Reforma trabalhista gerou nova forma de law fare: a criminalização do trabalho

Imagem: Rawpixel

Por Luiz Carvalho | Sindipetro SP

Na esteira da reforma trabalhista, que passou a vigorar em julho de 2017, surgiu uma nova modalidade de law fare, como é conhecido o ativismo de tribunais e magistrados não exatamente em defesa da lei ou do direito, mas de fins específicos de grupos localizados.

A reforma trabalhista gerou, em segmentos do Judiciário, a criminalização dos direitos trabalhistas.O caso dos Correios, sintomático dos efeitos da reforma trabalhista, é um bom exemplo que foi tecido em trama nada aleatória.

Convocado pela empresa a arbitrar sobre tema estranho à sua área, o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou liminar que havia sido concedida pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST) – este sim, vocacionado para o assunto – e decidiu que o acordo coletivo firmado entre os trabalhadores e os Correios não valeria até o ano seguinte e expirava ali.

Era 21 de agosto, quarto dia da greve, iniciada para reivindicar a manutenção das cláusulas, já que as tentativas de negociação com a diretoria da empresa, em período de data-base, haviam fracassado.

Um mês depois, já sem o apoio da liminar que protegia as cláusulas trabalhistas firmadas ao longo de anos de mobilização e negociação, a greve dos trabalhadores dos Correios foi a julgamento no TST, como num retorno ao palco apropriado. Mas o enredo parecia escrito.

Conciliação? Divergência

Apesar de duas tentativas de conciliação feitas por integrantes do tribunal, o ministro Ives Gandra da Silva Martins Filho, ex-presidente da corte e sempre defensor da reforma trabalhista, abriu divergência com a relatora da ação, Kátia Magalhães Arruda. Katia propunha conciliação entre as partes, que minimizasse a perda de direitos para os trabalhadores.

A manobra de Gandra, regimentalmente prevista, mas de desdém com as prerrogativas da relatora, permitiu-lhe puxar votos da maioria dos ministros do TST e impor dura derrota aos grevistas.

Das 79 cláusulas existentes na convenção, anteriores à greve, restaram apenas 29. Entre as que caíram, auxílio-creche, licença-maternidade de 180 dias e auxílio para casais que trabalham na empresa e têm filhos com deficiência.

Os grevistas, que não pediam novos direitos, apenas a preservação deles – alguns com mais de 15 anos de vigência – nem tentaram relativizar a derrota, como é comum quando nem tudo sai como previsto em uma campanha salarial.

“A interferência do STF no processo é algo que nunca vimos antes. A direção da empresa nos ignorou. E o gesto do Gandra foi um desrespeito, um golpe”, comenta Amanda Corsino, presidenta do sindicato da categoria no Distrito Federal e secretária-adjunta de Relações do Trabalho da CUT Nacional.

Mas esse ativismo judiciário em relação aos direitos trabalhistas já se manifestava antes do episódio recente envolvendo os Correios.

Com fleuma de magistrado, o vice-presidente do TST, ministro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, também critica a interferência do Supremo Tribunal Federal na seara trabalhista.

Ao se referir à decisão da corte de que a regulamentação das terceirizações nas atividades-fim é constitucional, ocorrida em junho deste ano, Mello Filho afirma: “Para que se houvesse uma mudança, ela não deveria ter sido pela via do Judiciário, sobretudo do Supremo, que não é uma questão da singularidade deles, eles não sabem como flui a vida nessa relação capital-trabalho”.

Perseguição

O caso envolvendo as negociações entre os Correios e seus trabalhadores, no entanto, firma-se como marco na escalada do law fare trabalhista. “É o exemplo mais simbólico dos efeitos da reforma trabalhista e do seu uso em desfavor dos trabalhadores. A empresa passou a usar o argumento da não-ultratividade (direitos conquistados em convenção coletiva anterior deixam de valer a cada data-base) para começar a diminuir o que os trabalhadores tinham em acordo coletivo”, comenta Eymard Loguercio, advogado trabalhista.

Na opinião dele, a empresa começou a se apropriar da nova legislação no momento em que se recusou a negociar, já de olho nas vantagens que representaria a eclosão de uma greve.

“A Justiça do Trabalho só vai mediar uma negociação de comum acordo. Mas, se há uma greve, ela pode examinar o conflito independentemente das partes”, diz.

Quando o TST dá liminar favorável aos trabalhadores, o recurso da empresa ao STF é outro reflexo da reforma e do que o advogado classifica de “inflação de poder” que o Supremo vem acumulando desde o julgamento da ação penal 470, do chamado “mensalão”.

“A AP 470 desencadeia uma forma de atuação do Supremo muito diferente da tradicional. Foi na 470, antes mesmo da Lava Jato, quando o tribunal passa a examinar e legislar – porque é isso, o tribunal acaba criando regras- sobre determinadas questões que não estão diretamente escritas na Constituição, mas que tem algum apelo midiático ou clamor de setores dominantes. E, no caso trabalhista, esse apelo é claramente o apelo empresarial, que afirma que nossa lei é muito protetiva e que isso dificulta a atividade econômica”, analisa Eymard.

Constituição remendada

Embora haja matérias de ordem trabalhistas inscritas na Constituição, o que significa que nem sempre análise do Supremo sobre o tema represente anomalia, a “inflação de poder” da corte já atropela a própria Carta Magna e abre caminho para mais rebaixamento de direitos.

Isso ocorreu, por exemplo, quando o tribunal, no mês de abril, excluiu a necessidade de negociação coletiva para a redução de salário ou suspensão temporária de contrato.

Mais do que a decisão em si, proferida quando o STF julgou a eficácia das medidas provisórias para enfrentamento da pandemia de Covid-19, são as justificativas dadas para os votos favoráveis ao governo que revelam muito da criminalização do trabalho e seus direitos por parte do Judiciário.

Para colocar de lado item expresso na Constituição, o de que não se reduz direitos sem acordo coletivo, parte dos ministros do Supremo afirmou que não havia conflito em causa.

Para justificar seu voto, Alexandre de Moraes afirmou que existia concordância das partes quanto ao desejo de manter empregos, o que descartaria necessidade de negociação.

“Essa lógica de que se pode rejeitar acordo coletivo apenas pelo simples fato de estar empregado reduz o direito do trabalho ao fato de ter um emprego. É como se o fato de ter trabalho fosse, por si só, privilégio”, critica Loguercio.

O que esta reportagem chama de law fare trabalhista pode ser constatado também em prática recente do TST contra suas próprias instâncias regionais.

A Corregedoria e a Presidência – depois de Gandra assumiu o posto Maria Cristina Peduzzi, também pró-reforma trabalhista – cassaram desde o início da pandemia ao menos 20 liminares movidas pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e concedidas por diferentes tribunais regionais, os TRTs.

Todas as liminares envolviam pedidos de medidas contra a contaminação pelo coronavírus, como o fornecimento de equipamentos de proteção.

Lei não gera emprego

As cassações – revogação de atos dos tribunais de instâncias inferiores – são interpretadas como tentativa de centralização, outro reflexo da reforma trabalhista, para evitar uma jurisprudência que gradativamente seja favorável aos trabalhadores e desfavorável à lógica da reforma.

Um ativismo e processo de interferência movido não pela ideia de justiça ou cumprimento da lei, mas por um uso em favor de interesses de grupos. As cassações estão relatadas na página da corregedoria do TST na internet.

Enquanto isso, o mercado de trabalho continua estreito e precarizado, contrariando o mais alardeado dos argumentos de venda apresentados pelos defensores da reforma trabalhista.

“Não houve redução qualitativa quanto ao objeto das reclamações trabalhistas. Eles diziam: ‘ah, ali na Justiça do Trabalho se pede de tudo, qualquer coisa, lá se pode tudo’. Hoje, as violações do direito do trabalho denunciadas permanecem as mesmas, ou seja, pedido de verbas de terminação de contrato”, afirma o vice-presidente do TST, Mello Filho. (…)”

Clique aqui e leia a reportagem completa

Fonte: Sindipetro SP

Data original da publicação: 27/10/2020

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