A sobrecarga invisível: mulheres negras, trabalho e a herança da pandemia

Fonte: Getty images
A informalidade e o trabalho em tempo parcial seguem sendo, para muitas mulheres negras, a única opção disponível para a geração de renda
Por Camila Alvarenga | NEXO
A pandemia de covid-19 não apenas escancarou as desigualdades estruturais da sociedade brasileira, mas também as aprofundou significativamente. Nesse cenário de desigualdades, as mulheres negras emergiram como um dos grupos mais afetados, carregando um fardo triplo: são mulheres, são pretas ou pardas e, em grande proporção, pertencem às classes sociais mais vulneráveis. Essa intersecção de marcadores sociais determinou não apenas suas possibilidades de proteção contra o vírus, mas também suas condições de trabalho e sobrevivência durante e após a crise sanitária.
O trabalho doméstico remunerado, historicamente associado à herança escravista brasileira, ilustra com clareza essa realidade. Antes da eclosão da pandemia, quase 70% das cuidadoras de crianças e das trabalhadoras domésticas de serviços gerais eram negras, setor que perdeu aproximadamente 1,7 milhão de postos de trabalho nos primeiros meses da crise.
Nos casos em que essas mulheres mantiveram seus empregos, tiveram que enfrentar o dilema entre ficar em casa para prevenir a contração do vírus ou seguir trabalhando para garantir sua renda, já que muitas foram classificadas como “serviços essenciais” por decisões governamentais que contradiziam as recomendações do MPT (Ministério Público do Trabalho). Soma-se a isso o fato de que apenas 26% das diaristas e 41% das mensalistas possuíam proteção previdenciária na véspera da crise sanitária, tornando esse dilema ainda mais complexo.
Paralelamente, no âmbito do trabalho não remunerado, as mulheres negras brasileiras também enfrentaram uma sobrecarga intensa. Os papeis ligados à reprodução social – como a manutenção da limpeza da casa, a preparação de alimentos e o cuidado com crianças, idosos e pessoas doentes – são desproporcionalmente atribuídos às mulheres, e com mais intensidade, às negras. A título de comparação, elas dedicam quase 2 horas semanais a mais nos afazeres domésticos que as mulheres brancas, totalizando 22 horas semanais em 2022. Complementarmente, participam menos do mercado de trabalho e estão sobrerrepresentadas na população que vive abaixo da linha da pobreza.
A sobrecarga histórica das mulheres negras, intensificada durante a pandemia, precisa ser enfrentada com políticas estruturais que promovam não apenas a igualdade de oportunidades, mas também a redistribuição do trabalho de cuidados na sociedade.
A crise sanitária trouxe consigo o fechamento temporário de escolas e creches, complicando a vida das mulheres que não dispunham de uma rede de apoio, seja ela composta de familiares e empregadas domésticas. Não é surpreendente que esse cenário tenha impactado em maior grau a vida das mulheres pretas e pardas.
A crise sanitária trouxe consigo o fechamento temporário de escolas e creches, complicando a vida das mulheres que não dispunham de uma rede de apoio, seja ela composta de familiares e empregadas domésticas. Não é surpreendente que esse cenário tenha impactado em maior grau a vida das mulheres pretas e pardas.
Mesmo com a retomada econômica pós-pandemia, a situação das mulheres permanece desafiadora. Como a pandemia marcou a transição mais acentuada das mulheres do emprego direto para a inatividade – isto é, sem antes passar pelo desemprego – a reinserção no mercado de trabalho tem desafios adicionais para esse grupo. Isso se torna ainda mais desafiador quando se considera a inserção no mercado formal. A informalidade e o trabalho em tempo parcial seguem sendo, para muitas mulheres negras, a única opção disponível para a geração de renda.
O cenário atual demanda uma reflexão profunda sobre as estruturas que mantêm essa desigualdade. Não basta apenas reconhecer a sobrecarga; é preciso implementar políticas públicas que considerem a interseccionalidade entre gênero, raça e classe. Isso inclui desde a valorização e formalização do trabalho doméstico até o investimento em equipamentos públicos que auxiliem na distribuição do trabalho de cuidados, como creches e escolas em tempo integral. Um exemplo de iniciativa nessa área é a construção da Política Nacional de Cuidados, que visa, entre outras coisas, uma distribuição mais justa das tarefas de cuidado no âmbito doméstico, e a valorização das trabalhadoras remuneradas do setor.
Além disso, é fundamental fortalecer a rede de proteção social, garantindo que as trabalhadoras tenham acesso a direitos básicos como previdência social e seguro-desemprego. A pandemia demonstrou, de forma drástica, como a ausência dessa proteção pode ter consequências graves, especialmente para as mulheres negras que são, em alguns casos, as principais provedoras de suas famílias.
O futuro do trabalho no Brasil não pode ser pensado sem considerar essa realidade. A sobrecarga histórica das mulheres negras, intensificada durante a pandemia, precisa ser enfrentada com políticas estruturais que promovam não apenas a igualdade de oportunidades, mas também a redistribuição do trabalho de cuidados na sociedade. Caso contrário, continuaremos reproduzindo um modelo que mantém uma parcela significativa da população brasileira em condição de vulnerabilidade permanente.
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Data original de publicação: 04 de abril de 2025