram que estes trabalhadores sofrem não somente com baixos pagamentos, mas também com trabalho não pago, perfazendo  o montante de 8,5 horas por semana. Grupos enormes de trabalhadores são reunidos em fazendas de cliques sem condições trabalhistas adequadas. A esses trabalhadores é imposta uma condição de autônomo, o que retira o acesso a direitos trabalhistas e do sistema de proteção social, como a seguridade social. De um lado, empresas de IA não revelam quem está sendo contratado nas suas cadeias produtivas, de outro muitas companhias e plataformas que fazem este serviço estão fora do Brasil, o que aumenta a vulnerabilidade destes trabalhadores. Essa situação torna as relações de trabalho e as precárias condições de vida destas pessoas  invisibilizadas, pois ao não existirem perante a lei,  não conseguem sequer reivindicar melhores condições.

A IA é uma tecnologia que se torna cada vez mais relevante na sociedade, mas seu desenvolvimento não pode ser feito às custas da dignidade de trabalhadores. Neste sentido, as evidências dos estudos produzidos pela academia mostram a importância das legislações sobre IA tratarem da proteção ao trabalho e trabalhadores (referente ao Capítulo X, seção II do referido PL) não somente na perspectiva dos efeitos de seu uso e implementação, mas também levando em conta o trabalho envolvido nessa cadeia produtiva, o que implica:

– Estender os normativos e políticas públicas delegados à autoridade competente, autoridades setoriais, o CTIA e o Ministério do Trabalho também aos trabalhadores envolvidos no desenvolvimento dos sistemas de IA.

– Incluir estes trabalhadores nas avaliações de risco e nas obrigações de supervisão humana para decisões tomadas por sistemas automatizados. 

– Incluir obrigações de transparência para empresas de IA no tocante às empresas e trabalhadores contratados na sua cadeia produtiva para permitir a fiscalização das autoridades de inspeção do trabalho.

– Assegurar aos trabalhadores envolvidos no desenvolvimento de IA direitos básicos trabalhistas previstos na legislação trabalhista quando cumpridos os requisitos para tal, indicando a necessidade de fiscalização das autoridades nesse setor. 

– Delegar à ANPD, em parceria com o CRIA e o Ministério do Trabalho, a emissão de normativos que limitem a coleta abusiva de dados de trabalhadores no âmbito do desenvolvimento e uso de sistemas de IA, incluindo dados psicológicos e relativos a sentimentos. 

– Acrescer às diretrizes do capítulo a transparência nos contratos e termos, na definição da alocação de trabalho, na definição de remuneração, na tomada de decisões disciplinares e nos critérios utilizados pelos sistemas de IA, bem como direitos de recurso às decisões tomadas por estes e ou com o auxílio deles.  

Compreendemos que este é um momento crucial e final de tramitação do PL 2.338 de 2023 na CTIA, mas não poderíamos nos furtar de alertar para a importância do assunto uma vez que o tema do trabalho passou a fazer parte do escopo. Ao mesmo tempo, somamo-nos aos alertas contra os riscos do lobby das empresas de vários setores que atuam para descaracterizar o texto do PL.


Assinam esta carta:

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ILO Essex Observatory for Work in the Digital Economy, capítulo Brasil  

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Associação Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias (ESOCITE.BR)

Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura (ABCiber)

Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo

Associação Brasileira de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (ABRASTT)

Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP)

Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd)

ADUFC – Seção Sindical dos Docentes das Universidades Federais do Estado do Ceará

Compolítica – Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política  

Frente Ampla em Defesa da Saúde dos Trabalhadores

Rede de Pesquisa Trabalho e Identidade do Jornalista (Retij – SBPJor)

Rede Lavits

Rede Nacional de Combate à Desinformação (RNCD)

União Latina de Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura, Capítulo Brasil (ULEPICC-Brasil)

Instituto Distributed AI Research (DAIR)
Grupo de Pesquisa Digital Platform Labour (DiPLab)
 

Cátedra Luiz Beltrão de Comunicação da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) 

Centro de Estudos Subjetividade, Saúde e Trabalho (CESST)

ComunicAtivistas

Coordenação Coletiva Setorial de C&T,I e TI PR RS

CPCiente

Departamento de Técnicas Profissionais e Conteúdos Estratégicos – FACOM/UFJF

EMERGE-UFF – Centro de Pesquisa e Produção em Emergência, Universidade Federal Fluminense

Grupo de Estudos e Pesquisas para o Trabalho (GEPT/UnB)

Grupo de Pesquisa Classes Sociais e Trabalho

Grupo de Pesquisa CPCienTE – Interfaces em Comunicação Pública da Ciência, Tecnologias e Educação: políticas públicas, Comunicação digital e métricas, divulgação científica

Grupo de Pesquisa e Estudos das Po̩ticas do Cotidiano РEPCO/UEMG

Grupo de Pesquisa Economia Polìtica da Comunicação da PUC-Rio/CNPq

Grupo de Pesquisa em Comunicação, Economia Polítia e Diversidade – Grupo Comum – UFPI

Grupo de Pesquisa Trabalho e Teoria Social (GPTTS) da UnB

GT Inteligência Artificial e Trabalho da Cátedra Oscar Sala do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP)

InfoCom РGrupo de Pesquisa em Compet̻ncias InfoComunicacionais

Instituto Brasileiro de Políticas Digitais – Mutirão

Instituto de Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas

International Center for Information Ethics

Laboratório ARIDA (Advanced Research in Databases)

Laboratório de Investigação em Comunicação Comunitária e Publicidade Social (Laccops/UFF)

Laboratório de Metodologias de Ensino e Tratamento de Resíduos da Universidade Federal do Ceará

Laboratório de Psicologia Social Jurìdica (UFMG)

Laboratório de Tecnologias Livres -UFABC

MediaLab.UFRJ

Movimento FeliciLab

Núcleo de Jornalismo e Audiovisual (PPGCOM UFJF)

Núcleo de Tecnologia do MTST

Núcleo de Estudos Organizacionais Sociedade e Subjetividade

Núcleo de Pesquisa em Jornalismo e Comunicação-nujoc-UFPI

Observatório de Economia e Comunicação da Universidade Federal de Sergipe (OBSCOM-UFS)

Observatório da Ética Jornalística (objETHOS/UFSC)

Observatório das Plataformas Digitais (OPD/UFMG)

Observatório dos Impactos das Novas Morfologias do Trabalho sobre a Vida e Saúde da Classe Trabalhadora (Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo)

Observatório do Futuro do Trabalho

SETORIAL DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO PT-RS

Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho – SINAIT

SINDPD-PE – Sindicato dos Trabalhadores em Processamento de Dados, Informática e Tecnologia da Informação do Estado de Pernambuco

SOS Viamão

Trab21 – Grupo de Pesquisa Trabalho no Século XXI

TRAMPO Pesquisa

University of Salento

Fonte: Outras Palavras

Clique aqui para acessar o texto original.

Publicado 30/07/2024

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