A face ruralista das plataformas digitais

Foto: Dan Meyers/Unsplash

Por Ana Claudia M. Cardoso e Lucia Garcia | Outras Palavras

Microsoft, Amazon e Syngenta investem pesado em tecnologias direcionadas inclusive aos pequenos e médios agricultores. Sob o discurso de otimização, capturam dados — e intensificam uso de venenos, o endividamento e a produção de commodities

> Este artigo integra as discussões sobre o espraiamento do processo de digitalização da economia, sobretudo no que se refere às empresas-plataforma de trabalho, no Brasil. São publicadas semanalmente em Outras Palavras e fazem parte de duas edições da Revista da Faculdade do Dieese de Ciências do Trabalho. A publicação é fruto de parceria com a Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (REMIR) e a Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (ABET). Leia outros textos desta série sobre as várias faces da precarização do trabalho.

> Título original: Quando as plataformas digitais chegam ao campo: as tendências do ruralismo digital e a uberização da agricultura

O que há de similar entre empresas de tecnologia relativamente novas como Microsoft, Amazon, Facebook e as antigas Basf, Syngenta e Bayer? Além do fato de serem transnacionais, todas elas buscam se tornar plataformas digitais. Só isso? Não. Todas são importantes fornecedoras de produtos e serviços para a chamada agricultura digital. O neoliberalismo parece avançar na conversão de toda a agricultura em agrobusiness. Embalada por alusões à indústria 4.0 e pelo discurso de consultores de agências internacionais, como Banco Mundial e Fórum Econômico Mundial, a palavra de ordem da transformação digital no campo, vai se convertendo em plataformização.

Em outubro de 2018, o bilionário Bill Gates escreveu em seu blog que “mais de três quartos dos pobres do mundo dependem da agricultura para ganhar a vida. Se vamos vencer a luta contra a pobreza, devemos ajudar os agricultores – e acredito que o FarmBeats pode ser uma ferramenta poderosa”1. Sempre com um discurso desinteressado, mas que frequentemente aponta para um produto ou serviço de empresas que possui uma boa posição acionária, Gates copiou o velho mote da indústria de transgênicos de que uma determinada solução tecnológica é imprescindível para o combate a fome. Ocorre que nem a fome, nem a pobreza se origina na falta de tecnologia, mas em uma estrutura socioeconômica chamada capitalismo.

FarmBeats foi a grande entrada da Microsoft rumo a plataformização do campo. “Nosso objetivo é permitir a agricultura orientada por dados”2, dizia o texto do site da Microsoft lançado em 2015. Reunindo dispositivos de IoT (Internet das Coisas), sensores, energia solar, comunicação sem fio com protocolos wi-fi ou em espectro aberto aos sistemas algoritmos de tratamento de dados como modelos de aprendizagem de máquina, a Microsoft realizou testes em uma série de fazendas. Após alguns meses, a corporação resolveu inserir o FarmBeats no seu esquema de nuvem chamado Azure.

Na realidade, a Microsoft optou pela estratégia de criar um framework, uma estrutura acessível remotamente, para coletar dados e tratá-los com seus algoritmos de aprendizagem visando atrair startups e empreendedores que queiram fazer negócio com os agricultores. Por isso, a aposta é no Azure FarmBeats. Ela pretende ser a plataforma que reunirá dados de prestadores de serviços, de desenvolvedores de equipamentos e de agricultores que terão os dados das suas terras e plantações reunidos nos sistemas de Inteligência Artificial da Microsoft.

Bill Gates não está sozinho nessa jornada pois os produtores de venenos também descobriram a plataformização. A Syngenta é uma velha conhecida na agricultura brasileira. Lidera a produção de transgênicos no país. Em 2017, a empresa que tinha sede na Suíça foi adquirida pela China National Chemical Corporation (ChemChina), uma estatal chinesa. Percebendo a entrada das Big Techs no campo, a Syngenta foi na direção da plataformização, lançando a plataforma Cropwise que, segundo seu site, “une tecnologia e inovação a ferramentas que solucionam os desafios enfrentados diariamente pelo produtor brasileiro na sua operação. A partir de softwares que usam inteligência artificial para tornar a gestão e a produção mais eficazes, você potencializa seus rendimentos”3.

Segundo a Syngenta, a ferramenta do Cropwise Protector é utilizada por 2 mil produtores em 3 mil fazendas que perfazem 3 milhões de hectares no país. Desse modo, a Syngenta concentra dados dessas terras, da análise de solo, sua umidade, mapas de calor, insumos aplicados e das decisões tomadas pelos agricultores. As interfaces da plataforma Cropwise são acessíveis pelo computador ou pelo celular e se propõe apoiar o agricultor na tomada de decisões, no monitoramento digital e na análise da eficiência da equipe. Assim, a Syngenta vai coletando dados não somente dos solos e das plantações, mas do desempenho dos insumos aplicados, dos fertilizantes adotados, dos resultados obtidos, da performance dos trabalhadores e demais integrantes da equipe de campo.

A BASF, empresa de capital alemão, é a maior empresa química do planeta. Diante da evidente digitalização e provável plataformização do campo que poderia deslocá-la nas redes de fornecimento de produtos para os agricultores, a BASF lançou a “xarvio” que desenvolve soluções digitais para otimização de cultivos e digitalização da agricultura4.

A xarvio Scouting oferece ao agricultor, a partir das imagens obtidas por satélites, drones ou enviadas pelo celular do agricultor, a identificação das chamadas ervas daninhas, insetos indesejáveis, reconhecimento de doenças, estimativa de absorção de nitrogênio na cultura, quantificação de danos nas folhas, visão de áreas circundantes e alertas sobre o espraiamento de doenças e pragas. A xarvio Field Manager está disponível como aplicativo móvel e versão para computadores na Europa e Estados Unidos.

Essas plataformas se beneficiam dos efeitos de rede e das barreiras de entrada para organizar um sistema de interações a partir do zero. Quando entramos em uma rede e ela tem poucos integrantes, em geral, nos desinteressamos e a abandonamos. Por isso, a construção de qualquer plataforma requer um impulso muito grande para vencer o momento crítico que constitui o seu início. A combinação de estratégias de marketing, promoções, perfis e interações fakes e muito capital podem fazer parte da implementação. Ao crescer, a plataforma se beneficia do grande número de usuários ofertando um bem ou serviço e muitas pessoas buscando essas ofertas. Atingir essa condição é um grande desafio.

As empresas que estão implantando plataformas na agricultura ou são do agronegócio ou grandes Big Techs, como Microsoft e Amazon, que se beneficiam de uma quantidade suficiente de capital para vencer o momento crítico inicial e engendrar feedbacks positivos que aumentam os chamados efeitos de rede. As economias de rede tendem ao monopólio ou a uma estrutura de oligopólios, dizem alguns economistas. Explorando a preferência das pessoas por participarem de redes maiores pelas vantagens e facilidades que possuem, o criador da Ethernet5, Robert Metcalfe lançou a seguinte formulação: o valor de um sistema de comunicação cresce na razão do quadrado do número de usuários do sistema. Esse enunciado passou a ser conhecido como Lei de Metcalfe,

Nesse sentido, a Grain acertou em cheio ao alertar que a plataformização do campo irá criar mais concentração de riqueza e poder em grandes corporações. A Grain é uma organização não-governamental que apoia movimentos sociais e pequenos agricultores e luta pela defesa da biodiversidade e pelo controle comunitário dos sistemas alimentares. Em janeiro de 2021, a Grain publicou o relatório denominado “Controle digital: a entrada das Big Techs na produção de alimentos e na agricultura (e o que isso significa)”6, descortinando a cadeia da plataformização.

As grandes plataformas estão organizando um circuito de controle da agricultura a partir da integração de empresas de diversos tamanhos e que oferecem produtos (tratores, drones, pesticidas, etc), organizam a logística, o financiamento, a distribuição e comercialização de produtos. Pelo lado dos insumos, o agronegócio se une à tendência ao induzir produtores rurais a utilizar aplicativos de celular para fornecer dados, em troca do oferecimento “recomendações” para eles. Pelo lado da produção, vemos que grandes corporações de plataformas eletrônicas estão investindo para entrar no setor e assumir o controle da distribuição de alimentos. Juntas, elas favorecem o uso de insumos químicos e maquinário de alto custo, além de também promover a produção de commodities para o setor corporativo em detrimento a mercados locais. Incentivam a centralização, concentração e uniformização, além de serem suscetíveis a casos de abuso e monopolização.7

Outro componente da plataformização da agricultura não é exclusivo do campo. As plataformas são grandes destinos do capital financeiro para sua reprodução. Tanto as plataformas quanto o capital financeiro são fundamentais para o processo de expansão do neoliberalismo, principalmente, organizando o gigantesco processo de endividamento dos assalariados e sua submissão aos ditames do capitalismo de controle. Com a coleta e tratamento de dados do cotidiano dos viventes endividados, as plataformas oferecem insumos estratégicos para o marketing que se torna o mais eficaz instrumento de controle social e da financeirização da vida.

O Laboratório de Aprendizagem de Finanças Rurais e Agrícolas da Fundação Mastercard (The Mastercard Foundation Rural and Agricultural Finance Learning Lab) com o apoio da Usaid, Feed the Future e da Small Foundation já explicitou que a perspectiva é de acelerar a penetração da financeirização no campo. Poderíamos pensar apenas positivamente e focalizar as vantagens dos financiamentos aos pequenos e médios agricultores. Todavia, as plataformas estão organizando em suas cadeias, que vão dos dados e análises disponíveis para o agricultor à entrega de insumos das empresas parceiras, da distribuição da safra chegando a um conjunto de produtos financeiros e propostas de financiamento dos agentes ligados às plataformas. O risco é grande para os pequenos e médios que ficam nas mãos de grandes redes de reprodução do capital. Não podemos esquecer que uma das lógicas da doutrina neoliberal é a fidelização das famílias ao endividamento contínuo e crescente.

Além disso, sem dúvida, as plataformas transferem pagamentos e remunerações que antes ficavam nas localidades para suas cadeias de valor e empresas aliadas. Novos intermediários tendem a surgir. Pequenos e médios atravessadores poderão ser eliminados e substituídos pelos parceiros das plataformas que provavelmente receberão menos pelas atividades. Além disso, a tendência é o crescimento do envenenamento na produção agrícola, uma vez que plataformas trarão para a agricultura o mesmo efeito que os laboratórios farmacêuticos trouxeram para a medicina. A ambivalência é evidente.

Finalmente, olhando para outro ator social, vemos que o Movimento dos Sem Terra – MST tem realizado diversas ações cooperativas de grande sucesso. É preciso considerar a possibilidade de ampliar as estruturas dos movimentos socioprodutivos para o plano digital. Há possibilidades para a agroecologia e para as redes de pequenos agricultores organizarem arranjos tecnológicos que utilizem a Inteligência Artificial para competir com a entrada das Big Techs no campo? A Amazon, em 2017, adquiriu o site de alimentos orgânicos e de produtos frescos chamado Whole Foods Market por US$ 13,7 bilhões. O crescente apelo para uma alimentação saudável pode apoiar soluções cooperativas e digitalmente comunais?

Os maiores obstáculos não parecem ser tecnológicos, mas de encontrar um modelo viável de financiamento, gerenciamento, divulgação e logística. Um novo arranjo que envolva o setor público, os movimentos sociais e organizações não-governamentais poderia viabilizar articulações não-capitalistas que sejam economicamente viáveis dentro do capitalismo.

Uma coisa é certa. As plataformas digitais não vão eliminar os pequenos agricultores, nem os pequenos intermediários, apenas os tornarão mais pobres. As cadeias de veneno serão ampliadas e sustentadas em inovações tóxicas com discursos do capitalismo verde e da compensação de carbono que as próprias plataformas buscarão consolidar. O mantra das Big Techs “queremos melhorar sua experiência” não desaparecerá. Podemos resistir ativamente a isso? Ou devemos apenas nos contentar com a produção da crítica?

Criticar e agir parece ser o mais indicado. É hora de enfrentar o capitalismo não somente na política ou na ideologia. É preciso enfrentá-lo no terreno econômico. Talvez seja possível criar soluções econômicas anticapitalistas que retirem espaço da gigantesca capitalização, financeirização e plataformização não somente no campo, mas também nas cidades.


1Leia: https://www.gatesnotes.com/Development/FarmBeats. Acesso 10/02/2022.

2Leia: https://www.microsoft.com/en-us/research/project/farmbeats-iot-agriculture/ .Acesso 10/02/022.

3Leia: https://www.syngentadigital.com.br/#cropwise-lavoura. Acesso 10/02/2022.

4Essa informação é dada pela empresa em seu site de divulgação: https://agriculture.basf.com/global/en/business-areas/digital-farming.html. Acesso 10/02/2022.

5Ethernet é uma arquitetura de interconexão cabeada para redes locais que segue o padrão IEEE 802.3.

6Leia: https://grain.org/en/article/6604-controle-digital-a-entrada-das-big-techs-na-producao-de-alimentos-e-na-agricultura-e-o-que-isso-significa. Acesso em 10/02/2022.

7Leia: https://grain.org/en/article/6604-controle-digital-a-entrada-das-big-techs-na-producao-de-alimentos-e-na-agricultura-e-o-que-isso-significa. Acesso em 10/02/2022.

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Fonte: Outras Palavras

Data original de publicação: 14/04/2022

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