A greve, o breque, o trampo: a luta dos entregadores é a luta dos trabalhadores
Por Andréia Galvão | Esquerda Diário
“A greve dos entregadores por aplicativos, realizada em 01 de julho, constitui um marco para a organização e mobilização dos trabalhadores precários no Brasil. Pode-se dizer que foi uma greve bem-sucedida, tanto pela quantidade de envolvidos - visível nos buzinaços e cortejos de motos e bicicletas que percorreram as ruas de diversas cidades do país -quanto pelo impacto que teve nas redes sociais. Impossível não tomar conhecimento da greve, ou do “breque dos APPs”, como uma parte do movimento se auto-intitulou, e de se solidarizar com ela.
Motivada principalmente pelas baixas taxas de entrega e pelos bloqueios praticados pelas plataformas digitais, a greve escancara as condições aviltantes de trabalho de uma categoria que se mostrou imprescindível durante a pandemia. Graças ao trabalho daqueles que arriscam suas vidas e a saúde de suas famílias diariamente, uma parte da população pode permanecer protegida em suas casas durante a infindável quarentena provocada pela Covid-19.
Os entregadores estão descobrindo na prática a falácia do discurso do empreendedorismo e revelando para os demais trabalhadores, mediante a visibilização de suas condições de trabalho, as ilusões que cercam um trabalho supostamente autônomo e flexível. Trata-se de um trabalho subordinado às regras fixadas pelos aplicativos e totalmente controlado por eles (desde a distribuição das entregas aos valores das tarifas, passando por sistemas de pontuação e bonificação). A única liberdade dos entregadores é a de aumentar a velocidade de suas corridas e de permanecer mais tempo à disposição dos aplicativos para tentar melhorar seu ganho no final do dia. Pois, em uma rotina marcada pela incerteza e pela vulnerabilidade, nunca se sabe como será o dia seguinte. Por isso reivindicam, além de melhor remuneração e do fim dos bloqueios e supensões, auxílio alimentação, licença remunerada para os contaminados, bem como seguro de vida, acidentes e roubo.
Suas reivindicações demonstram o papel fundamental dos direitos sociais e trabalhistas para assegurar proteção a quem trabalha. Isso não significa que todos os entregadores sejam favoráveis ao reconhecimento do vínculo empregatício com as plataformas digitais e à adoção da CLT como forma de regulamentação de sua relação laboral. A dicotomia entre emprego e direitos, tão propalada por Bolsonaro e sua equipe econômica, encontra ressonância em uma base social em que a informalidade é a regra, embora essa mesma base se oponha a esse discurso quando a dicotomia assume a forma da contraposição entre emprego e vida. Mas, se há uma convergência em torno da necessidade imperiosa de se defender a vida - como anuncia uma das palavras de ordem do movimento: “Nossas vidas valem mais que o lucro deles” - não há acordo sobre qual a melhor forma de fazê-lo e sobre qual deve ser o papel do Estado nesse processo. Isso pode explicar a existência de diversas lideranças e o surgimento de novas formas de organização, independentes dos sindicatos, com destaque para associações como os Entregadores Antifascistas e o coletivo Treta no Trampo.
Vale, porém, destacar que, a despeito das dificuldades do sindicalismo brasileiro em organizar os trabalhadores precários, sobretudo aqueles que não têm um contrato formal de trabalho, o movimento sindical tem procurado se fazer presente. Além de receber o apoio de diversos sindicatos e centrais sindicais, a greve também foi convocada pelo Sindimoto SP, que há tempos promove uma campanha contra as empresas de aplicativos, argumentando que o serviço prestado pelos motoboys não constitui uma relação de “empresário para empresário”.
Ao denunciar as humilhações a que estão permanentemente submetidos, admitindo passar fome ao mesmo tempo em que entregam alimentos, os manifestantes buscam sensibilizar a sociedade e envolver os consumidores em sua luta por respeito e dignidade. Para isso, recorrem a estratégias inovadoras com o intuito de impor prejuízos à imagem daqueles que dizem não ser patrões, mas cuja marca é estampada nas mochilas que carregam em suas costas. Além de paralisar as entregas, ou seja, de suspender a circulação das mercadorias, a greve estimula os consumidores a boicotar e a avaliar negativamente os APPs.
Esses trabalhadores estão nos mostrando que uma greve é possível mesmo em setores em que a força de trabalho está territorialmente dispersa e nos quais a relação de assalariamento é disfarçada sob a forma de prestação de serviços. Eles estão se recusando a ser descartáveis e nos alertando que o modelo de negócios no qual se baseia a exploração de seu trabalho pode se alastrar para outros setores, afetando inclusive profissões que requerem maior escolarização e são consideradas mais protegidas. Aliás, médicos e professores já experimentam formas de “uberização”. Nota-se, portanto, o potencial desse protesto se ampliar, envolvendo trabalhadores que vivenciam diferentes situações e condições de trabalho, e de se articular com outras lutas.
Contudo, esse é um processo em construção e perpassado por uma acirrada disputa política. As demandas em jogo não são excludentes, mas, a partir delas, há várias direções possíveis a serem seguidas: o movimento pode se limitar à luta e à conquista de melhorias pontuais em suas condições de trabalho, o que, nas circunstâncias atuais, já seria uma vitória; pode avançar para o reconhecimento do vínculo de emprego e da obtenção de direitos; pode articular a luta por direitos trabalhistas ao antirracismo, denunciando como o trabalho precário tem um recorte racial; por fim, pode se articular à luta antifascista, demonstrando como essas dimensões estão estreitamente imbricadas, ou seja, como a democracia é condição fundamental para que se possa lutar para garantir e preservar direitos.”
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Fonte: Esquerda Diário
Data original da publicação: 03/07/2020