As arapucas armadas contra lideranças e representações coletivas dos(as) trabalhadores(as) por aplicativos

Reunião no Ministério do Trabalho, em 19/01/23, com a presença de lideranças e representações coletivas dos(as) trabalhadores(as) por aplicativos, para tratar da regulação (Foto: Allexandre dos Santos Silva)

Por Jorge Luiz Souto Maior | Blog do Jorge Souto Maior

I- Entendendo o problema

Como todo mundo já sabe, está na pauta, como uma das primeiras iniciativas do atual Ministério do Trabalho, a regulação do trabalho prestado por meio de aplicativos.

O que pouco se diz, embora todos saibam bem, é que se trata de um tema decisivo para a generalidade das relações de trabalho no Brasil.

As lideranças e representações coletivas dos(as) trabalhadores(as) por aplicativos foram chamadas pelo Ministério do Trabalho para se manifestarem sobre o tema.

Esta participação institucional é de grande importância, constituindo, na verdade, um pressuposto necessário do respeito à lógica democrática que deve permear todo processo legislativo.

​Há, no caso, entretanto, diversas armadilhas reservadas para estes interlocutores, ainda que não se possa afirmar tenham sido maliciosamente estabelecidas.​

1a. Pegar o bonde andando

Segundo se tem dito, quando as lideranças e representações foram chamadas a se manifestar, governo, centrais sindicais (que não representam esses trabalhadores e trabalhadoras – ao menos até agora) e empresas do ramo de atividade já tinham firmado um acordo para que a regulação do trabalho por plataformas sindicais se limitasse à integração dos trabalhadores e trabalhadoras ao regime de Previdência Social – conforme, inclusive, chegou a ser anunciado.

2a. A corda no pescoço

Às lideranças e representações dos trabalhadores e trabalhadoras, tardiamente chamados, foi concedido prazo bastante exíguo para formular suas pretensões. O tempo corre contra e dificulta o desenvolvimento de um necessário esforço de unificação da classe, ou, até mesmo, da identificação desses trabalhadores e trabalhadoras como exercentes de uma mesma profissão e integrados a uma mesma categoria. Sem isto, a participação tende a ser bem mais facilmente resistida e fragilizada, sobretudo, pela difusão de táticas de corrosão e discórdia.

3a. Tudo a perder

Para a formulação de suas pretensões, lideranças e representações são forçadas a ter em conta que qualquer tentativa de avançar para além daquilo que já estava anunciado poderá significar o insucesso de qualquer “avanço”, recaindo sobre as suas cabeças a culpa por este resultado “negativo”.

4a. Todos contra todos

As condições acima enunciadas criam a situação ideal para que lideranças e representações sejam jogadas umas contra as outras, ainda mais quando se tem o conhecimento prévio das diferentes posições que estas sempre manifestaram sobre a melhor forma de regulação.

Fato é que, diante do curto prazo, da enorme dificuldade para, de fato, interferirem no processo e do risco de serem apontados como culpados pelo total insucesso da negociação, tem-se o ambiente propício para alimentar divisões entre as lideranças e representações e, assim, dificultar uma reação mais consistente e coesa desses interlocutores.

Essa lógica de divisão, ademais, é a estratégia estruturante das empresas que atuam no mercado vendendo seus serviços por meio de plataformas digitais e o trabalho alheio, pois contam com uma oferta totalmente aberta de trabalho em regime de concorrência ilimitada. Atuando a margem da regulação do trabalho assalariado, dada a aparência de conferirem autonomia, ao transferirem para os trabalhadores e trabalhadoras a lógica de mercado, expondo-os à aceitação de trabalho em condições cada vez piores, para ganharem a concorrência, essas empresas conseguem, ao mesmo tempo, criar uma névoa sobre a exploração do trabalho que promovem, diluir o antagonismo de classe e afastar sua responsabilização social, além, é claro, do afastamento das obrigações trabalhistas.

Explorando, simultaneamente, o trabalho de pessoas que atuam profissionalmente no ramo e aquelas que vem este trabalho como um “bico”, o que se tem como resultado é que as condições de trabalho nada favoráveis e sem quaisquer direitos em que os “biqueiros” aceitam trabalhar acabam rebaixando o patamar de direitos e dos ganhos remuneratórios de todos os demais.

Não foi à toa, portanto, que a regulação que se estabeleceu, como base de formação do Estado Social, da venda da força de trabalho no capitalismo foi baseada na premissa da consolidação de um rol mínimo e irrenunciável de direitos e de remuneração, para que o capital, em razão de seu poder econômico e valendo-se do estado de dependência das pessoas que vivem do trabalho, não continuasse engendrando fórmulas para promover e disseminar uma concorrência fratricida entre os trabalhadores e trabalhadoras pelos postos de trabalho.

5o. Falar a língua dos “homens”

Dentro desse contexto, é necessário verificar que as lideranças e representações em questão não foram chamadas para serem ouvidas e sim para experimentarem um processo de coação pelo qual se veem forçadas a simplesmente legitimar o ajuste que já veio pronto, sob pena, inclusive, por meio de intensas campanhas midiáticas, de serem jogados contra os seus próprios representados.

Veja-se que, em nenhum momento, se admitiu como ponto de partida do debate o respeito aos direitos trabalhistas mínimos, já garantidos a todos trabalhadores e a todas trabalhadoras na Constituição Federal.

6o. A voz do povo é a voz de Deus

Além disso, esses agentes também se veem pressionados pelo pensamento geral que se expressa na maior parte das manifestações individuais dos trabalhadores e trabalhadoras por aplicativos, no sentido da negação de qualquer regulação que os remeta para o regime da relação de emprego, sem que se tenha o tempo necessário para compreender e explicar como essa visão não reflete, propriamente, o pensamento da classe trabalhadora, sobretudo quando faz loas a um “empreendedorismo” de fachada, sendo, na verdade, a simples reprodução dos valores e interesses das empresas que atuam por intermédio de plataformas digitais.

Excetuando-se as merecidas avaliações críticas que se possa formular acerca do modo como, em certa medida, a regulação do trabalho subordinado no Brasil ainda reproduz formas opressivas, especialmente em razão das deturpações que lhes foram introduzidas pela doutrina e pela jurisprudência dominantes, o simples preconceito contra a legislação do trabalho é uma narrativa histórica da classe empresarial, que se coloca a serviço da promoção de retirada de direitos ou do abalo da efetividade dos direitos conquistados.

Não bastasse, com o neoliberalismo o setor empresarial compreendeu que difundir aversão à legislação do trabalho entre os trabalhadores e trabalhadoras seria uma forma ainda mais eficiente de destruir os direitos trabalhistas.

Assim, esse sentimento de rejeição acrítica a direitos sociais pelos seus próprios titulares dos direitos só se entende como fruto de um processo histórico de convencimento instigado por uma forte campanha publicitária das empresas de aplicativos, que tem sido praticada há anos e replicada com enorme apoio da grande mídia, dado o alinhamento ideológico que os move.

Neste último aspecto, que é o que efetivamente entra em campo no espaço que se institucionalizou para o debate sobre a regulação, o que sobressai é esse novo tipo de “roubo da fala”, no qual a “voz dos trabalhadores é a voz dos empregadores”, o que se constitui, inclusive, uma enorme dificuldade de atuação para os agentes de representação, sobretudo quando compreendem o processo de alienação promovido pelas empresas, mas, ao mesmo tempo, não possuem os mesmos mecanismos de difusão de ideias, para rechaçar o preconceito e até introduzir um repensar do marco regulatório vigente, visando alcançar um que seja capaz de promover avanços efetivos para a classe trabalhadora como um todo, e também não querem, e não podem, perder seu contato e sua representatividade com a base.

(*) Após publicado o presente texto, em 06/02/23, a divulgação da reportagem de Cristiane Gercina, “Ministro do Trabalho sugere novo aplicativo se Uber sair do país”, publicada na Folha de S. Paulo, às 19h47′ do dia 06/02/23, às 19h47′, suscitou a necessidade de se fazer alguns acréscimos no texto, expressos nos três parágrafos a seguir: 

1) Quando se consegue atingir o objetivo de difundir entre a classe trabalhadora os argumentos e valores que são próprios da classe empresarial, as empresas, no momento em que se debate uma regulação pertinente ao mundo do trabalho, não precisam se expressar abertamente e, desse modo, revelar toda a sua aversão aos direitos trabalhistas, colocando-se, isto sim, na cômoda posição de meramente dizer que “são os próprios trabalhadores que não querem direitos trabalhistas”, como demonstrado na reportagem. Vale imaginar, a propósito, o efeito devastador de uma lei refratária a direitos trabalhistas que se aprova com o argumento de ter sido uma pretensão dos(as) trabalhadores(as) ou que tenha sido por estes(as) aprovada em uma mesa de negociação. 

2) Na reportagem expõe-se, também, uma aparente mudança de atitude do Ministro do Trabalho acerca do tema, quando expressa que vê como chantagem a ameaça de uma empresa de aplicativo de deixar o país caso uma regulação seja aprovada para o trabalho no setor; e projeta, o Ministro, inclusive, chamar os Correios para implementar um aplicativo para ocupar o espaço de mercado deixado pela eventual saída de alguma dessas empresas do país. A ver…

3) Por fim, a reportagem traz a posição do Presidente do Sindicato dos Motoboys de São Paulo, Gilberto Almeida a respeito do tema. De fato, a rejeição à CLT, que aparece nas falas individuais de muitos entregadores e motoristas que trabalham por aplicativos, não corresponde à posição das direções e respectivos representados dos mais de 60 (sessenta) sindicatos da categoria de motoboys espalhados por todo o país, que há muito buscam o reconhecimento da relação de emprego, com todos os direitos trabalhistas consequentes, para o trabalho realizado por aplicativos. Esta informação foi igualmente enviada pelo referido Gilberto Almeida, o Gil, diretamente ao blog e também consta da pesquisa realizada por Ana Carolina Paes Leme, cuja suma pode ser vislumbrada no texto, da mesma autora, publicado no blog, em 23/01/23.

7o. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come

Com tudo isto, estabeleceu-se para as lideranças e representações coletivas dos trabalhadores e trabalhadoras uma situação extremamente desconfortável, pois se concordam com a proposta já definida no âmbito do Ministério do Trabalho, legitimam o autêntico retrocesso jurídico que esta proposta representa, vez que tal modalidade de trabalho já se identifica legalmente como relação de emprego, estando, pois, abarcada por todos os direitos trabalhistas.

E o retrocesso ainda mais caracteriza neste momento em que se tem verificado a inegável tendência da atuação judicial e institucional na direção do conhecimento do vínculo de emprego para este tipo de trabalho.

Com efeito, já são duas Turmas do TST que julgam com este conteúdo, além de várias Turmas nos Tribunais Regionais do Trabalho pelo Brasil afora, sem falar na recente proposta aprovada pelo Parlamento Europeu, visando a formulação de uma Diretriz que declara a existência do vínculo de emprego neste tipo de trabalho.

E se, de modo inverso, resistem a aceitar o rebaixamento preconizado e buscam emplacar uma legislação que reconheça todos os direitos a esses trabalhadores e trabalhadoras, certamente se verão sob a mira das ameaças das empresas de abandonarem o país, deixando o rasto de milhões de pessoas sem este trabalho e os ganhos que lhe são consequentes, ainda que seja, como se sabe, apenas uma retórica, porque não nenhuma empresa capitalista abre mão de uma atividade que é extremamente benéfica aos seus propósitos por conta de um aumento de custos de produção, que, ademais, seriam facilmente divididos com os consumidores ou simplesmente transferidos a estes. Até porque se, de fato, abandonarem, rapidamente outras empresas ocupam o lugar e até mesmo o conjunto dos próprios trabalhadores e trabalhadoras o poderá fazer, sobretudo com o Estado financiando o custo da estruturação tecnológica.

Mas as dificuldades para as lideranças e representações coletivas não param aí, vez que também estão sob os olhares atentos e sempre críticos de tantos militantes e estudiosos do mundo do trabalho, que, com toda razão, vale dizer, apontam que o resultado da regulação do trabalho por aplicativos tende a ser o modelo para a regulação de todo tipo de trabalho no Brasil (com repercussão mundial, inclusive, dado a visibilidade que se tem dado à política em nosso país na presente quadra histórica). O que se concluir na regulação em questão pode representar a abertura de uma perigosa porta, relacionada ao rebaixamento da proteção jurídica, da condição econômica e até da participação política da classe trabalhadora como um todo.

8o. Pacto com o Diabo

Tudo se armou, portanto, para que se concebesse como inevitável e até natural a formulação de um pacto com o Diabo, tentando-se fazer acreditar, ilusoriamente, que este “não é tão feio quanto se pinta”. No entanto, o resultado final desse ajuste, referente ao preço que se dispõe a pagar ou aos direitos que se abrem mão, é implacável, inevitável e irreversível, como já se sabe desde Fausto (1806).

II – O que fazer?

Entender o problema não conduz, necessariamente, à solução. Mas já é meio caminho andado. Sem esforço de compreensão, nenhuma solução tem como ser adequada.

Não serei eu, aqui, alheio às situações concretas que envolvem o problema e de forma isolada e individualmente, que vou dizer como devem agir as lideranças e representações coletivas dos trabalhadores e das trabalhadoras por aplicativos. Não tenho nem legitimidade nem lugar de fala para tanto.

Minha contribuição (que me parece relevante) vai no sentido de deixar expresso, para conhecimento público, quais são as arapucas que estão armadas no caminho que esses personagens foram convidados a trilhar – e do qual, dada a relevância histórica do momento, não têm como deixar de percorrer.

De todo modo, vale lembrar de uma regra de conduta que guiou os movimentos trabalhistas nos vários momento em que se conseguiu arrancar, “a fórceps”, efetivas conquistas para a classe trabalhadora: melhor perder uma batalha mantendo a unidade do que, sob o argumento de não haver outra saída ou até se esforçando para acreditar ser o melhor a fazer, romper com o coletivo e encontrar uma solução individual para o problema e, com isto, reproduzir e reforçar todos os valores e estruturas que servem à exploração sem limites e a opressão dos antigos companheiros de luta.

E que a história nos julgue.

Clique aqui e leia o artigo na íntegra

Fonte: Blog do Jorge Souto Maior

Data original da publicação 06/02/2023

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Translate »