A lei californiana é um trem bala na contramão da reforma trabalhista brasileira

Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Por Rodrigo de Lacerda Carelli|JOTA

“Os jornais estampam a novidade: motoristas de empresas baseadas em aplicativos, como Uber, agora serão por lei considerados como empregados na Califórnia. Logo manchetes trazem o temor do fim dos bilionários negócios das plataformas, enquanto outros festejam a aquisição de direitos por esses trabalhadores, e alguns chegam a dizer que a lei californiana pode ser o farol para a regulação mundial da “Gig Economy”, a economia dos bicos, baseada na utilização de trabalhadores transformados em empreendedores de si mesmos e controlados por meio de algoritmos em plataforma digital.

No entanto, a nova lei – que aguarda sanção do governador do estado norte-americano – vai bem além de inserir no mundo dos direitos os infoproletários de plataforma. Ela procura lidar com toda a onda de exclusão de trabalhadores do mundo do direito pela contratação de empregados como se fossem autônomos ou independentes, alijados assim da proteção trabalhista.

O alvo da norma são todos aqueles que se encontram em situação de fraude trabalhista (“misclassification”), ou seja, de desvio da verdadeira classificação jurídica de empregados, e não apenas trabalhadores em aplicativos. São destinatários da nova norma manicures, caminhoneiros, faxineiros, trabalhadores da construção civil e diversos outros trabalhadores precários que são falsamente classificados como autônomos.

O mais interessante na lei é a forma e os caminhos pelos quais ela pretende inserir esses trabalhadores. Para nós brasileiros é imediatamente verificado que a norma norte-americana bate de frente com o que foi feito recentemente com a chamada Reforma Trabalhista.

Vamos primeiro situar a nova regulação. Ela vem com o objetivo expresso de codificar e explicitar a decisão da Suprema Corte da Califórnia conhecida como Dynamex, de abril de 2018, reconhecidamente um marco no combate à fraude na utilização da figura do trabalho autônomo (“independent contractors”) para esconder verdadeiras relações de emprego. Essa decisão, interpretando os termos legais “empregar”, “sofrer ou permitir” (“employ”, “suffer or permit”) implementou um novo tipo de teste para verificação da relação de emprego, denominado “Teste ABC”, que é muito mais amplo e favorável aos trabalhadores do que o utilizado anterior, denominado teste “Borello”.

Quando a lei diz que pretende codificar a decisão, ela quer dizer isso mesmo: colocar no Código de Trabalho. Sim, ao contrário do mito difundido (que encanta incautos) de que não há direito do trabalho nos Estados Unidos, na Califórnia encontramos um avançado e denso diploma codificado, o “Labor Code”, composto atualmente por 9104 artigos. Assim, a nova lei veio reformar o Código do Trabalho na parte geral relativa à relação de emprego e os dispositivos referentes ao empregado.

Além de modificar a forma de verificação da existência da relação de emprego, foi estipulada a presunção da existência da relação de emprego. Conforme a nova lei (Artigo 621), “qualquer indivíduo que fornece trabalho ou serviços em troca de remuneração tem o status de empregado e não de trabalhador autônomo, a menos que a empresa contratante demonstre todas as seguintes condições”, que são os itens a, b e c que dão nome ao “Teste ABC”:

(A) A pessoa está livre do controle e direção da entidade contratante em relação à execução do trabalho, tanto em relação ao disposto no contrato quanto de fato.

(B) A pessoa executa trabalho que está fora do curso normal dos negócios da entidade contratante.

(C) A pessoa habitualmente atua em atividade comercial, ocupação ou negócio estabelecido e independente da mesma natureza que o trabalho a ser executado.

Assim, enquanto na nossa legislação temos a exigência de requisitos para a relação de emprego, que devem concomitantemente estar presentes para se considerar a condição de empregado, na Califórnia a necessidade de demonstração da existência cumulativa de requisitos é exigida para negar a existência da relação empregatícia. É a utilização da velha regra que o comum se presume e a exceção deve ser provada. Assim, qualquer pessoa que presta serviços ou provê trabalho em troca de remuneração, em princípio, deve ser considerado empregado, a menos que certos requisitos sejam demonstrados.

Na Califórnia, fraudar a legislação trabalhista é conduta típica penal, como no Brasil (art. 203 do Código Penal, porém com interpretação demasiadamente restritiva da jurisprudência brasileira), tendo a lei norte-americana expandido a figura do empregado atingido e assim alargado o campo de aplicação desse dispositivo (“deturpação da natureza, duração ou condições de emprego”). Interessante notar que também é infração penal nesse estado norte-americano violar as regras de horas extraordinárias, descansos para repouso e alimentação e descansos semanais, bem como atrasar salários, descontos ilegais em gorjetas e não permitir a inspeção do trabalho.

Com o objetivo de garantir o cumprimento efetivo da lei e com receio que as empresas obrigassem os trabalhadores a arbitragem compulsória, a nova norma prevê uma espécie de ação civil pública para prevenir ou impedir a continuação da fraude (“misclassification”), que será ajuizada pelo Procurador-Geral (“Attorney General”) ou por procuradores de município (“City Attorney”) ou, com o seu consentimento,  pelo Ministério Público da cidade, podendo ser iniciada de ofício pelos órgãos públicos ou a partir de reclamação de uma comissão, servidor público, pessoa, corporação ou associação. Assim, é criada na Califórnia uma atuação muito parecida com a que realiza o Ministério Público do Trabalho no Brasil há mais de vinte anos.

Percebemos também que a reforma trabalhista na Califórnia vai na contramão da realizada aqui (e das mudanças que pelo visto estão em gestação): enquanto lá se amplia o escopo do direito do trabalho para incluir trabalhadores na sua proteção, aqui pretende-se dificultar a fruição de direitos por meio da exclusão de determinadas categorias do âmbito da proteção e alteração de institutos jurídicos como o da atividade-fim, sem contar na natureza restritiva de quase todos os seus dispositivos.”

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Fonte: JOTA
Data original de publicação: 20/09/2019

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