Ameaças do capitalismo de plataforma podem ser ainda mais letais na pandemia. Entrevista com Juliette Robichez
“Juliette Robichez é francesa e residente permanente no Brasil desde 2000. Fez toda sua formação acadêmica na Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne, na França. Possui graduação em Direito, mestrado em Direito Internacional Privado e Direito do Comércio Internacional, mestrado em Direito Privado e doutorado em Direito. No Brasil, vem atuando como professora de Direito Internacional e Direitos Humanos em diversas instituições de ensino e da área jurídica.”
Por João Vitor Santos|Instituto Humanitas Unisinos
“Há um ditado popular que diz que diante do calor de um deserto escaldante, qualquer poça de água pode ser a salvação e pouco se está preocupado com a qualidade dessa água e os riscos à saúde. A analogia pode ser didática para compreender a relação que se estabelece entre milhões de desempregados no Brasil que se oferecem como “trabalhadores de aplicativos” e as empresas chamadas de capitalismo de plataforma que recrutam diversas formas de forças de trabalho. “Em situação de desespero, cada um de nós colocará sua força de trabalho ao dispor dessas empresas digitais que oferecem soluções rápidas e aparentemente fáceis de gerar renda. Mas a que custo?”, questiona a professora Juliette Robichez, doutora em Direito, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Juliette chama atenção para o efeito predatório dessas empresas que usam as forças de trabalho e não fornecem assistência e apoio ao trabalhador como os antigos empregos “de carteira assinada”. “Um dos efeitos mais perversos da relação entre a plataforma e o “parceiro”, por exemplo, é o de qualificá-lo de trabalhador autônomo: o motorista participa assim ativamente da sua exploração, situação extrema do lumpen proletariado. Ao negar os direitos básicos do trabalhador, este perde até sua dignidade, o que pode ter repercussões diretas na sua família”, analisa.
E se essas condições já são por si só extremamente desfavoráveis ao trabalhador, imagine em situação de pandemia, confinamento e isolamento social em que nas ruas o fluxo que se vê é apenas de entregadores e motoristas de aplicativos. “Em época de crise, são sempre os mais vulneráveis que serão as primeiras vítimas de um sistema desumano”, pontua Juliette. E, no caso dos trabalhadores do capitalismo de plataforma, como observa a professora, “serão obrigados a trabalhar para sustentar a família, geralmente sem possibilidade de comprar os objetos de proteção, como máscaras ou álcool em gel, pois a escassez generalizada destes aumentou os preços. E, ainda, serão contaminados e infectarão os membros da sua família”.”
Confira abaixo alguns trechos da entrevista
IHU On-Line – Quais são as principais ameaças do chamado capitalismo de plataforma, ao estilo de empresas como Uber e iFood?
Juliette Robichez – Gostaria de ser uma grande filósofa (do tipo dos iluministas do século XVIII) para poder responder, pois dá para entender – com a crise sanitária mundial provocada por um vírus desconhecido, com o aquecimento do planeta, com o surgimento de um movimento internacional de negação dos direitos humanos e da ciência, com o próximo colapso da economia, com a proliferação de conflitos armados em regiões instáveis provocadas por potências rivais, com o perigo do terrorismo, com o obscurantismo pregado por pretendidos religiosos fundamentalistas etc. – que é o nosso sistema político-econômico como um todo que está em questionamento. As ameaças do chamado capitalismo de plataforma seriam uma das manifestações dos limites do sistema neoliberal que foi adotado, de maneira acentuada, a partir dos anos Reagan-Thatcher.
Mas, de maneira um pouco mais precisa, podemos perceber que a uberização da sociedade ameaça muitos aspectos da nossa vida:
– Esse capitalismo de plataforma nega radicalmente, em primeiro lugar, os direitos trabalhistas desses novos “parceiros” (usando a terminologia empregada pelo Uber) que, como falei no artigo do jornal Outras Palavras, assumem todos os riscos do ofício sem se beneficiar dos eventuais lucros gerados pela atividade de entrega, de motorista. Um dos efeitos mais perversos da relação entre a plataforma e o “parceiro”, por exemplo, é o de qualificá-lo de trabalhador autônomo: o motorista participa assim ativamente da sua exploração, situação extrema do lumpen proletariado. Ao negar os direitos básicos do trabalhador, este perde até sua dignidade, o que pode ter repercussões diretas na sua família, por exemplo, como o último filme de Ken Loach (Sorry, we missed you) ilustra perfeitamente. Isolado, sem representação coletiva para defender seus direitos, ele está à mercê dessas multinacionais digitais, desses empregadores invisíveis, inacessíveis, intocáveis (novos deuses?) que impõem as condições contratuais de maneira unilateral.
– Esse capitalismo de plataforma permite burlar, também, a conivência dos Estados que não têm coragem de tomar medidas eficazes no patamar internacional, as leis tributaristas dos países. Usam os serviços públicos como as ruas e sua iluminação, os correios, a educação e a formação dos seus trabalhadores, os hospitais etc. sem participar do esforço coletivo. Negam o princípio básico de convivência em sociedade: a solidariedade.
– Enfim, porém a lista das ameaças continua incompleta, ignora a soberania dos Estados que não conseguem mais regular as profissões (dos taxistas ou dos profissionais de turismo, por exemplo), limitar a poluição nas ruas (com a existência de centenas de milhares de VTC circulando o tempo todo à procura do cliente), oferecer alojamentos próximos ao trabalho com preços razoáveis aos seus habitantes (Airbnb participa da inflação do preço dos imóveis e da crise do setor da hotelaria).
IHU On-Line – O capitalismo de plataforma deve, em alguma medida, ser impactado pela experiência da pandemia de Covid-19 que atravessa o mundo? Como o capitalismo de plataforma deve sair dessa experiência?
Juliette Robichez – As medidas necessárias para conter a disseminação do vírus têm obviamente um impacto na economia, inclusive na economia de plataforma. O confinamento eficaz prega, por exemplo, o fechamento ou a limitação das atividades dos correios, a proibição de entrega de objetos não essenciais, a proteção dos trabalhadores, de modo geral a cessação de quase todas as atividades. O consumo de produtos, de serviços está em processo de desaceleramento brutal, o que vai impactar todas as empresas.
O problema é: quem vai ter que assumir? Como sempre, me refiro por exemplo à crise do subprime de 2008 ou aos efeitos perversos dos paraísos fiscais, haverá uma privatização total dos benefícios otimizados (exploração pelas multinacionais da atividade dos seus “parceiros”) e uma socialização das perdas, dos déficits e falências (os Estados, na sua grande maioria, estão injetando recursos públicos bilionários, até trilionários para os Estados Unidos da América, para sustentar a economia e oferecer uma renda mínima aos trabalhadores demitidos).
Imagino que haverá, como sempre, uma anulação quase completa de toda a tributação sobre as empresas mais ricas e uma imposição das classes sociais pobres e médias, para salvar as empresas, as bolsas. Sou leiga em economia, mas este esquema sempre se repete, infelizmente.
IHU On-Line – Ainda que os trabalhadores do capitalismo de plataforma sejam os mais vulneráveis nessa situação de pandemia, de outro lado, eles continuam trabalhando e ganhando sustento para suas famílias apesar dos riscos. Qual a sua leitura sobre essa realidade?
Juliette Robichez – Em época de crise, são sempre os mais vulneráveis, hipossuficientes, usando o vocabulário do Código do Consumidor, que serão as primeiras vítimas de um sistema desumano. Nesta pandemia, serão obrigados a trabalhar para sustentar a família, geralmente sem possibilidade de comprar os objetos de proteção, como máscaras ou álcool em gel, pois a escassez generalizada destes aumentou os preços. E, ainda, serão contaminados e infectarão os membros da sua família.
Gostaria de deixar a palavra a um pequeno vídeo que assisti no WhatsApp (sem nome de autor infelizmente) que sintetiza de maneira muito pertinente, melhor que eu com certeza, na forma cômica, a situação catastrófica que enfrentam os moradores de favelas. Tentando não distorcer o caráter genial do vídeo, lembro de um homem vestido de mulher, com um rosto voluntariamente desfigurado e uma voz estridente e gestos exagerados que fala no telefone com uma amiga que não aguenta mais ficar “em isolamento”. O protagonista, obviamente sem paciência com a situação, retorque: “Que isolamento? Pare de falar como uma blogueira! Pobre não se isola, se amontoa em cômodos minúsculos”.
Em dois minutos, esse artista (que povo criativo!!!) consegue resumir a situação patética na qual o Brasil se encontra: grande parte da população não tem água encanada, não pode comprar sabonetes, sem espaço para acolher de maneira serena os membros da família por 24 horas, sem renda e economia para poder ficar em casa, conforme as orientações das autoridades sanitárias. A situação no Brasil é ainda mais problemática com a ausência de uma política clara e única dos seus dirigentes e, sobretudo, com as diretrizes do seu presidente da República, contradizendo todos os resultados das pesquisas reveladas pelo mundo científico, negando as recomendações da Organização Mundial da Saúde – OMS e dos próprios membros do seu governo. Sem nenhum fundamento científico, prega o isolamento vertical para salvar a economia.
Acesse aqui a entrevista completa
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos
Data original de publicação: 07/04/2020