‘A política pública chega ao cidadão pelo servidor municipal’
Por Letícia Arcoverde | Nexo Jornal
Professora Cibele Franzese fala ao ‘Nexo’ sobre os entraves enfrentados pelas administrações das cidades e como prefeitos podem aprimorar a gestão de pessoas na esfera local
Cerca de 60% dos servidores públicos brasileiros trabalham para as prefeituras dos 5.570 municípios do país. Esse contingente de mais de seis milhões de profissionais está na linha de frente dos serviços prestados aos cidadãos — e é o grupo que mais enfrenta limitações na comparação com os colegas de funcionalismo, pelos salários baixos, falta de recursos, formação e estrutura.
Para Cibele Franzese, professora da área de gestão pública da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getulio Vargas (Eaesp-FGV), esse cenário coloca a gestão de pessoas como um desafio central para os candidatos à prefeitura nas eleições municipais de outubro.
“Todas as principais políticas nacionais no Brasil são pensadas de uma forma que o governo federal e o governo estadual chegam ao cidadão por meio de profissionais contratados pelo município”, disse Franzese ao Nexo. “O município é um grande prestador de serviço.”
Franzese faz parte do comitê de governança do Movimento Pessoas à Frente, organização da sociedade civil voltada a aperfeiçoar políticas públicas de gestão de pessoas no setor público, e apoiadora da editoria Ponto Futuro. A rede, que reúne especialistas, gestores, políticos e membros do terceiro setor, lançou em julho um guia com recomendações para lideranças municipais.
Nesta entrevista ao Nexo, Franzese fala sobre os principais desafios de gestão enfrentados pelas cidades brasileiras, como essas questões se diferenciam de outros entes federativos e de que forma as prefeituras podem superar esses entraves.
Quais os principais desafios de gestão de pessoas que os municípios brasileiros enfrentam?
CIBELE FRANZESE Os municípios são responsáveis hoje pelos principais serviços públicos entregues diretamente à população — serviços de educação, de saúde, de assistência social. Todos esses serviços são de grande importância para a qualidade de vida da população e são de mão de obra intensiva, dependem fundamentalmente da qualidade do servidor público. Isso vai envolver uma política estratégica de gestão de pessoas que vai passar por várias coisas, desde o recrutamento e seleção, até a gestão do desempenho e de carreiras.
A efetividade da própria política pública vai depender de pessoas. O gestor pensa muito em recursos financeiros, em responsabilidade fiscal, em projetos, em infraestrutura e em investimento, mas fundamentalmente ele depende de pessoas.
Hoje, 60% dos servidores públicos do Brasil trabalham nos municípios, mas os municípios ficam com 20% da arrecadação. Então isso tem um rebatimento importante, de que os servidores públicos municipais são os mais mal remunerados da federação. Isso vai ter impacto nas políticas públicas também.
Quando a gente diz que um professor ganha mal, isso tem uma questão estrutural de fundo. A maioria dos professores são servidores públicos municipais, e os municípios têm uma limitação de recursos e de gasto com pessoal. Valorizar a profissão do professor depende não só de uma vontade política, mas de todo um rearranjo de recursos distribuídos entre várias políticas sociais e decisões de investimento.
Os economistas gostam de dizer que é importante construir, mas os gestores de política pública vão pensar: depois que você constrói, quem vai trabalhar nesses lugares? Isso vai gerar novos custos. Um concurso público implica uma decisão de longo prazo, um gasto na folha de pagamento por 90 anos, porque a gente espera que o servidor fique com o Estado por bastante tempo, ele vai ter uma aposentadoria.
São decisões que o meu prefeito ou a minha prefeita vai ter que tomar. Tudo é um balanço de prioridades. E aí tem várias discussões que vêm à tona, como a opção por terceirização, que é um contrato de curto prazo, e tem implicações diversas para a qualidade e para a formação do profissional.
Mais ou menos 40% da despesa primária em média de uma prefeitura é a folha de pagamento. A gestão de pessoas é hoje a principal despesa dos municípios brasileiros, então, sem dúvida, deveria ser a principal política.
De que forma esses desafios se diferenciam de outros níveis federativos? O que é particular da esfera municipal?
CIBELE FRANZESE Se você pensa em gestão de pessoas na União ou nos estados, você tem muito menos órgãos que prestam atendimento direto ao cidadão. Quando você vai para o município, o impacto do servidor público no serviço é total.
Se você não tem assistente social, você tem problema com o Bolsa Família, que é federal. Se você não tem o médico no posto de saúde ou o agente comunitário de saúde, você não tem vacinação. O município é um grande prestador de serviço, é o dia a dia do cidadão.
Todas as principais políticas nacionais no Brasil são pensadas de uma forma que o governo federal e o governo estadual chegam ao cidadão por meio de profissionais contratados pelo município. Isso dá essa característica: o prefeito ou a prefeita são os gestores de pessoas das políticas sociais.
Quais as principais forças dos servidores municipais para transformar seus municípios? E quais são as principais limitações?
CIBELE FRANZESE A principal fortaleza de um servidor hoje é a estabilidade [garantia constitucional que limita demissão de funcionários públicos]. A gente passou por um tempo bem difícil, e eu nunca imaginei que diria isso — eu já cheguei a pensar que pudéssemos trabalhar com alguma flexibilidade, como vários países desenvolvidos fazem — mas o tempo nos provou que a garantia da estabilidade é de fato importante para o Estado democrático de direito.
Os funcionários públicos têm a garantia da estabilidade para defender a Constituição. No caso brasileiro, isso é importante, pois boa parte das diretrizes de políticas públicas está na Constituição. Temos a garantia da universalização da educação, da saúde e do tripé da seguridade social, entre outros. Essas diretrizes transcendem tempos governamentais.
A principal limitação é a própria capacidade de governo. Muitos governos não têm a capacidade de implementar todas as políticas necessárias para atender à população. O município enfrenta uma realidade muitas vezes maior do que ele é capaz de resolver, sem todo o apoio federal e estadual necessários. E os servidores municipais que estão na linha de frente lidam com aquela situação muitas vezes com limitações de recursos, de formação adequada e de organização. Eles vão receber políticas implementadas no nível federal, que foram pensadas por pessoas que nunca pisaram naqueles municípios, e eles vão ter que fazer acontecer.
E eles resolvem. Porque a pressão da população está diretamente sobre eles. Metade dos municípios no Brasil é pequena. O prefeito ou prefeita vai tomar café na padaria e encontra o eleitor que achou o posto de saúde fechado. A “accountability”, a responsabilização, está ali.
Quais são alguns exemplos de iniciativas que são boas práticas de como o município pode fazer gestão de pessoas?
CIBELE FRANZESE Ter bons dirigentes faz bastante diferença. O prefeito está lá resolvendo um monte de questão política, e política é muito importante. Você tem que fazer política, você vai ter que dar atenção para o Legislativo.
Os dirigentes são os cargos de comissão, de livre nomeação, que devem dirigir equipes. Esses cargos podem implementar muitas mudanças nos governos. Quando contratamos uma pessoa dessa, normalmente é por indicação política. Isso não é ruim porque você precisa de alguém para ter a sua diretriz política na hora de comandar toda a burocracia.
O burocrático está trabalhando todo dia para defender a Constituição, para defender as diretrizes, e ele também está esperando um comando. Ele precisa saber que antes a gente valorizava, por exemplo, cumprimento de entregas, e agora a gente valoriza mais a qualidade. E essa comunicação é muito obstruída na administração porque são muitas hierarquias. Ter um dirigente alinhado ao político ajuda você a saber para onde tem que ir.
Porém, o dirigente precisa ter outras competências. Uma das competências que ele precisa ter, por exemplo, é saber gerenciar projetos, saber apresentar entregas e saber gerenciar pessoas. No município, fazer entrega significa gerenciar gente.
A gestão das lideranças ou dos dirigentes é uma das coisas que vai fazer mudar a chavinha na gestão. Porque uma vez que você coloca a pessoa certa lá, as equipes vão trabalhar melhor. O servidor vai ter alguém de retaguarda, alguém que vai valorizar o trabalho dele, alguém que vai dar um feedback.
Um dos exemplos é o Transforma Minas [criado em 2019 pelo governo de Minas Gerais], que é um caso já bem estudado de seleção de dirigentes. Você publica as competências que gostaria para uma posição e as pessoas podem concorrer. Não só quem é de fora, mas também servidores. Isso provoca uma motivação interna no governo. A maioria dos cargos foi preenchida por servidores da própria carreira, que se candidataram e tinham as competências.
Como avalia a articulação entre gestores entre diferentes municípios?
CIBELE FRANZESE A gente tem algumas experiências em educação, por exemplo, de tentativas de consórcios intermunicipais para facilitar algumas questões. Um exemplo são matrículas em casos de mudanças de cidade de famílias, como aquelas que trabalham na colheita de cana e migram num período em que não se aceita mais matrícula. Em várias ocasiões, a criança ficava sem estudar. Alguns municípios começaram a fazer parcerias e consórcios para aceitar matrículas fora de época. Isso é uma coisa simples, mas coloca o usuário em primeiro lugar, não a burocracia.
Outro exemplo interessante é os municípios se juntando para trazer formação. Muitas vezes é difícil trazer alguém para formar poucos professores no interior do Brasil. Então, se juntam para fazer a formação de vários professores para uma região. Outra coisa desejável, mas que ainda não acontece, é os municípios alinharem planos de carreira e salários. Muitos professores preferem trabalhar no município vizinho por causa do salário maior.
Na saúde, a gente já tem muitos consórcios para especialidades, porque é difícil atrair um endocrinologista, por exemplo, para ficar só em um município. Já vi muitos casos de CRAS [Centro de Referência de Assistência Social] que compartilham profissionais, pois não conseguem ter um assistente social fixo para um município pequeno no interior.
Como o tema da gestão de pessoas pode aparecer na campanha eleitoral? Como um eleitor pode buscar entender melhor as propostas dos candidatos nesse sentido?
CIBELE FRANZESE O tema das pessoas não aparece, ele é invisível. Quando um candidato promete melhorar a educação ou a saúde, a gente tem que se perguntar como ele vai fazer isso, com que dinheiro, com que gente. De onde vão sair esses funcionários? Os funcionários que hoje me atendem vão subitamente melhorar? O que vai acontecer? O tema da gestão de pessoas aparece aí.
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Por Letícia Arcoverde | Nexo Jornal
Data original de publicação: 18/07/2024