O chão de fábrica da mercadoria-software: sobre o processo de trabalho dos desenvolvedores de sistemas
Por Virgínia Squizani Rodrigues e Mauricio Mulinari | Associação Latino Americana de Antropologia
Data original de publicação: Março/2024
Introdução
Em agosto de 2011, o investidor do Vale do Silício, Marc Andreessen afirmou, em um artigo do The Wall Street Journal, que o software estava devorando o mundo[i]. Com esta afirmação, ele defendia a tese de que dentro dos próximos dez anos a humanidade passaria por grandes mudanças tecnológicas e econômicas. Como protagonistas dessas mudanças, figurariam as empresas de software, uma vez que, segundo Andreessen, estas estavam melhor preparadas para assumir o controle de grandes áreas da economia e “devorar” modelos de negócios tradicionais. Entre outros exemplos, a sua hipótese estava baseada no fato de que empresas de software como a Amazon influenciaram setores inteiros, tal como o mercado de venda de livros. Assim como a Netflix, que solapara as locadoras de filmes, o Skype, estaria a um passo de se tornar a próxima grande Telecom e o LinkedIn, a maior recrutadora de talentos.
Ainda que seu prognóstico com relação ao futuro da empresa Skype não tenha se efetivado, ele estava correto com relação ao avanço das transformações tecnológicas. Ao longo da última década, diversos ramos industriais viram os seus processos de trabalho serem digitalizados e transformados pelas tecnologias da informação. Mesmo setores produtivos tradicionais como a agricultura, energia ou saúde tiveram alguns dos seus processos transformados graças ao uso da inteligência de software. Entretanto, nem todas as transformações se deram para “melhor” como imaginado, já que outros efeitos nefastos dos usos de plataformas de software também puderam ser observados no mundo do trabalho e na sociedade (Srnicek, 2017; Casilli and Posada, 2018; Grohmann, 2021).
Neste ínterim, o campo de estudos das ciências sociais e humanidades debruçou-se sobre o fenômeno da plataformização e dos trabalhadores digitais (Antunes, 2018; Antunes e Braga, 2009). Em termos práticos, as diferentes plataformas de software, conforme a indústria na qual estão inseridas, fazem os seus próprios usuários “trabalharem”, envolvendo-os no que é conhecido como “trabalho digital” (Casilli e Posada, 2018). Inicialmente, plataformas como a Uber alegavam libertar as pessoas de formas de trabalho restritivas, oferecendo estilos de vida mais flexíveis e autônomos. No entanto, estudos recentes têm levantado preocupações sobre como, neste afã pela busca da “flexibilidade”, muitas plataformas acabam por contribuir para uma forma de servidão voluntária (Antunes, 2018). Em vez de promover ambientes de trabalho justos e libertários, como inicialmente proclamado, o que percebemos é um aumento notável na forma como as plataformas contribuem para a ampliação do desemprego estrutural, o trabalho precário e o crescimento da desigualdade social em escala global.
Como pudemos perceber, por um lado, as plataformas de software surgem enquanto uma promessa liberal de crescimento econômico e transformação do mundo. Por outro lado, porém, ainda que de fato provoquem transformações, tais plataformas não transformam necessariamente o mundo para melhor. Em uma sociedade organizada em classes sociais, as plataformas beneficiam-se de desigualdades sociais já existentes e acabam por ampliar os níveis de precarização das formas de trabalho visando, quase que exclusivamente, a redução de custos com a força de trabalho e a expansão da lucratividade dos ramos industriais que as adotam.
O problema da plataformização do trabalho é urgente. Entretanto, neste ensaio, desejamos observar menos os efeitos e consequências da plataformização do trabalho e olhar mais atentamente para a produção da mercadoria-software, esta que está na origem deste “devorar” o mundo. Que inovações e condições sócio-históricas foram necessárias para o desenvolvimento das forças produtivas que hoje contribuem para a aceleração, intensificação e precarização do trabalho? E, mais importante ainda, quem são os trabalhadores especializados capazes de construir as plataformas de software que consumimos? Assim, este ensaio tem como enfoque o processo de produção de software na sociedade capitalista atual[ii].
Tomando o software enquanto mercadoria central da indústria da tecnologia, observamos como os trabalhadores do desenvolvimento de sistemas inserem-se no processo de produção da indústria tecnológica e como são compreendidos enquanto uma mão de obra altamente especializada e, no momento, ainda relativamente escassa. Como elaboramos mais adiante, é justamente a escassez relativa de profissionais, somada à concentração de capital nesse setor que faz com que, atualmente, profissionais de tecnologia recebam salários acima da média de outras profissões e que empresas de tecnologia dos países centrais busquem mão de obra qualificada e relativamente barata em países periféricos. Portanto, exploramos diferentes facetas deste fenômeno que mesmo sendo global, apresenta particularidades locais na América Latina. Tais particularidades podem ser observadas quando constatamos que contingentes de jovens trabalhadores latino-americanos passam a trabalhar, de forma remota em frente a seus computadores, para capitais de países centrais – em especial os Estados Unidos. Assim, de modo geral, buscamos compreender como se constitui e como se dá a organização do trabalho nesta indústria de tecnologia que se coloca como altamente inovadora e disruptiva.
Para desenvolver esta temática, inicialmente, realizamos uma breve recuperação dos condicionantes histórico-sociais que permitiram a emergência e a consolidação da mecadoria-software no mercado mundial capitalista. Em seguida, nos debruçamos sobre a forma assalariada do desenvolvimento de sistemas: quem emprega os trabalhadores de software, de onde e como os emprega? Que relações de trabalho se produzem entre os países centrais e periféricos na indústria do software e seus ecossistemas de inovação? Finalmente, elaboramos sobre as formas que o trabalho concreto assume: que metodologias e ferramentas de organização do trabalho utilizam os desenvolvedores de sistemas?
Metodologicamente, nos apoiamos em quatro abordagens, sendo estas: a) Pesquisa histórico-bibliográfica sobre a história do desenvolvimento da produção de software até chegar à forma como a indústria da tecnologia se organiza hoje; b) análise desta indústria com base nas categorias d’O Capital de Karl Marx; c) Observação etnográfica do polo de startups de Florianópolis, Brasil, durante os anos de 2021 a 2023; e d) Realização de entrevistas com desenvolvedores de sistemas que moram ou atuam em startups da cidade mencionada.
Através de uma perspectiva antropológica e marxista buscamos uma melhor compreensão deste setor de vanguarda tecnológica e das contradições do “novo” chão de fábrica pós-fordista – também tratado academicamente como modelo toyotista ou de acumulação flexível (Harvey, 1992) – que produz um enorme volume de mercadorias-software. Mercadorias estas que, por sua vez, invadem crescentemente a vida cotidiana da população e transformam demais setores do mundo do trabalho.
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