‘Combate a doenças é uma luta contra desigualdades sociais’
Por Gabriel Zanlorenssi | Nexo Jornal
Data original de publicação: 12/09/2024
Alexandre Menezes, diretor nacional da NHR Brasil, aponta que ainda há muito a ser feito no combate às doenças tropicais negligenciadas
Doenças tropicais negligenciadas estão diretamente ligadas às desigualdades. O combate ao grupo de cerca de 20 patologias que atinge desproporcionalmente as populações mais vulneráveis deve incluir melhorias não só na saúde. Acesso a fatores como educação, água potável, esgoto e melhores condições de moradia são essenciais.
É isso que argumenta Alexandre Menezes, doutorando em medicina tropical e diretor nacional da NHR Brasil, representação da organização homônima internacional, voltada ao cuidado, inclusão e autonomia das pessoas atingidas por hanseníase e outras doenças tropicais negligenciadas.
Em setembro de 2024, o Nexo publica um especial sobre doenças tropicais negligenciadas, que conta com extenso material de Gráfico e cinco entrevistas com especialistas sobre o tema.
Como você avalia as perspectivas atuais de combate às doenças negligenciadas? Progressos foram feitos nas últimas décadas?
ALEXANDRE MENEZES Não creio que podemos chamar de “progressos”. Vejo que nas últimas décadas houve alguns pequenos passos que podem ter favorecido determinados aspectos no enfrentamento de algumas doenças negligenciadas, como o desenvolvimento de métodos de diagnóstico mais modernos – como testes rápidos e moleculares para Chagas, leishmaniose e hanseníase – ou estratégias de prevenção.
Mas as doenças tropicais negligenciadas estão ligadas às desigualdades. Isso remete a ações integradas que vão bem além das políticas de saúde pública e do provimento de diagnóstico e tratamento. Nesse sentido, há muito a ser feito. Atuar em fatores determinantes como educação de qualidade, água potável e esgoto tratado, melhores condições de moradia, seriam verdadeiramente progressos. Doenças negligenciadas, na verdade, podem ser consideradas como doenças de populações negligenciadas. Isto amplia os desafios para o controle ou eliminação, e necessariamente requer mais investimentos em ações de prevenção e controle. São doenças associadas ao contexto das desigualdades que infelizmente tem se mantido ou, às vezes, até crescido em função do crescimento da pobreza.
Dentre os países mais atingidos por essas doenças, o Brasil é um dos que têm maior infraestrutura médica e científica. Como você avalia o papel do Brasil nas estratégias globais de combate às patologias?
ALEXANDRE MENEZES Hoje o Brasil está entre as dez maiores economias do mundo, condição que o diferencia quando comparado a outros países tropicais, onde as doenças negligenciadas são mais frequentes. Temos um sistema público de saúde [o SUS], que, constitucionalmente, prevê garantia de acesso universal, integral e equânime. A capacidade técnica e científica nos centros de pesquisa e universidades é também um diferencial importante. Centros de referência mundial em pesquisa e desenvolvimento, como Fiocruz, Instituto Butantan, Instituto Evando Chagas e algumas universidades ao redor do país são referência em pesquisas e desenvolvimento voltado para doenças negligenciadas.
Esses elementos colocam o Brasil em posição de relevância no controle das doenças negligenciadas. Em termos de políticas públicas de enfrentamento, o país, recentemente, deu um passo relevante e é exemplo de estratégia global. Falo do Brasil Saudável, uma política criada por um decreto presidencial e coordenado por um comitê [o Ciedds, Centro Integrado de Estudos e Programas de Desenvolvimento Sustentável] que integra 14 ministérios, parceiros estratégicos e tem a participação de representantes da sociedade civil. As ações do programa vão além do setor saúde, dialogando com outros setores do governo relacionados à moradia, renda, ao acesso ao saneamento básico e à educação, entre outras políticas públicas. O governo brasileiro também tem sido presente em temas transversais relevantes como saúde única e inclusão da pauta das doenças tropicais negligenciadas na agenda de debates do G20
Comunidades mais atingidas pelas doenças tropicais negligenciadas muitas vezes não são levadas em conta na formulação de políticas públicas de controle e combate. Qual a importância da participação dessas pessoas no combate às patologias?
ALEXANDRE MENEZES Em uma nação democrática, as políticas públicas precisam ser elaboradas e aprovadas com plena participação de representantes da sociedade civil. Esses representantes também precisam manter forte incidência política em questões-chave e pautas relevantes, como as políticas de enfrentamento às doenças negligenciadas. Recentemente o Brasil foi reconhecido, durante uma assembleia da OMS, como modelo em termos participação da sociedade na formulação e controle social das políticas de saúde pública.
A participação e o controle social nas políticas de controle das doenças negligenciadas são um espaço legítimo para promover a conscientização e a ação contra doenças que historicamente não receberam a devida atenção. A sociedade civil organizada deve estar sempre presente e fortalecer o debate e as proposições de soluções para os desafios no combate às doenças tropicais negligenciadas.
Como o movimento que você participa dá voz a essas pessoas? E como ele influencia o debate das políticas públicas no Brasil?
ALEXANDRE MENEZES Um exemplo importante da participação da sociedade nas políticas de controle dessas doenças é o Fórum Social Brasileiro para Enfrentamento de Doenças Infecciosas e Negligenciadas. O coletivo é formado por lideranças e representantes de organizações que atuam no enfrentamento a doenças infecciosas e negligenciadas, professores, pesquisadores, alunos de instituições de ensino e pesquisa ao redor do país, profissionais de saúde e organizações não governamentais. O Fórum terá sua 9ª edição durante o Congresso Brasileiro de Medicina Tropical, que ocorrerá em São Paulo em setembro de 2024. Ele promove a sensibilização da opinião pública e dos formuladores de políticas sobre a importância de priorizar o combate às doenças negligenciadas.
É de grande importância para fomentar o diálogo entre diferentes setores da sociedade e promover a incidência política mediante temas relevantes e com grande repercussão social, evidenciar as melhores práticas para a implementação de políticas de prevenção, diagnóstico e tratamento para as doenças tropicais negligenciadas. Um dos pontos estratégicos sempre mencionados no Fórum é a necessidade de mais investimentos na pesquisa e no desenvolvimento de novas tecnologias para combater essas enfermidades.
Quais são os principais obstáculos que o movimento encontra?
ALEXANDRE MENEZES As pessoas que representam os movimentos sociais que atuam na luta para melhores políticas públicas e condições de vida estão imersas nos desafios diários da pobreza estrutural e estigma, que limita acesso ao diagnóstico e tratamento em serviços de saúde pública. Esses são obstáculos que afastam muitas vezes lideranças de seu papel na incidência política, quer seja pela falta de assistência para suas condições de saúde ou completa ausência de apoio para poder exercer esse papel social relevante.
É fundamental que lideranças e movimentos sociais sejam apoiados e não cooptados, pelos governos e outros poderes públicos, como judiciário e legislativo. ONGs também têm feito esse papel. O Fórum é um exemplo desse apoio aos movimentos sociais, há um conjunto de organizações sociais, lideranças, professores universitários, pesquisadores que se constituem como organizadores do Fórum. A NHR Brasil vem coordenando esse processo, mas o Fórum é um coletivo planejado anualmente por diferentes atores.
Qual a importância do combate ao estigma e ao preconceito e o que as demais pessoas deveriam saber.
ALEXANDRE MENEZES Estigma é uma associação entre a condição [patologia] e uma característica que a doença provoca como deformidade física, limitações de mobilidade, manchas, entre outros. A hanseníase, por exemplo, é uma doença negligenciada que carrega um forte estigma em seu entorno. As incapacidades, deformidade de membros, mudanças na cor da pele impõe à pessoa atingida a pressão que se arrasta há séculos, de se manter excluída da vida normal na sociedade.
Há diferentes fatores, como culturais e religiosos, que favorecem o preconceito com as pessoas afetadas por doenças como a hanseníase. Estigma estrutural construído historicamente. E apesar das evidências científicas que mostram que as pessoas que iniciam tratamento não transmitem mais a doença, ainda é frequente a associação que as pessoas fazem entre a marca inscrita no corpo de alguém cuja aproximação deve ser evitada. O estigma institucional infelizmente também é muito frequente. Pessoas são demitidas do trabalho, são orientadas a não participarem de encontros coletivos e muitas vezes, ao receber o diagnóstico, o paciente é mal-informado e até orientado a manter sigilo sobre a doença. Esconder a doença dos familiares ou dos vizinhos não é a forma de combater o preconceito.
Nesse sentido, a informação de qualidade, acessível e clara para todos os públicos, é a melhor forma de combater o estigma, mesmo assim isso não é uma tarefa simples, o estigma é complexo e requer envolvimento de diferentes atores e de políticas de governo que favoreçam que a informação seja capilarizada e que se apliquem medidas de prevenção às práticas discriminatórias e preconceituosas.
Quais os cuidados que jornalistas devem ter ao reportar sobre as doenças tropicais negligenciadas? Existem palavras ou termos que não devem ser utilizados?
ALEXANDRE MENEZES O compromisso com a verdade e ausência de conflitos de interesse é o primeiro cuidado. Informação acessível e com fonte segura também são essenciais. Os dados epidemiológicos sempre são um desafio para a informação jornalística, nem sempre são seguros. Por isso, é importante que as fontes sejam oficiais e que o jornalista seja capaz de questionar os números, sobretudo quando demonstram queda dos casos sem que efetivamente tenha havido ações que justifiquem. Com relação à linguagem a ser evitada, é a que gera “rótulos” como: leproso, hanseniano, chagásico entre outros. Evitar essas palavras é um importante passo, mas as atitudes discriminatórias são ainda mais difíceis de serem evitadas.
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