Até quando o STF vai virar as costas para a realidade?
Por Ana Frazão / Jota
Não é de hoje que o STF vem negligenciando, no que diz respeito às relações trabalhistas, dois princípios fundamentais para a regulação da atividade econômica: o princípio da supremacia da realidade sobre a forma e o princípio do equilíbrio entre poder e responsabilidade.
Tais princípios são de fundamental importância para a regulação dos mercados não apenas por questões morais e jurídicas, mas também econômicas. Afinal, se o agente econômico pode facilmente fraudar e subverter regimes cogentes de responsabilidade, tem-se espaço perigoso para que possa exercer poder sem responsabilidade, o que cria incentivos naturais para o exercício abusivo desse poder, assim como para a assunção excessiva de riscos e geração de grandes externalidades negativas.
Já tive a oportunidade de alertar para esse problema algumas vezes, notadamente quando analisei o entendimento do STF sobre o salão-parceiro e sobre o transportador autônomo de cargas, assim como quando procurei explicar as razões pelas quais, embora se possa terceirizar atividades, não se pode terceirizar responsabilidades.
Em todas essas ocasiões, havia salientado não apenas a fragilidade de vários fundamentos adotados para chancelar a constitucionalidade das leis sob apreciação, como também o fato de que o STF estava se baseando excessivamente em aspectos formais ao invés de privilegiar os aspectos materiais, o que abriria margem para a prática reiterada de fraudes à legislação trabalhista.
O receio não era infundado e recentes julgamentos da Suprema Corte consolidam a preocupante tendência de total insensibilidade em relação ao Direito do Trabalho e da busca de soluções que, ao privilegiarem claramente a forma sobre a realidade, podem ser facilmente utilizadas para burlar a legislação trabalhista.
Com efeito, por meio de reclamações, o STF tem revisto, em muitos casos de forma monocrática e sumária, decisões dos tribunais trabalhistas que, mais do que reconhecerem a existência da subordinação inerente à legislação trabalhista, mencionam a fraude à legislação trabalhista.
Uma das primeiras discussões diz respeito ao contrato de franquia. Ora, ninguém discute que se trata de contrato empresarial, desde que efetivamente estejam presentes os elementos materiais de tal operação econômica, o que obviamente não é o caso de situações nas quais se pode constatar que o contrato de franquia é mera simulação de uma relação de emprego.
Em sessão virtual ocorrida em abril deste ano, a 2ª Turma do STF, ao julgar a RCL 58.333[1], cassou decisão da Justiça do Trabalho que havia entendido que o contrato de franquia em questão simulava, na verdade, uma relação de emprego. A decisão trabalhista havia explorado amplamente os fundamentos pelos quais o reclamante, mesmo tendo constituído uma pessoa jurídica e operando formalmente como microempresa, era de fato um empregado. Nesse sentido, o acórdão impugnado mostrara o propósito de burlar a legislação trabalhista, uma vez que estaria presente tanto a subordinação clássica, como também a subordinação estrutural e objetiva.
Para chegar a tal conclusão, a corte trabalhista não se utilizou do rótulo contratual e muito menos agiu de forma açodada. Apreciou fatos e explicou por que, ao seu ver, estariam presentes cada um dos fundamentos da subordinação. Entretanto, sem sequer considerar tais aspectos, o STF cassou a decisão sob o fundamento genérico de afronta a decisões da Corte, tais como a que julgou a possibilidade de terceirização de todas as atividades, bem como as que assentaram a natureza civil das relações entre empresas e transportadores autônomos, trabalhadores de serviços intelectuais e trabalhadores terceirizados.
É interessante notar que, em todas as decisões apontadas como contrariadas na reclamação, o Supremo Tribunal Federal sempre deixou consignada a sua preocupação de que a admissibilidade apriorística de outros tipos de relação de trabalho que não o emprego – o trabalho subordinado – não afastaria a possibilidade de identificação de fraudes e burlas pela justiça do trabalho. Em outras palavras, o STF nunca afastou – como era de se esperar – o princípio da supremacia da realidade sobre a forma.
Entretanto, ao ignorar solenemente o exame de fatos e provas por meio das quais as Cortes trabalhistas não apenas identificaram o vínculo real de emprego como constataram o intuito de fraudar a legislação trabalhista, o STF acabou por valorizar exclusivamente o aspecto formal do contrato, indo de encontro até mesmo às advertências dos julgamentos anteriores nos quais se baseou.
Outra circunstância que causa espécie, na mencionada reclamação, é a citação, na ementa do julgado, da Lei de Liberdade Econômica, o que sugere que seria ela – de constitucionalidade duvidosa, a propósito – e não a ordem econômica constitucional o referencial normativo para julgar um caso como esse.
A situação se reproduziu, também em caso de franquia, no julgamento da RCL 57.954 pela 1ª Turma do STF[2]. De forma semelhante à 2ª Turma, o STF chancelou decisão monocrática do ministro Alexandre de Moraes que cassara decisão trabalhista que reconhecera a fraude a legislação trabalhista.
Neste caso, a Justiça do Trabalho, mais uma vez se referindo a amplo conjunto probatório, havia não apenas considerado a presença de todos os elementos da subordinação, como havia mostrado a inexistência material de contrato de franquia, mencionando inclusive a ausência de pagamento de royalties. Outro agravante deste caso é que a prova havia apontado para o fato de que o contrato de franquia havia sido celebrado dois meses depois da admissão do empregado, como condição para continuar laborando para a ré. Daí a conclusão do Tribunal Regional do Trabalho de que os empregados tornavam-se pessoas jurídicas por imposição da empresa, a fim de que mantivessem seus empregos.
Não obstante, o STF desconsiderou toda a análise probatória para, mais uma vez, se basear em argumentos genéricos de que são possíveis outras formas de relação de trabalho que não apenas o vínculo de emprego. Nem mesmo abordou as razões fáticas pelas quais a corte trabalhista havia afastado a existência do contrato de franquia e por que, ao constatar legitimamente a fraude, a decisão trabalhista estaria descumprindo as anteriores decisões da Suprema Corte.
De forma ainda mais surpreendente, decisão monocrática do ministro Alexandre de Morares na RCL 59795[3] considerou que decisão trabalhista que confirmara vínculo de emprego de motorista de aplicativo teria contrariado os anteriores julgamentos do STF, quando se sabe que os julgamentos anteriores da Suprema Corte nunca abordaram tal questão específica.
Acessa o artigo na íntegra aqui
Fonte: Jota
Data original de publicação: 31/05/2023