A evolução do emprego
Por Nelson Marconi | A terra é redonda
O emprego cresceu, porém, enquanto a economia brasileira não for alavancada por setores mais dinâmicos, a geração de empregos continuará concentrada em atividades com menores remunerações
A economia brasileira está vivenciando um crescimento do emprego que inclui o avanço do número de ocupados com carteira assinada. É certamente uma boa notícia, e o emprego tem acompanhado o crescimento da renda, o que também é saudável. Mas qual é a qualidade dos postos de trabalho que vêm sendo gerados? Os avanços estão ocorrendo em setores que pagam bons salários e os regimes de trabalho apontam para vínculos mais estáveis e com maior proteção social?
Para analisar esta questão, vamos comparar o quadro do emprego em três períodos semelhantes de anos distintos: os primeiros trimestres de 2012, 2023 e 2024. Por que esses três períodos? Devido à disponibilidade de dados – os microdados referentes ao primeiro trimestre de 2024 são os mais recentes –; à possibilidade de comparação entre tal período e o primeiro trimestre de 2023, que possibilita traçar a evolução do mercado de trabalho durante o primeiro ano do governo Lula (com alguma defasagem, por sinal desejável neste caso); e ao início da série histórica da PNAD Contínua no primeiro trimestre de 2012. Ao compararmos períodos correspondentes, reduzimos os efeitos derivados de fatores sazonais.
Comecemos pela avaliação da evolução do período mais longo – 2012 a 2024 –, que contribuirá para a análise posterior do período 2023/2024. Os dados se encontram na tabela 1. Houve uma mudança substancial nos vínculos empregatícios e na composição setorial no mercado de trabalho durante esses 12 anos. A contribuição dos empregos com carteira para o crescimento do total de ocupações foi mais significativa que a observada para os sem carteira. Porém, o grande responsável pela evolução do número de ocupados foi o grupo dos trabalhadores por conta própria – respondem por 43% da variação observada no período. E entre eles, o setor que mais cresceu foi o de transportes, confirmando a propalada uberização do mercado de trabalho. Além desse setor, a ocupação em outras atividades de serviços, que incluem diversos serviços pessoais, também cresceu entre os por conta própria.
Mas não foi apenas entre atividades classificadas, segundo a teoria, como manuais não rotineiras que se observou o crescimento acentuado dos ocupados sob este regime de trabalho. Também se observou semelhante movimento entre as atividades profissionais, científicas e técnicas. Portanto, o chamado processo de pejotização se estendeu a vários setores de serviços com características distintas. Como resultado, o cenário atual revela uma participação declinante dos contratos de trabalho com menor grau de proteção social, ainda que sejam mais flexíveis, o que implica queda da arrecadação tributária oriunda do trabalho, criando problemas para o próprio financiamento da previdência.1
Seguindo tendência mundial, durante 2012 e 2024 houve queda no emprego na agricultura e aumento nos setores de serviços. Atividades manuais ou rotineiras como transporte, serviços pessoais (outras atividades), comércio e alojamento e alimentação contribuíram com 57% do crescimento do emprego ao longo do período analisado. A manufatura, surpreendentemente, respondeu por apenas -0,5% da variação do emprego nesse intervalo. A força de trabalho na indústria conta com uma participação maior de empregados com carteira que a maioria dos setores de serviços, e tal característica se manteve ao longo do período analisado. Esse fato pode ter contribuído para a maior estabilidade do emprego no setor.
Tabela 1: Contribuição percentual para a diferença no total de ocupações entre 2024 e 2012
Tabela 1: Continuação
Por outro lado, nem só de notícias ruins viveu o mercado de trabalho durante esse período: seguindo também a tendência registrada em outros países, a contribuição dos setores de educação e saúde foi positiva, em virtude do crescente protagonismo que essas atividades assumiram nas sociedades modernas, bem como de atividades profissionais e científicas, acompanhando a modernização de algumas áreas de serviços.
Esse cenário – uma combinação entre a contribuição mais acentuada, para a evolução das ocupações, de setores que ofertam serviços tradicionais e de outros que ofertam serviços mais sofisticados – tem sido a tônica dos mercados de trabalho das economias ocidentais e caracterizam a chamada polarização do emprego que resulta também em maior diferenciação salarial. Portanto, o que ocorreu no Brasil seguiu o que prevaleceu nas economias que se desindustrializaram.
Vejamos no gráfico 1 a diferença entre os salários nos setores modernos e tradicionais. Há também uma diferença entre as remunerações dos por conta própria: aqueles em atividades que demandam maiores habilidades se inserem bem nesse tipo de relação de trabalho, mas os trabalhadores de tarefas manuais e operacionais perdem quando deixam o setor formal da economia.
Bem, e esse quadro mantém-se na conjuntura atual? Em boa parte, sim, e ajuda a explicar o crescimento do emprego no passado recente mesmo em uma situação na qual a economia brasileira se ressente de maior dinamismo, dado que mantém uma taxa baixa de crescimento há anos, apoiada no setor primário exportador, pouco intensivo em mão de obra, e em serviços pessoais, em vez de apoiar-se na manufatura e em serviços empresariais, como ocorre na Ásia.
Os setores que mais contrataram entre os primeiros trimestres de 2023 e 2024 foram transportes, saúde e atividades administrativas, seguidos por indústria de transformação (novamente, bem-vinda exceção!!!) e comércio. Quando analisamos, de forma mais desagregada, as ocupações criadas por setor associadas ao tipo de vínculo (vide tabela 2), os destaques são justamente as ocupações com carteira na área administrativa e de suporte, comércio e transporte; as sem carteira no trabalho doméstico e os por conta própria no setor de transportes (neste último caso, reforçando o processo de uberização da economia). Juntos respondem por 42% do crescimento do emprego total entre os dois períodos. Podemos observar no gráfico 1 que as remunerações médias praticadas para as ocupações nas atividades administrativas e de suporte, com carteira assinada e os trabalhadores domésticos, por exemplo, estão entre as menores no mercado de trabalho brasileiro. Idem para o comércio.
Gráfico 1: Salário médio setorial
A exemplo da análise para o período mais amplo, há notícias positivas também: a contribuição, ainda que mais modesta, da indústria de transformação para a geração de empregos com carteira, bem como das ocupações relacionadas às atividades profissionais, informação e comunicação e saúde. Ainda assim, não constituem uma variação que possibilite ditar os rumos do emprego no país.
Assim, ao que tudo indica, enquanto a economia brasileira não for alavancada por setores mais dinâmicos, a geração de empregos continuará concentrada em atividades com menores remunerações; tampouco a elevação do nível de emprego poderá implicar superior crescimento econômico, porque não gerará um estímulo à demanda suficiente para tal. A polarização no mercado de trabalho também prosseguirá.
Tabela 2: Contribuição percentual para a diferença no total de ocupações entre 2024 e 2023
Tabela 2: Continuação
Ainda que devamos comemorar o aumento observado do emprego, o seu direcionamento para ocupações em que os trabalhadores recebem os melhores salários continuará dependendo da retomada da produção em setores que gerem maior valor adicionado e impliquem avanço tecnológico e encadeamentos produtivos; porém, com o nível de taxa real de juros que praticamos, será muito difícil alcançarmos uma retomada dos investimentos em setores que poderiam viabilizar a virada necessária em nossa estrutura produtiva.[i]
*Nelson Marconi, economista, é coordenador executivo do Centro de Estudos do Novo Desenvolvimentismo da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP).
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Por Nelson Marconi | A terra é redonda
Data original de publicação: 20/07/2024