Patentes: uma barreira ao acesso à saúde
Impostas por um tratado da OMC durante a onda neoliberal dos anos 1990, elas encarecem remédios e tecnologias sanitárias e dificultam o trabalho da Saúde Pública no Sul Global. Por que não dar um basta em sua existência?
Por Fundação GEP
Nem sempre tivemos patentes sobre tecnologias de saúde. Em 1994, foi assinado o Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS, em inglês) no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC). Este acordo, ao qual todos os países membros da OMC tiveram que aderir, obrigou cada membro a adotar em seus marcos normativos padrões de propriedade intelectual que, no caso dos países em desenvolvimento, foram mais amplos do que os existentes.
No caso da saúde, a relevância do Acordo TRIPS reside no fato de que foi estabelecido o reconhecimento de direitos exclusivos sobre as tecnologias sanitárias, incluindo os medicamentos, a partir da obrigatoriedade de concessão de patentes farmacêuticas.
Como funcionam as patentes? Quando uma patente é concedida, o Estado [1] concede ao titular da invenção 20 anos de direitos exclusivos, concedendo-lhe um monopólio para sua exploração, o que lhe permite impedir que qualquer outra pessoa física e/ou jurídica produza, comercialize, distribua ou importe a invenção patenteada. No caso da Argentina, a Lei N° 24.481 adotou os padrões mínimos de proteção da propriedade intelectual do Acordo TRIPS, estabelecendo que devem ser demonstrados na solicitação três requisitos para a concessão de uma patente: atividade inventiva, novidade e aplicação industrial [2].
O que aconteceu após 30 anos com esse sistema? As promessas por trás do impulso do TRIPS se baseavam na promoção e incentivo de iniciativas de pesquisa e desenvolvimento (P&D), assim como na promoção da transferência de tecnologia entre os países mais desenvolvidos e aqueles em desenvolvimento. Após quase 30 anos da assinatura do TRIPS, as promessas não foram cumpridas.
O desenvolvimento de tecnologias de saúde se voltou para as patologias que a indústria farmacêutica avaliou que poderia obter lucros; o que resultou em doenças que se tornaram crônicas – com tratamento disponível, mas sem vacina ou cura – e, por outro lado, na existência de doenças “negligenciadas” ou “esquecidas” – aquelas associadas à pobreza e vulnerabilidade social, para as quais não foram desenvolvidas novas tecnologias.
A matriz de desenvolvimento tecnológico no mundo não se transformou, já que os países “desenvolvidos” são os que lideram em quantidade e qualidade os avanços científico-tecnológicos. Além disso, foi comprovado que as invenções patenteadas foram meros desenvolvimentos incrementais e não verdadeiras inovações em tecnologias de saúde. De acordo com a Prescrire International (2005), 68% dos medicamentos patenteados entre 1984 e 2003 não trouxeram nada de novo em relação aos produtos disponíveis anteriormente. Na mesma linha, segundo a NICHM Foundation (2002), apenas 15% dos medicamentos aprovados pela FDA no período de 1989 a 2000 foram classificados como altamente inovadores.
O que produziu, então, a inclusão de patentes para tecnologias de saúde?
O impacto dos monopólios nos preços e, portanto, no acesso. A existência de um monopólio sobre uma tecnologia sanitária concede ao seu titular o poder de fixar preços, o que resultou em valores exorbitantes para medicamentos patenteados – um exemplo recente, conhecido globalmente, é o caso do sofosbuvir nos Estados Unidos, que foi chamado de “a pílula de mil dólares” [3]. Além disso, foi demonstrado por vários estudos que, com a concorrência de medicamentos genéricos no mercado, os preços caem significativamente. A organização humanitária Médicos Sem Fronteiras [4] publicou, em 2019, uma comparação em relação aos preços dos tratamentos em comparação com 20 anos atrás.
No caso do HIV, o preço cobrado pela combinação tripla de medicamentos para tratar o HIV passou de mais de 10 mil dólares anuais por pessoa para menos de 100 dólares anuais por pessoa graças à entrada de fabricantes de medicamentos genéricos no mercado.
No caso da Hepatite C, em 2015, a combinação sofosbuvir-daclatasvir custava 147 mil dólares por pessoa para um tratamento de 3 meses. Em 2017, o tratamento estava disponível em alguns países por 120 dólares.
As corporações não apenas fizeram uso, mas abusaram do sistema: as corporações farmacêuticas também realizam práticas de “evergreening” ou perpetuidade das patentes, com a intenção de estender os monopólios que lhes garantem rentabilidade. Através de uma mínima mudança em uma molécula, ou em sua dosagem, formulação ou combinação de princípios ativos, por exemplo, as empresas solicitam uma nova patente para uma invenção já conhecida. Essas solicitações não cumprem os requisitos que exigem a demonstração de que o que se tenta patentear é novo, traz atividade inventiva e tem aplicação industrial.
Diante desses abusos, quais ferramentas temos disponíveis no sistema para proteger a saúde pública?
O sistema de patentes foi criado para favorecer a exploração comercial de produtos sob a lógica da criação de monopólios. No caso das tecnologias sanitárias, ele tem um impacto devastador, pois pode gerar escassez de produtos que salvam vidas, além de bloquear o acesso para aqueles que não têm recursos suficientes para comprar a preços exorbitantes.
No entanto, além de proteger a propriedade intelectual dos inventores, o sistema do TRIPS cria uma série de ferramentas que os países podem utilizar para proteger a saúde da população. Chamamos essas ferramentas de “salvaguardas de saúde pública”.
As salvaguardas de saúde pública são ferramentas eficazes para evitar os monopólios e os altos preços dos medicamentos e tecnologias médicas. O Acordo TRIPS estabelece que cada Estado pode “estabelecer livremente o método adequado para aplicar as disposições do presente acordo no âmbito do seu próprio sistema e prática jurídicos” (Art. 1.1). Esse direito foi reafirmado anos depois na Declaração de Doha sobre o TRIPS e Saúde Pública (2001) [5].
Dessa forma, instaura-se a salvaguarda mais importante, que é o direito dos países de definir como o sistema será implementado de acordo com cada contexto normativo. Nesse sentido, a Argentina deu um passo significativo ao adotar as “Guias de Patenteabilidade” (Resolução Conjunta 2012) [6], que estabelecem os critérios que devem ser aplicados na análise de um pedido de patente para decidir sobre sua concessão ou rejeição.
Em ordem de importância em seu caráter preventivo, podemos continuar enumerando as oposições às patentes, que, uma vez previstas nas leis nacionais, permitem a qualquer terceiro interessado contribuir com o processo de exame das solicitações de patentes. Isso significa que, após a análise do pedido, é possível apresentar argumentos e provas contra a concessão da patente, caso o pedido não cumpra os requisitos legais de novidade, atividade inventiva ou aplicação industrial.
Embora o TRIPS não apresente uma enumeração de “flexibilidades” ou salvaguardas de saúde, devemos mencionar também as licenças compulsórias [7] como uma das mais importantes. Os Estados podem permitir a exploração de uma patente por terceiros sem a autorização do titular, mediante o pagamento de royalties.
Qual é o impacto da rejeição de solicitações de patentes imerecidas?
A ausência de monopólios (patentes) permite a produção local de versões genéricas de qualidade e a competição de preços, incluindo produtos importados. Como explicamos, a competição tem se mostrado eficaz na prática para reduzir os preços e favorecer o acesso universal aos medicamentos.
No caso argentino, tanto a implementação das diretrizes de patenteabilidade quanto o uso regular de oposições ou “observações de terceiros” (art. 28 da Lei 24.481) levaram à rejeição de mais de 90% das solicitações de patentes farmacêuticas. Apenas no âmbito do HIV e da Hepatite C, a rejeição de solicitações em processos nos quais a Fundación GEP apresentou oposições resultou em uma economia para o orçamento público da Direção de HIV [da Argentina] de 570 milhões de dólares entre 2017 e 2023.
Estratégias inescrupulosas do poder corporativo pós-TRIPS
O poder corporativo, além de usar e abusar do sistema, continua desenvolvendo estratégias para estender seus monopólios e evitar ser regulado. Nos últimos anos, além de denunciar que os governos não estão livres de pressões para o uso de salvaguardas, militantes, ativistas e organizações têm se mobilizado para evidenciar essas estratégias. Nesse sentido, podemos destacar a implementação, por meio de tratados de livre comércio ou de investimento, de medidas regulatórias que vão além do TRIPS, conhecidas como medidas TRIPS plus [8]; ou o caso das chamadas licenças voluntárias, em que, através de um acordo entre o detentor privado da patente e outro, são criadas barreiras adicionais impondo limitações sobre onde e a quem um produto pode ser vendido.
De acordo com a Declaração de Mar del Plata promovida pela RedLAM (2024), essas práticas “limitam a livre circulação de ingredientes farmacêuticos ativos e de produtos genéricos, mantendo assim o poder nas mãos das companhias farmacêuticas que disfarçam essa prática predatória de caridade” (pág. 3).
O Norte Global contra o Sul Global
A pandemia de covid-19 evidenciou a desigual e injusta distribuição e acesso às tecnologias de saúde (vacinas e outras) e a fragilidade do sistema mundial de governança em saúde. Isso também se refletiu na negociação da isenção de propriedade intelectual proposta pela Índia e África do Sul no âmbito da OMC [9], evidenciando mais uma vez a influência do poder corporativo e do Norte Global.
Atualmente, está sendo elaborado no âmbito da Organização Mundial da Saúde (OMS) um tratado pandêmico com o objetivo de desenvolver um instrumento internacional para fortalecer a prevenção, preparação e resposta a futuras pandemias. No desenvolvimento dessa negociação, observa-se a mesma influência corporativa que foi evidente durante a negociação da isenção na OMC. Organizações da sociedade civil do Sul Global estão se mobilizando para solicitar aos governos que o texto do tratado garanta a equidade no acesso aos produtos relacionados às pandemias a nível nacional, regional e global (produção geograficamente diversificada, obrigatoriedade de transferência de tecnologia e a distribuição dos benefícios dos resultados de I+D) (Redlam, 2024).
Na Fundación GEP, acreditamos que as tecnologias sanitárias devem ser removidas do Acordo TRIPS e consideradas como bens públicos, conforme estabelecido na Declaração de Mar del Plata (Redlam 2024), assinada em abril passado por inúmeras organizações da região que trabalham pelo direito à Saúde.
A Fundación Grupo Efecto Positivo (FGEP) é uma organização sem fins lucrativos na Argentina que trabalha para melhorar a qualidade de vida das pessoas afetadas por HIV, Hepatites Virais e Tuberculose, entre outras doenças. Desde 2006, seus membros, que são parte da comunidade afetada por essas condições, têm se dedicado a promover o acesso a medicamentos essenciais e a eliminar as barreiras que dificultam o acesso a tratamentos adequados e acessíveis. Eles combatem os monopólios farmacêuticos por meio da oposição a patentes e da incidência política, buscando preços mais justos para os medicamentos e influenciando o debate público para garantir o acesso universal à saúde.
NOTAS
[1] As patentes são territoriais, ou seja, são os países que têm a competência de examinar as solicitações e decidir se concedem ou rejeitam uma patente de acordo com os padrões de patenteabilidade definidos nacionalmente, sempre dentro dos três requisitos estabelecidos pelo TRIPS: novidade, atividade inventiva e aplicação industrial.
[2] O Art. 4 da Lei 24.481 define esses requisitos. Novidade: invenção que não esteja compreendida no estado da técnica. Atividade inventiva: quando o processo ou seus resultados não sejam óbvios para uma pessoa versada na matéria técnica. Aplicação industrial: quando o objeto da invenção conduza à obtenção de um produto industrial.
[3] Mais informações disponíveis em: La hepatitis C en Argentina – Fundação Soberanía Sanitaria e Fundação GEP – Julho 2017, disponível em: https://www.fgep.org/wp-content/uploads/2022/02/2017
[5] “O Acordo TRIPS não impede nem deve impedir que os Estados Membros adotem medidas de proteção da Saúde Pública. Dessa forma, ao mesmo tempo em que reiteramos nosso compromisso com o Acordo TRIPS, afirmamos que o Acordo pode e deve ser interpretado e implementado de modo a apoiar os direitos dos Membros da OMC de proteger a Saúde Pública e promover o acesso de todos aos medicamentos.”
[6] Resolução Conjunta Min. Indústria 118/2012, Ministério da Saúde 546/2012, Instituto Nacional da Propriedade Industrial 107/2012.
[7] As licenças compulsórias são uma das denominadas salvaguardas de saúde do TRIPS; tratam-se de autorizações que podem ser emitidas por uma autoridade pública para permitir a importação, a fabricação e a comercialização por terceiros de produtos patenteados. Essas licenças não impedem que as empresas farmacêuticas continuem explorando suas patentes, enquanto estas estiverem vigentes, e aqueles que forem autorizados a fabricar e comercializar durante a vigência de uma licença obrigatória devem pagar royalties ao titular da patente.
[8] Extensão do prazo de patentes (linkage); exclusividade de dados de teste, entre outros. A Fundação GEP desenvolveu dois estudos, o Estudo de Impacto sobre o Texto das Negociações do Acordo Comercial entre Mercosul e a União Europeia e uma Revisão das Medidas TRIPS Plus contidas nos Tratados de Livre Comércio na Região, nos quais são geradas evidências sobre o impacto no acesso à saúde. Ambos os artigos estão disponíveis em: https://www.fgep.org/biblioteca-2/
[9] Em 2020, no contexto da pandemia de Covid-19, Índia e África do Sul apresentaram um documento na Organização Mundial do Comércio para a isenção ou suspensão de determinadas disposições do Acordo TRIPS. Eles propuseram que, no contexto da emergência global, fosse adotada uma isenção ou “waiver” dos direitos que concedem patentes, segredos comerciais, direitos autorais e desenhos industriais para garantir o acesso a tecnologias de saúde para a população mundial. Esta proposta foi resistida por países desenvolvidos como Estados Unidos, União Europeia, Japão, entre outros, e em junho de 2022 foi assinada uma waiver apenas para patentes sobre vacinas, que, devido à sua cobertura e extemporaneidade, não foi utilizada por nenhum país do mundo.
Fonte: Outras Palavras
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Publicado 23/07/2024