Bruna Bakker: O discurso sobre estresse que esconde a emergência de produtividade.
Por Patricia Fachin | Edição João Vitor Santos | IHU On-line
“Todo mundo já deve ter ao menos passado os olhos em reportagens que dizem que o estresse é o mal do século – aliás, reportagens nesse sentido que têm se proliferado em tempos de pandemia. A pesquisadora Bruna Bakker resolveu mergulhar nesse discurso e desvelar o que há por trás dessa ideia de estresse como mal-estar contemporâneo. Passando pelas concepções da biopolítica, não demora para Bruna perceber que a preocupação com estresse enquanto mal social tem relação direta com a forma como atrapalha a produtividade do ser humano moderno. “A ideia de se administrar, controlar, gerir o estresse, portanto, é um argumento importante para que as pessoas persistam em viver nesse limiar da produtividade e da exaustão”, observa, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Assim, vigilância e produtividade parecem se constituir como uma dobradinha potente nesses tempos modernos. “Constituir-se como esse corpo produtivo que está sempre se monitorando para não esgarçar, não adoecer, não se tornar ‘inútil’, ‘improdutivo’. A resiliência, portanto, surge como uma qualidade imprescindível, um atributo que permite que aquele corpo e aquele sujeito continuem ‘estressáveis’ e não tendam para a doença ou para a improdutividade”, analisa.
Bruna ainda constata como é curioso que, “embora o estresse seja apresentado como algo passível de gestão pessoal, ele é também apontado, frequentemente, como um mal-estar global e de dimensões epidêmicas”. Ou seja, é um problema do indivíduo que tem de ser reparado para não impactar o coletivo. “Sendo assim, a força do conceito de estresse reside no aparente paradoxo que promove: ser um mal coletivamente sentido, mas individualmente abordado”, completa. Mas o problema é que o estresse é gerado pelo modo de vida no coletivo, e tentar resolver no individual pode levar a movimentos espirais sem saída. “O conceito de estresse, portanto, justifica o culto à performance, a precarização do trabalho, a cooptação do tempo de vida para produção e consumo”, conclui.
Bruna Werneck de Andrade Bakker é doutora e mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Possui graduação em Comunicação Social (Rádio e TV) pela mesma instituição e, desde 2012, trabalha com animação digital para TV e cinema. Atualmente, participa do Núcleo de Estudos de Mídia, Emoções e Sociabilidade – Nemes, da Escola de Comunicação da UFRJ. Desenvolve pesquisa na área de Comunicação, especialmente nos temas de mídia, subjetividade, cultura, empreendedorismo, cinema e audiovisual.
Confira a entrevista
IHU On-Line – O estresse é um mal-estar contemporâneo? Quais são os indicativos disso?
Bruna Bakker – O conceito de estresse é bastante versátil e, portanto, é difícil defini-lo. Hoje em dia, falamos com naturalidade sobre uma rotina estressante, qualificamos pessoas como estressadas e, com frequência, vemos o estresse surgir como fator de risco para a saúde, podendo estar associado desde a perda de cabelos e o surgimento de espinhas a graves doenças cardíacas. Em função desse caráter multifacetado do conceito, argumentei na tese que ele vem sendo construído ao longo do tempo como uma espécie de “mal-estar contemporâneo”, ou seja, como um termo capaz de dar contorno a uma difusa sensação de cansaço e de desgaste no cotidiano das pessoas [1].
Meu objetivo com a pesquisa, portanto, não foi revelar se o estresse é ou não é um mal-estar contemporâneo, com o intuito de constatar alguma verdade sobre ele. Procurei observar de que maneiras a sua constante presença nos discursos midiáticos e na linguagem médico-científica dos últimos cinquenta anos o alçou à condição de uma “epidemia global” do século XXI, conforme declarou a Organização Mundial da Saúde – OMS nos anos 2000. Atualmente vivemos sob novos registros tecnológicos, regimes de sociabilidade e relações de trabalho que afetam nossa subjetividade, nossos modos de ser e estar no mundo. Estamos submetidos a fluxos intermitentes de trabalho, esgarçamos diariamente a nossa atenção quando nos conectamos aos mais diversos aparatos digitais, e somos instados a buscar a alta performance tanto nas atividades profissionais, na vida sexual ou, até mesmo, na prática (supostamente amadora) de atividades físicas regulares, cada vez mais orientadas para a superação dos limites físicos dos sujeitos.
E, sendo assim, ao que exatamente estamos nos referindo quando definimos as nossas experiências cotidianas, profissionais, urbanas, familiares, a partir do termo estresse? De que modos, e em que medida, os usos e as significações contemporâneas do estresse apontam para novas relações com as noções de tempo, de trabalho, de saúde, de ideais de sucesso, de produtividade, de qualidade de vida? O que pude concluir com esta pesquisa é que o estresse, quando adquire contornos de um difuso “mal-estar”, torna-se uma medida individual do limite físico e emocional que cada um é capaz de suportar, fomentando a resiliência como um valor e atribuindo aos sujeitos a responsabilidade de reduzir os efeitos do estresse sobre seus corpos.
É comum observar em reportagens sobre gestão do estresse a utilização de um repertório visual capaz de traduzir a sensação de tensão, pressão e peso. Com frequência, imagens de cordas quase rompendo, copos transbordando, rostos enrubescidos de raiva, panelas de pressão na iminência de explodir ilustram as matérias. O corpo estressado aparenta ser aquele que chegou ao seu limite.
Em uma das reportagens que analisei no início dos anos 2000, esse imaginário da resiliência como forma de administrar o estresse é pensado de modo interessante. Em entrevista à Veja sobre a implementação de programas de controle de estresse nas empresas brasileiras da época, a psicóloga Marilda Lipp reflete sobre as dificuldades de se mensurar os níveis de estresse dos funcionários, uma vez que não seria fácil reconhecer “quando o mero cansaço vira risco de doença ocupacional” [2]. Segundo ela, a fronteira entre a produtividade ideal e o esforço excessivo pode ser comparada à afinação de uma corda de violão: “nem tão frouxa que não possa produzir som; nem tão tensionada a ponto de se romper” [3].
Esta analogia parece traduzir de modo bastante claro a dinâmica de gestão do estresse a que somos convidados. Como algo passível de ser administrado e controlado, o estresse surge como uma poderosa ferramenta discursiva de integração dos sujeitos ao status quo, naturalizando as fontes de tensão que os atormentam sem, contudo, problematizá-las.
IHU On-Line – Como o estresse tem sido tratado na mídia, de modo geral? O modo como o estresse é abordado na mídia é condizente com o modo como é tratado na medicina?
Bruna Bakker – De uma maneira geral, pode-se dizer que o estresse tem sido considerado na mídia como um “fator de risco” à saúde e à qualidade de vida, sendo frequentemente associado aos hábitos e condições da chamada “vida moderna”. Vale observar, porém, que este tipo de abordagem ao estresse apresentou significativas mudanças ao longo dos anos. Surgiram novas acepções sobre quais condições da vida moderna são capazes de promover o estresse e as próprias noções de “risco” e de “saúde” adquiriram outros contornos.
No meu recorte de pesquisa, voltado mais especificamente para a revista Veja de 1968 a 2018, observei que tanto reportagens quanto propagandas sobre o estresse estavam alinhadas ao saber médico de cada época, geralmente respaldadas por pesquisas científicas de universidades estrangeiras ou de empresas farmacêuticas.
Frequentemente envoltas por uma aura de novidade, as descobertas da medicina e das ciências, quando são reportadas pelos meios de comunicação, tendem a chancelar os seus resultados como verdades. Nesses casos, caberia ao jornalista o papel de encontrar a linguagem mais apropriada para traduzir as descobertas médicas para as pessoas comuns. Embora a acuidade científica das notícias seja considerada importante, em alguns casos, dependendo dos hábitos e dos comportamentos ditos “de risco” (bem como as consequências que eles poderiam gerar à saúde da população), admitem-se “deformações” no discurso médico para incentivar ou desencorajar determinadas condutas (VAZ et al., 2007, p. 149).
É facultado ao jornalismo científico, portanto, traduzir o termo “fator de risco” como causa, atribuindo a ele uma perspectiva de causalidade e não de probabilidade. Desse modo, as revistas semanais de informação, como a Veja, ao atribuírem para si mesmas a função de traduzir os resultados das pesquisas e inovações científicas ao público leigo, assumem um papel biopolítico relevante para estimular e orientar determinadas condutas em prol da saúde individual, da longevidade, da felicidade etc. (SAINT CLAIR, 2012; VAZ et al., 2007).
Estresse e o mal em si mesmo
Na passagem dos anos 1990 aos 2000, observa-se o aumento não só do número de menções ao estresse e de reportagens dedicadas ao termo, mas também a emergência de novas preocupações sobre a saúde e o bem-estar das pessoas. Embora ainda seja utilizado na condição de “fator de risco”, o estresse passa a ser apresentado como um “mal em si mesmo”, como um entrave para a qualidade de vida. Aliás, é justamente neste período que a Organização Mundial da Saúde adere ao conceito de “qualidade de vida” como um modo de mensurar o bem-estar de uma determinada população em diversos níveis: físico, psicológico, social etc.
No cenário contemporâneo, portanto, os males do estresse não se restringem a ameaçar a saúde dos sujeitos (como uma das possíveis causas de adoecimento futuro do corpo), mas principalmente a sua capacidade de produtividade, de tornar o corpo ineficiente, incapaz de atender com competência às demandas diárias relacionadas ao trabalho, à família, à vida social e sexual etc. Esta mudança acompanha também o próprio discurso médico sobre saúde e bem-estar. De acordo com a configuração biopolítica atual, por exemplo, estar saudável não significa apenas estar livre de doenças, mas também adotar as medidas necessárias para evitar os riscos que podem ocasionar futuras enfermidades, conduzindo o dia a dia de modo a fortalecer o corpo e até mesmo aumentar suas capacidades físicas, por exemplo. (ROSE, 2013; SIBILIA e JORGE, 2016).
Corpo produtivo e corpo saudável
Nesse sentido, há que se considerar que os enunciados sobre estresse na mídia são atravessados pelo saber biomédico. Por se tratar de um conceito científico e que, amiúde, está alicerçado pelos estudos da medicina, das neurociências, da psicologia cognitiva, entre outros, o “estresse” produz efeitos de verdade capazes de influenciar a relação que os sujeitos estabelecem com seus corpos e avaliam suas condutas e estilos de vida. Dessa forma, o estresse pode ser situado nesse limiar entre o corpo produtivo (capaz de atender às exigências de alto desempenho) e o corpo saudável (aquele que tem êxito em se prevenir de potenciais doenças). O termo, portanto, não é uma doença em si; mas um prenúncio para alguma enfermidade futura e que, devido a tal probabilidade, deve ser combatido, amenizado, gerenciado. (…)”
Confira aqui a entrevista completa
Fonte: IHU On-Line
Data original da publicação: 12/11/2020