Como a agricultura familiar resiste à concentração de terras e garante alimento na mesa dos brasileiros

Fonte: Luiz Fernandes | ICL notícias
A resistência da agricultura familiar na luta por terra, diversidade e soberania alimentar em um país marcado pela desigualdade
Por ICL notícias
Embora represente a maior parte dos estabelecimentos agropecuários do Brasil, a agricultura familiar ocupa apenas uma pequena parte das terras agricultáveis do país.
Se o agronegócio ostenta a posse de imensos territórios, equipamentos de última geração e exportações e cifras milionárias, é o cultivo cotidiano das famílias do campo o responsável por grande parte dos alimentos consumidos pelos brasileiros.
Essa desigualdade é uma característica marcante da história do nosso país. A separação entre quem produz alimento e quem lucra com a acumulação de terras reflete uma herança que remonta desde a invasão portuguesa do território brasileiro.
É impossível discutir o cenário da agricultura familiar sem abordar a desigualdade no acesso à terra, os recortes raciais das estatísticas e a urgência de uma reforma agrária. Nesse artigo, vamos explicar o que é a agricultura familiar, como ela alimenta o povo brasileiro e quais são as dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores do campo.
O que é agricultura familiar?
A agricultura familiar é um sistema de produção agrícola onde a gestão e o trabalho na terra são realizados por membros de uma mesma família. Em geral, esse modelo é marcado pela grande diversidade produtiva e uso de técnicas agrícolas mais sustentáveis.
Para efeitos de políticas públicas e regulamentações, a Lei da Agricultura Familiar (lei 11.326/2006) define que para ser enquadrado nessa categoria, o agricultor familiar deve atender a alguns requisitos:
- Não possuir uma área superior a quatro módulos fiscais — medição feita em hectares e que varia conforme a região do país.
- Utilizar majoritariamente mão de obra familiar.
- Ter uma porcentagem mínima da renda proveniente do estabelecimento.
- Ter o estabelecimento controlado pela própria família.
A importância da agricultura familiar
Falar em agricultura familiar no Brasil é mais do que exaltar a comida no prato de cada dia: é reconhecer quem realmente sustenta o campo, a economia local e o direito de permanecer na terra.

A comida no prato
Em um país onde a monocultura ocupa a maior parte da terra produtiva para exportar soja, milho e boi, é justamente a agricultura familiar que garante a diversidade alimentar no prato do brasileiro.
Com apenas 23% das áreas produtivas do país, os pequenos produtores são responsáveis por 64% da produção de alface, 64% do leite, 69% da mandioca, 45% das aves, e parte considerável do milho-verde, arroz, batata-doce e café — alimentos que estão entre os mais consumidos nas casas brasileiras.
Quanto a carne bovina, 45 empresas brasileiras são responsáveis por 98% das exportações do país. Ao mesmo tempo, a agricultura familiar concentra 30% das cabeças de gado disponíveis no Brasil. Ou seja, se você acha que toda a carne que você consome vem do agronegócio, se enganou. De um lado há quem “passa a boiada”, do outro quem abastece o mercado interno.

Essa desproporção entre território e produção é mais que um dado técnico: é um retrato da persistência histórica de milhões de famílias que seguem plantando, mesmo à margem do investimento e da infraestrutura rural.
A economia girando
A importância da agricultura familiar no Brasil se estende não apenas à comida colocada na mesa de milhões de brasileiros — mas também no bolso.
Mesmo representando 77% dos estabelecimentos rurais (mais de 3,9 milhões), os agricultores familiares recebem a menor fatia do crédito, da assistência técnica e da atenção pública. Ainda assim, respondem por 10% do PIB nacional e são a base de vida de mais de 10 milhões de pessoas no campo.
Um estudo da Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag) mostra que, em 90% dos municípios com até 20 mil habitantes, 40% da renda vem da agricultura familiar. Em outras palavras: ela não apenas alimenta, ela sustenta economias locais, movimenta o comércio e faz o dinheiro circular entre vizinhos, feiras e mercados.
Por isso, quando alguém te disser que o “agro é pop”, saiba que: pop é o alimento que vem da roça, gera trabalho no campo e garante a diversidade produtiva do país.
Preservação ambiental
Além do bolso e do prato, a agricultura familiar desempenha um papel essencial na preservação ambiental e na sustentabilidade. Embora ela seja apontada como mais suscetível às mudanças climáticas em comparação ao agronegócio, ela é parte fundamental no combate ao aquecimento global.
Como vimos, esse modelo de agricultura possui a menor parte das terras agricultáveis do país, porém, é nele onde residem diversas práticas de manejo que têm impacto positivo no meio ambiente, como a rotação de culturas e o manejo integrado de pragas.
A agricultura familiar engloba também comunidades de assentados da reforma agrária, quilombolas e povos indígenas, que incorporam no cultivo, técnicas pautadas pelo saber popular e pelo trabalho direto na terra.
Entre essas práticas está o cultivo a partir de sementes crioulas — sementes selecionadas por agricultores familiares há gerações e que, por isso, são mais adaptadas as condições do território e possuem maior diversidade genética, sendo menos suscetíveis a doenças, por exemplo.
No entanto, parte desse potencial de preservação encontra barreiras para se desenvolver devido à dificuldade de acesso às novas tecnologias e crédito. Algumas evidências apontam que o crédito rural direcionado para agricultores familiares tem um potencial maior na promoção da conservação ambiental, já que permite a otimização do uso da terra, reduzindo o desmatamento.
Desigualdade no campo
Como vimos, embora responsável por boa parte dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros, a agricultura familiar ocupa apenas 23% das áreas produtivas do país. Já o agronegócio, com suas vastas extensões de terra, concentra poder, infraestrutura e benefícios fiscais — um contraste que revela a estrutura desigual do campo brasileiro.
A concentração de terras no Brasil é uma herança colonial. Desde a Lei de Terras de 1850 — que impediu ex-escravizados e camponeses pobres de acessar propriedades enquanto garantia latifúndios à elite branca —, o país estruturou um modelo agrário excludente.
Como resultado: o Atlas do Espaço Rural Brasileiro revelou que 74% dos estabelecimentos com mais de mil hectares são dirigidos majoritariamente por pessoas brancas. Já nos imóveis com menos de um hectare, o cenário se inverte: pretos, pardos e indígenas são maioria.
No Brasil, os estabelecimentos rurais acima de mil hectares somam 0,9% do total, mas concentram mais de 47% da área agrícola. Do outro lado, as propriedades menores — em sua maioria ligadas à agricultura familiar — são responsáveis pela maior parte dos postos de trabalho no campo. Ou seja, a agricultura familiar produz muito, com pouco.

Toda essa desigualdade se reflete também nos indicadores socioeconômicos dos produtores familiares — cerca de 76% concluíram apenas o ensino fundamental e 23% não sabem ler ou escrever.
Em nota, na época da divulgação do Atlas do Espaço Rural Brasileiro, a geógrafa do IBGE, Daiane de Paula Ciriáco afirmou: “os dados refletem o processo de ocupação e apropriação do território brasileiro desde o início da invasão e da colonização portuguesa”.
Esse cenário é reflexo de uma trajetória histórica excludente, que restringiu o acesso à terra, excluiu povos indígenas, ex-escravizados, camponeses pobres e comunidades tradicionais, perpetuando uma lógica que, infelizmente, ainda resiste no campo brasileiro.
Desafios da agricultura familiar
Dificuldade de acesso a crédito
O acesso ao crédito é fundamental para a agricultura familiar. Mesmo com políticas públicas voltadas ao setor, o financiamento não chega de forma igualitária a todos os produtores.
O principal instrumento é o Plano Safra, que destina crédito anual para o campo. No ciclo 2024/2025, cerca de R$ 400 bilhões foram direcionados à agricultura empresarial, contra R$ 76 bilhões para a agricultura familiar.
Além disso, 43% do crédito rural vai para propriedades com mais de mil hectares, ao mesmo tempo, 80% dos estabelecimentos menores ficam com uma fatia entre 13% e 23%, segundo a Oxfam Brasil.

Para o pequeno produtor o crédito é essencial, já que pode otimizar o custo de produção e venda e aumentar a capacidade de processamento por meio da aquisição de maquinários e investimento em tecnologia. Na Região Centro-Oeste, onde prevalecem grandes propriedades, a mecanização chega a 40%, enquanto no Nordeste, onde há maior concentração de pequenas propriedades, apenas 3% têm acesso a máquinas.
A falta de recursos impacta diretamente no preço de venda dos produtos e na geração de renda dos produtores, já que sem capacidade de processamento e longe dos centros urbanos, muitas vezes dependem de atravessadores para escoar a produção.
Além disso, entre os produtores familiares que acessam crédito, também há desigualdade. Milho, trigo e soja concentram os recursos. No Sul, 29% dos produtores acessam crédito. No Norte, só 9%. O valor por hectare também escancara o abismo: R$ 1.500 no Sul, R$ 83 no Norte.
Conflitos fundiários
A expansão da fronteira agrícola tem sido um elemento significativo no aumento da violência no campo, afetando a vida de milhares de agricultores familiares e pequenos produtores brasileiros, sobretudo em populações indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais e sem-terra.
Segundo o relatório Conflitos no Campo Brasil 2024, elaborado pela Comissão Pastoral da Terra, mais de 904 mil pessoas foram impactadas diretamente por conflitos. Foram quase 2.200 casos, sendo a maioria deles relacionados a disputas pela terra. Os estados que mais registraram episódios de violência foram Maranhão, Pará, Bahia e Rondônia.
A maior parte das disputas teve como causa a grilagem e a expansão do agronegócio. Embora o número de mortes tenha diminuído em comparação ao ano de 2023, as ameaças de morte, intimidações e tentativas de assassinato aumentaram significativamente. Cerca de 13 pessoas foram mortas vítimas da violência no campo em 2024, quase 80% eram indígenas.

Historicamente, a desigualdade e a violência no campo têm raízes profundas. Em janeiro de 2025, dois homens foram mortos em um atentado a um assentamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no interior paulista, evidenciando o cenário trágico que afeta milhares de famílias da agricultura familiar.
Em abril do mesmo ano, um agricultor e liderança no movimento de luta pela terra no sudoeste do Pará foi executado dias depois de gravar um vídeo denunciando a invasão de fazendeiros e pistoleiros em um assentamento voltado para a preservação de amazônia e desenvolvimento da agricultura familiar. A região do crime é a mesma onde, em 2005, a missionária e ambientalista ligada a pastoral da terra, Dorothy Stang, foi assassinada por combater a grilagem de terras.
A necessidade de fortalecer a agricultura familiar
O Brasil conta com ferramentas importantes para incentivar a agricultura familiar e dar mais segurança a quem trabalha no campo. Diversos programas sociais e políticas públicas atuam especificamente nesse setor. Algumas delas são:
- Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar): Programa de apoio às atividades agrícolas e não-agrícolas da agricultura familiar por meio da oferta de linhas de crédito com condições diferenciadas.
- PAA (Programa de Aquisição de Alimentos): Programa que incentiva a compra sem necessidade de licitação de alimentos produzidos por agricultores familiares e os destina a pessoas em situação de insegurança alimentar.
- PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar): Lei que estabelece que 30% do valor repassado pelo governo federal para garantir o acesso à alimentação saudável em escolas municipais, estaduais e federais seja usada para a compra de produtos da agricultura familiar.
- Aposentadoria Rural: Benefício devido aos homens com mais de 60 anos ou mulheres com mais de 55, que comprovem o mínimo de 180 meses trabalhados em atividades rurais.
Embora essas iniciativas sejam fundamentais para o desenvolvimento do campo, elas por si só não corrigem um problema estrutural: a desigualdade no acesso à terra.
A importância da reforma agrária
Como vimos, a desigualdade no campo é histórica e fruto de diversas políticas que, desde a invasão e colonização portuguesa do Brasil, desenvolveram o espaço rural a partir de uma lógica de exploração voltada para a monocultura e exportação. Esse processo consolidou um cenário onde enormes porções de terra estão concentradas nas mãos de pouquíssimas pessoas.
Se a concentração e exploração sempre foram marcas do modelo de desenvolvimento agrário brasileiro, a luta pela terra também é antiga. Povos indígenas, quilombolas e camponeses desempenharam papel fundamental na resistência contra os avanços do agronegócio e na promoção de uma produção voltada para garantir a soberania alimentar.
Segundo a Constituição Federal de 1988, o direito à propriedade deve cumprir a uma função social, pautada pelos interesses socioambientais da coletividade. Nesse sentido, diversos movimentos, como o MST, apontam a incompatibilidade da concentração fundiária e das propriedades improdutivas com a Constituição.

Nesse cenário, reordenar a estrutura do espaço agrário a fim de corrigir desigualdades históricas se torna fundamental — é preciso promover a reforma agrária. Desde 1970, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) já foi responsável pelo assentamento de mais de um milhão de pessoas no país, no entanto, o número está bem longe de consolidar uma distribuição mais igualitária de terras.
Em 2025, um levantamento do Incra identificou mais de 145 mil famílias acampadas à espera de um lote de terra para cultivar. No entanto, a tendência é que o número aumente, revelando a dificuldade do país em fazer cumprir a Constituição Federal e promover a reforma agrária.
Benefícios e desafios
Entre os principais benefícios da redistribuição de terras está o crescimento econômico, a redução da pobreza no campo e a criação de novos postos de trabalho. Além disso, a iniciativa contribui para a soberania alimentar do país, ao incentivar a produção agrária diversificada para o mercado interno.
No entanto, só o acesso à terra não basta, é preciso investir também na construção de estruturas e políticas públicas que auxiliem os produtores da agricultura familiar e assentados da reforma agrária a obterem crédito agrícola, assistência técnica qualificada e infraestrutura logística para o escoamento da produção.
Conclusão
A agricultura familiar prova que a luta e resistência dos povos do campo é uma semente. Embora tenha que lutar por sua existência em uma terra marcada por cercas e latifúndios, ela insiste em brotar. Mais do que isso, ela insiste em produzir e levar comida para a mesa de milhões de brasileiros.
Fortalecer a agricultura familiar não é só política pública. É um gesto radicalmente necessário. É dizer que o campo pode ser diverso, que a mata deve ficar em pé e que todo mundo deve ter comida no prato.
Reconhecer esse protagonismo significa enfrentar desigualdades históricas, valorizar saberes populares e investir em autonomia. É entender que a soberania alimentar se constrói há muitas mãos.
A agricultura familiar não se trata de uma alternativa — é a base.
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Data original de publicação: 27 de maio de 2025