A pandemia de Covid-19 aprofunda e apresenta as gritantes desigualdades sociais do Brasil. Entrevista com Tiaraju Pablo D’Andrea

Imagem: Wilson Dias/Agência Brasil

“Tiaraju Pablo D’Andrea é doutor em Sociologia da Cultura, mestre em Sociologia Urbana e graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP. Trabalhou como pesquisador no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – Cebrap, entre 2001 e 2008, no Centro de Estudos da Metrópole – CEM, entre 2003 e 2009, e na Usina (Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado), entre 2006 e 2009. Atualmente leciona na USP e coordena o Centro de Estudos Periféricos.”

Por Patricia Fachin|Instituto Humanitas Unisinos

“Nas periferias das grandes cidades é perceptível o “abandono” da população mais pobre, que encontra inúmeras dificuldades para enfrentar a pandemia de Covid-19, diz o sociólogo Tiaraju Pablo D’Andrea à IHU On-Line. Coordenador do Centro de Estudos Periféricos, ele relata que o poder público de São Paulo ainda não fez nenhuma sinalização de implementar hospitais de campanha nas periferias. “Se estivesse de fato se planejando para o pior, o poder público já estaria tomando essa medida necessária. Montar hospitais de campanha no Estádio do Pacaembu ou no Complexo do Anhembi é importante, mas certamente esses locais atenderão primeiro à população de classe média alta moradora do entorno desses polos. Mais uma vez a periferia está sendo tratada como a não-cidade”, afirma.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Tiaraju Pablo D’Andrea comenta o cotidiano dos moradores das periferias paulistas e as dificuldades que enfrentam para lidar com a pandemia. No momento, assegura, eles estão fazendo uma escolha “entre ver o filho passando fome ou correr o risco de se infectar com o coronavírus. Na hora da decisão, a fome pesa mais porque é uma necessidade imediata. Isso explica por que tantos habitantes de favelas saem às ruas”. Além disso, menciona, “é impossível passar o dia com outras três pessoas em um ambiente de 30 metros quadrados. Para os mais pobres no Brasil, a rua sempre foi uma extensão da casa porque não cabe todo mundo dentro do domicílio. A questão do déficit habitacional se mostra de maneira patente”.”

Confira abaixo alguns trechos da entrevista

IHU On-Line – Que novos riscos a pandemia de Covid-19 traz para as pessoas que vivem nas favelas e periferias paulistas? Que carências ou situações são agravadas neste momento?

Tiaraju Pablo D’Andrea – A população mais pobre do Brasil está abandonada. Esse abandono é perceptível nas periferias de todas as grandes cidades. Estamos entrando em um ciclo parecido com o que ocorreu na década de 1990, quando a implementação do neoliberalismo redundou em um aumento exponencial da pobreza e dos homicídios. Foi um momento dramático.

Atualmente, estamos vivendo aquilo que se denomina “tempestade perfeita”, ou o momento único em que uma série de fatores conjugados produzem uma tragédia com danos irreparáveis. O filósofo Paulo Arantes discorreu bastante sobre esse termo. A “tempestade perfeita” deste momento histórico é causada pelo agravamento simultâneo de quatro crises que já ocorriam: crise econômica, crise política, crise social e crise sanitária. No entanto, todas essas crises que parecem que se encontram e se agudizam neste momento, são frutos de um processo histórico. São resultados de escolhas. Há um roteiro que vem sendo escrito e implementado nos últimos anos e que segue o script daquilo que Achille Mbembe conceituou como necropolítica.

É possível listar uma série de decisões tomadas pelos últimos dois governos do país e que construíram o cenário trágico de agora: o corte dos gastos em saúde com a PEC 95, que sucateou um sistema que já tinha problemas; a dispensa de 11 mil médicos cubanos, que fazem muita falta no atual contexto; o corte de investimentos em pesquisas científicas; o corte de investimentos em serviços públicos; a reforma trabalhista que desamparou milhões de trabalhadores; as medidas econômicas que aumentaram o número de desempregados e de trabalhadores informais, relegando uma grande parcela da população brasileira à condição de não possuir nenhuma proteção e nenhum direito social.

É neste contexto que o coronavírus aporta no Brasil, com a população trabalhadora e moradora das periferias totalmente fragilizada.

IHU On-Line – O coronavírus entra no Brasil, assim como na maioria dos países, pela classe média e alta. O que isso revela sobre essa pandemia? As ações, as narrativas e as medidas seriam outras se essa fosse uma doença que se alastrasse primeiro nas periferias?

Tiaraju Pablo D’Andrea – A pandemia ocasionada pelo novo coronavírus aprofunda e apresenta as gritantes desigualdades sociais do Brasil. Sociologicamente, a situação serve quase como um artifício metodológico para entendermos como a sociedade brasileira funciona. Aquilo que estava velado se escancara.

Existe uma pequena parcela de brasileiros que possui a possibilidade de se isolar em mansões na praia ou em gigantescas casas de campo. Estão tomando esta situação como uma espécie de férias. Esta parcela não está preocupada se o mundo explodir lá fora. No lado oposto está o Brasil de 30 milhões de pessoas sem água encanada, o Brasil de 12 milhões de desempregados, o Brasil de 13 milhões e meio de pessoas vivendo na extrema pobreza. Existe o Brasil da rede privada de saúde, que possui 4,9 UTIs por 10 mil habitantes, e o Brasil da rede pública, que possui 1,4 UTIs para a mesma quantidade de habitantes.

Governadores e prefeitos publicaram medidas para o fechamento do comércio, de shoppings, academias e universidades. No entanto, ônibus, metrôs e trens seguiram lotados de trabalhadores obrigados a se dirigirem aos seus postos de trabalho e expostos aos riscos.

As medidas pelo isolamento físico são urgentes e necessárias. É a única forma de evitarmos a propagação do vírus e mortes em massa. No entanto, em um país como o Brasil, essas medidas devem vir acompanhadas de auxílios estatais aos mais pobres. Também os patrões teriam obrigação de pagar seus funcionários para estes ficarem em casa e terem a possibilidade de proteger suas famílias. Nos Estados Unidos e em muitos países da Europa, a intervenção dos governos foi no sentido de financiar a economia, desde as grandes corporações até os mais pobres que, recebendo auxílios, aumentam o consumo interno. E não só nos países ricos essas medidas foram tomadas. Na Venezuela o governo vai pagar o salário dos trabalhadores de pequenas e médias empresas privadas e as demissões estão proibidas. Na Argentina medidas parecidas foram tomadas: o governo vai auxiliar no pagamento dos salários de funcionários de pequenas empresas e proibiu demissões. Na contramão do bom senso e do mundo, o governo brasileiro juntamente ao patronato que o circunda propôs o contrário: demissões, cortes e rebaixamento de salários. Ao trabalhador pobre resta escolher se morrerá asfixiado pelo coronavírus ou pela falta de dinheiro.

IHU On-Line – O governo federal tem adotado medidas emergenciais, como o coronavoucher. Como vê esse tipo de medida e o que as ações do governo para atender populações mais pobres revelam sobre a visão do Planalto acerca das periferias do Brasil?

Tiaraju Pablo D’Andrea – A visão do planalto é a visão das elites brasileiras. Bancos, patrões, empresários, usurários e a lumpemburguesia são afagados enquanto a população mais pobre é empurrada para a morte. Vale lembrar que o governo rapidamente destinou 1 trilhão e 200 bilhões aos bancos, o maior montante da história. No mesmo diapasão, Bolsonaro resistiu ao máximo em pagar miseráveis R$ 600 aos mais pobres.

A pandemia no Brasil somente acelerou as leis do capitalismo brasileiro, sempre caracterizado por altas taxas de lucro e muita exploração. Pressionado pelo patronato, o governo federal editou leis que permitem aos empregadores cortarem salários quando mais a população necessita de recursos. Seguindo essa tônica, incentivou a população a sair às ruas para trabalhar, não se importando com os riscos à população. Quando se afirma que o “Brasil não pode parar”, devemos ler “a exploração não pode parar”. Em síntese: tudo se oferece à elite que faz carreata em carros com ar-condicionado e tudo se tira dos mais pobres. É uma política genocida. Não há outro termo.

Acesse aqui a entrevista completa

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos
Data original de publicação: 12/04/2020

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