O que é mais velho: a tentativa de proteger pessoas ou o intuito de restaurar condições socioeconômicas do século XIX?
Por José Dari Krein e Renata Dutra | IHU
“Qual é a questão essencial colocada para pensar as relações de trabalho no Brasil contemporâneo?”
A indagação é de José Dari Krein, professor do Instituto de Economia da Unicamp/CESIT e integrante da Coordenação da REMIR-Trabalho e Renata Queiroz Dutra, professora de Direito do Trabalho da Universidade de Brasília e presidente da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho – ABET (2022-2023).
Eis o artigo.
Para começar a discutir o que são “velhas questões”, pode-se reportar à realidade do século XX ou, quiçá, do século XIX. O que diferencia os dois? No século XIX, havia a compreensão predominante que qualquer direito ou proteção social era algo prejudicial ao desenvolvimento capitalista. Como consequência, prevalecia um sistema de relações absolutamente flexível, em que o poder de determinar as condições de trabalho era exclusivo do arbítrio do empregador. Algo muito próximo do que é defendido em texto editorial da Folha de São Paulo, publicado em 15/10/2023 e subscrito por Adriano Machado (Reuters) sob o sugestivo título “Ecos varguistas“.
No século XX, fruto do avanço da democracia social, houve um entendimento da necessidade de preservar a dignidade das pessoas que precisavam trabalhar para sobreviver, o que ficou expresso, por exemplo, nas convenções da OIT. Prevaleceu, então, uma compreensão de que o mundo não se reduz à dimensão econômica, sendo necessário resguardar outras dimensões da vida humana. Por isso, surgiram os direitos sociais, as leis trabalhistas e o reconhecimento dos sindicatos.
Na atualidade, a defesa de uma sociedade sem direitos e proteções sociais volta à cena, sob a falsa alegação de que as mudanças tecnológicas e produtivas o exigem. O problema é que ideias como as defendidas no editorial mencionado remontam ao século XIX, retrocedem mesmo em relação ao ideário do século XX, que informa a era Vargas no Brasil, quando se constituiu uma legislação inspirada nos países centrais e na doutrina humanista cristã. Diferentemente do que se defende ali, a questão não é negar as mudanças, que são reais, mas compreender que as relações sociais e a forma como se organiza a economia, são expressões não apenas da tecnologia ou das transformações produtivas, mas também das relações de poder presentes na sociedade.
O argumento do editorial implica submeter os/as trabalhadores/as a um quadro de insegurança, bem como a um enfrentamento individualista do contexto e das questões sociais, o que acentua a vulnerabilidade dos indivíduos em face do poder econômico. Uma das principais novidades do cenário em que vivemos é a perversa combinação de avanços tecnológicos e pouquíssimas oportunidades de trabalhos de qualidade, aptos a oferecer aos sujeitos condições de vida digna.
As pessoas lutam pela sobrevivência em um cenário no qual 56 milhões de brasileiros/as estão na extrema precariedade (soma dos informais com os que buscam trabalho); no qual 36% dos jovens nem trabalham e nem estudam; em que somente 1 em cada dois ocupados/as tem acesso aos direitos trabalhistas formalmente. As considerações, portanto, sobre a precarização do trabalho e sobre a vulnerabilidade dos trabalhadores não são “equivocadas”, “temerárias” nem se qualificam como meras “bravatas”, mas decorrem da constatação empírica sobre a composição atual do mercado de trabalho brasileiro e o visível aprofundamento da desigualdade social. Hoje, no país, grande parte das ocupações existentes exige uma escolaridade muito baixa e apresenta baixas perspectivas de inserção social estáveis e dignas.
Ao imputar o caráter de “velho” aos esquemas mínimos de proteção social, o “novo” corresponderia a um mundo do trabalho precário e polarizado entre poucas ocupações de qualidade e uma imensidão de ocupações com baixos salários e sem perspectiva profissional. A retórica do novo, que não passa do velho liberalismo sendo mobilizado por forças sociais que sempre defenderam uma sociedade em que todos se submetem à concorrência do mercado, ignora todas as preocupações mais qualificadas do debate público atual sobre a importância da redução dos níveis de desigualdade para a construção de desenvolvimento e sustentabilidade. Seria novo gerar uma sociedade com níveis de desigualdade nunca vistos na nossa história? Seria novo condenar parte da geração futura à exclusão do mercado de trabalho? Seria novo submeter as pessoas aos riscos e ao adoecimento pelo excesso de trabalho ou pelo trabalho inseguro em termos biopsíquicos? Seria nova uma sociedade sem direitos e proteções sociais, totalmente regida pelos imperativos do mercado?
As soluções para os problemas sociais não passam por uma frágil perspectiva de autonomia e escolha individual. A sociedade precisa produzir as condições para gerar oportunidades de trabalho e coesão social. Talvez uma perspectiva realmente nova passe pela abordagem das questões relacionadas à falta de oportunidades, sobretudo para a juventude e decorrentes do avanço da tecnologia, a partir da construção de políticas para gerar trabalhos socialmente relevantes que resolvam os problemas sociais e ambientais da nossa época, de modo a expandir os direitos e as proteções sociais a todas as pessoas que trabalham, independentemente da sua condição na ocupação, e de forma útil ao cultivo de condições necessárias ao bem comum.
Novo é pensar um outro projeto desenvolvimento que seja capaz de incluir e resolver os nossos gargalos econômicos, sociais e ambientais. Parece óbvio que tolerar um modelo no qual a dinâmica de negócios implique que as pessoas trabalhem pressionadas por mais de 10 horas por dia, como ocorre com parte significativa dos trabalhadores controlados por plataformas digitais, implicará no aprofundamento de problemas sociais, urbanos, ambientais e previdenciários (decorrentes de adoecimentos) em futuro próximo.
Talvez, o efetivamente novo não seja uma mera adaptação à dinâmica de negócios que aproveitam oportunidades de geração de lucro nas brechas da regulação social, mas a criação de espaços nos quais seja possível mudar a lógica de produção, a fim de que seja menos destrutiva do ponto de vista ambiental e mais inclusiva do ponto de vista social.
O novo é fazer com que os avanços das tecnologias sejam apropriados pelo conjunto da sociedade. O novo é olhar para o século XXI, com as demandas políticas e o acúmulo de experiências do passado, e não o retorno ao limitado repertório político-jurídico do século XIX, que falhou em múltiplos aspectos, inclusive na manutenção da paz social.
É preciso aperfeiçoar as perguntas para poder produzir respostas melhores. O olhar de juristas, economistas e sociólogos, dentre diversos outros estudiosos, passa por se interpelar sobre como resolver efetivamente os problemas sociais, ambientais e da vida humana de forma mais harmoniosa entre os seres humanos e com a natureza. Por mais importante que seja a economia, ela também é uma esfera da existência, que é determinada e determina a vida social.
Como pesquisadores e pesquisadoras, consignamos todo o nosso apoio a iniciativas que procurem preservar as pessoas, as organizações coletivas, e as perspectivas comprometidas com uma sociedade garantidora de direitos universais, em sintonia com os desafios sociais e ambientais da nossa época.
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Fonte: Instituto Humanistas Unisinos
Data original de publicação: 20/10/2023