Breque dos Apps: a ocupação das ruas reinventa o sentido de coletividade
Por Luci Praun | Observatório da Precarização do Trabalho e da Reestruturação Produtiva
“Aquilo que muitos concebiam como duplamente improvável, aconteceu. Lá estavam eles, entregadores de aplicativos, promovendo uma paralisação nacional, o Breque dos Apps. As manifestações de rua, local de trabalho de um contingente crescente de homens e mulheres, ganharam corpo na quarta-feira, 1º de julho, em pelo menos 11 capitais, além de outras cidades brasileiras.
Antes de seguir, explico o “duplamente improvável”. Na perspectiva de seus defensores, o empreendedorismo é um projeto que se encera no indivíduo. Este, supostamente livre, converte-se em uma espécie de pessoa S.A., de agente racional movido por sua capacidade individual de criar e fazer escolhas. Essa “liberdade”, expressa em valores e comportamentos desejáveis, resultaria das pressões e racionalidade próprias do mercado. Como projeto, o empreendedorismo situa-se bem distante de qualquer senso de coletividade alinhavado pela luta por direitos sociais e do trabalho e, portanto, de uma greve.
Enquanto escrevo, lembro das cenas iniciais do recente filme de Ken Loach. Nelas, um trabalhador, que afirma ter orgulho de não se valer do seguro-desemprego, ao ser entrevistado por seu futuro empregador, escuta: “aqui você não é contratado, embarca; não trabalha para nós, trabalha conosco; não dirige para nós; presta serviço”.
Sigo escrevendo com o filme na cabeça e lembrando de tantas outras expressões, também afinadas ao ideário da “liberdade de escolha”, sutilmente inseridas em nosso cotidiano. Fomos sendo aos poucos convertidos em colaboradores. No mágico mundo da liberdade de escolha não há espaço para resistências. Espera-se que sejamos proativos, flexíveis, resilientes, que nos comportemos como indivíduos sempre ávidos pelas oportunidades supostamente oferecidas pelo mercado e que encarnemos a defesa do mérito individual. Mas a vida real acaba, para a maioria, sempre se chocando com os modelos liberais.
Converter-se em empreendedor, em “patrão-de-si-mesmo”, tal como sugere a trama proposta por Ken Loach, mais que uma questão de escolha, resulta de circunstâncias particularmente favoráveis, capazes de impelir milhões de homens e mulheres rumo a um tipo de trabalho hiperflexibilizado, sem salário, sem direitos e sem garantias.
Por isso, a experiência que se apresenta para muitos e muitas inicialmente envolta pelo véu do desejo individual, da possibilidade de ser dono de seu próprio destino, tende rapidamente a transformar-se. É o que indicam os dados de uma pesquisa realizada em junho de 2019 pela Aliança Bike, que teve como objetivo traçar o perfil de entregadores ciclistas de aplicativo em atividade em seis regiões da capital paulista, todas escolhidas pela alta concentração de restaurantes e, por conseguinte, pela acentuada movimentação de entregadores. Longe de ratificarem a fábula do empreendedorismo, o que os dados revelam é a completa falta de limites para a precarização do trabalho.
Assumindo parte significativa dos custos do negócio, esses jovens (75% com até 27 anos), em sua maioria homens negros (71%), pedalam em média 10,3 km diariamente somente no deslocamento entre suas casas e as regiões onde trabalham. Ficam em média 9 horas e 24 minutos por dia à disposição do aplicativo, o que lhes afere remuneração média mensal de R$936. Entre os entrevistados, 57% declararam trabalhar de segunda a domingo e 30% chegam a pedalar 50km diariamente para realizar entregas.
Em 2019, a principal motivação para adesão a esse tipo de trabalho, conforme a pesquisa da Aliança Bike, foi o desemprego, a necessidade de sobreviver. Ao “embarcarem” no mundo mágico empreendedorismo, a maioria passou também a engrossar o crescente contingente de trabalhadores informais, desde sempre presente no mercado de trabalho brasileiro, mas em franca expansão desde a vigência da contrarreforma trabalhista de 2017. As medidas, vale recordar, ampliaram significativamente as formas de flexibilização do trabalho, eliminando direitos e instituindo um conjunto de dispositivos promotores da ampla e legalizada desproteção dos e das trabalhadoras. A explosão do trabalho de entrega por aplicativos é parte desse processo.
Em tempos de pandemia, quando o volume de entregas se ampliou, fruto das medidas de isolamento social e do reconhecimento da essencialidade da atividade, os entregadores, que aparentemente tinham tudo para “se dar bem”, assistiram suas condições de trabalho deteriorarem-se ainda mais. Agora, além de expostos à contaminação, sem benefícios e sem qualquer amparo trabalhista, também observavam o encolhimento de seus rendimentos. (…)”
Fonte: Observatório da Precarização do Trabalho e da Reestruturação Produtiva | Esquerda Diário
Data original da publicação: 04/07/2020