As falácias da flexibilização dos direitos sociais, da justiça do trabalho e do sistema de fiscalização: abordagens interdisciplinares
Por Magda Barros Biavaschi
A ameaça de extinção da Justiça do Trabalho anunciada pelo Presidente Jair Bolsonaro, em entrevista ao Canal de Televisão SBT, no dia 03 de janeiro de 2019, a já efetivada extinção do Ministério do Trabalho, a manutenção da Emenda 95 que congela o teto do gasto público por vinte anos, as reiteradas afirmações presidenciais de que é preciso radicalizar a “Reforma Trabalhista” vigente desde novembro de 2017, têm mobilizado a sociedade no sentido da necessária resistência a essas proposições, fundamentadas em ideias falaciosas e que desrespeitam exitosas experiências de muitos outros países exemplificadas, entre outras, na pergunta do Presidente: “Qual país que tem Justiça do Trabalho? Tem de ter a Justiça comum”, e na referência que fez aos altos números de processos que tramitam na Justiça Especializada. (veja entrevista aqui)
A ideia de organizar esta publicação com autores de distintas áreas do conhecimento para discutir a importância, em uma sociedade democrática, de uma tela pública de proteção ao trabalho e de instituições incumbidas de fiscalizar sua aplicação, como as organizações sindicais e os sistemas afetos aos auditores fiscais do trabalho e ao Ministério Público do trabalho, e de dar-lhes eficácia na norma de decisão, como é o caso da Justiça do Trabalho, tem como objetivo trazer ao debate elementos que contribuam para que mais bem se compreenda o papel dessas instituições como espaços de garantia dos direitos sociais fundamentais conquistados e de construção de uma sociedade menos desigual e mais justa. Participam com textos economistas, historiadores, sociólogos, juristas, magistrados, pesquisadores, professores e alunos que se têm destacado na defesa da coisa pública e na busca da redução das profundas desigualdades sociais que estruturam este Brasil “de mil e tantas misérias” (Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas).
A história da construção da Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT, de 1943, está profundamente imbricada ao processo de criação e instalação da Justiça do Trabalho como Justiça Especializada. Em 1932, para dar efetividade às normas de proteção aos trabalhadores, às mulheres e aos menores, foram criadas as Juntas de Conciliação e Julgamento. Instâncias administrativas e paritárias, compostas pelo presidente e pelos representantes classistas, de empregadores e empregadores, escolhidos pelo presidente da República a partir de listas encaminhadas pelos sindicatos e com mandato temporário (BIAVASCHI, 2007). Em 1934, a Justiça do Trabalho foi instituída pela Constituição Federal, introduzida no capítulo da organização econômica e social brasileira, nos termos da lei complementar. Em 1935, Oliveira Viana, então consultor do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, MTIC, encaminhou à Câmara dos Deputados seu projeto de organização, elaborado no interior do MTIC. Seus princípios fundamentais eram, entre outros: composição paritária, identidade do juiz, processo oral, prova imediata, concentração dos atos processuais, instância única, gratuidade, execução das suas decisões, poder normativo. A proposta recebeu forte contestação liberal. Waldemar Ferreira, relator na Comissão de Constituição e Justiça, apontou sua suposta inconstitucionalidade por atribuir à Justiça do Trabalho “poderes legiferantes”, sublinhando sua “inspiração fascista”. Os princípios da proposta eram, entre outros: composição paritária, identidade do juiz, processo oral, prova imediata, concentração dos atos processuais, instância única, gratuidade, execução das suas decisões, poder normativo. Retirada por Getúlio, a proposta foi apresentada mais uma vez ao Parlamento, sendo igualmente resistida e retirada (BIAVASCHI, 2007; 2013). A Constituição de 1937 definiu a Justiça do Trabalho como organismo especial e autônomo destinado a dirimir conflitos entre empregados e empregadores regulados pela legislação social. Em 2 de maio de 1939 ela foi criada por meio do Decreto-Lei n.1237, nascendo como a conhecemos até ser extinta a representação classista e ampliada sua competência pela Emenda Constitucional nº45. Em 1940, novo regulamento alterou alguns aspectos, prevendo, ainda, sua instalação oficial para 1º de maio de 1941.
Portanto, a Justiça do Trabalho, prevista constitucionalmente em 1934, criada em 1939, regulamentada em 1940, foi oficialmente instalada em 1941. Em 1939, foram definidas suas atribuições e seus órgãos: as Juntas de Conciliação e Julgamento, os Conselhos Regionais do Trabalho e o Conselho Nacional do Trabalho, futuro Tribunal Superior do Trabalho, para, no ano seguinte, ser regulamentada, com previsão de ser instalada em 1º de maio de 1941. Em 1946, foi integrada ao Poder Judiciário. Enquanto a década de 1930 marcou a pujança da produção normativa trabalhista, com momentos de relevância na Lei dos Dois Terços, no voto universal, nos direitos das mulheres e dos menores, na limitação da jornada, na extensão da estabilidade aos trabalhadores da indústria e do comércio, passando pela: criação das Juntas de Conciliação e Julgamento, elaboração da CLT e instituição da Justiça Especializada, no final da década de 1980 a Constituição de 1988, que elevou os direitos dos trabalhadores à condição de direitos sociais fundamentais, completou o ciclo de constituição do arcabouço jurídico institucional trabalhista e de construção do Estado Social. Nesse processo, tanto a Justiça do Trabalho quanto a CLT sofreram oposição ferrenha dos setores mais conservadores da sociedade, sendo ameaçadas aqui e ali em suas existências. Afinal, são pedras no sapato dos que querem eliminar os obstáculos ao livre trânsito de um capitalismo “sem peias”. A “Reforma Trabalhista” vigente desde novembro de 2017 atingiu frontalmente esse sistema.
A OXFAM e a coisa pública
Em nota de janeiro de 2019 a OXFAM (clique aqui para ver), aprofundando o debate entre “Bem público ou riqueza privada”, afirma que saúde, educação e outros serviços públicos universais reduzem as desigualdades sociais. Assinala que a economia está falida, com centenas de milhões de pessoas vivendo na extrema pobreza, enquanto o número de bilionários duplicou desde a crise financeira de 2008, com crescimento de suas fortunas à razão de 2,5 bilhões de dólares por dia. E apesar disso, esses bilionários e as grandes empresas estão pagando o menor nível de impostos em décadas. Nesse cenário, a opção pelo desmonte da coisa pública e pelos serviços privados afeta os que mais deles necessitam para a vida minimamente civilizada, ampliando-se o fosso entre ricos e pobres e entre mulheres e homens. A questão da tela pública de proteção ao trabalho e a existência de instituições que a assegurem inserem-se nessa complexidade.
Uma nova lógica está em curso. Mas ela não é irreversível. Discutir o seu significado é o que essa página se propõe. Boa leitura.
Referência bibliográfica:
BIAVASCHI, Magda Barros. “O Direito do Trabalho no Brasil – 130-1942: a construção do sujeito de direitos trabalhistas”. São Paulo: LTR, 2007).
Magda Barros Biavaschi é desembargadora aposentada do TRT4, Doutora e Pós-doutora em Economia social do Trabalho IE/UNICAMP, Pesquisadora no CESIT/Unicamp
Fonte: Carta Maior.
Por Magda Barros Biavaschi
Data original de publicação: 22-01-2019.