Como o calor extremo reconfigura modos de trabalho
Por Isadora Rupp | Nexo Jornal
Riscos para saúde aumentam em atividades ao ar livre e em ambientes fechados sem regulação térmica adequada. Países começam a rever normas e impor mudanças para proteger empregados.
O Brasil enfrenta desde quinta-feira (14)mais uma onda de calor que deve persistir até o final do verão, em 20 de março. Em três décadas, o número de dias por ano em que o país enfrentou extremos de temperatura passou de 7 para 52.
As altas temperaturas têm efeitos em diversas áreas da vida, inclusive o trabalho, com impactos individuais e coletivos. Até 2030, o mundo deve perder cerca de 2% do total de horas trabalhadas por causa do estresse térmico, alerta um relatório da Organização Internacional do Trabalho.
Neste texto, o Nexo mostra quais são as atividades mais vulneráveis ao calor excessivo, as mudanças que já se impõe a empregadores e trabalhadores e como os governos estão lidando com o problema.
O estresse térmico
Conforme explicou ao Nexo a médica Mayara Floss, pesquisadora da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, o calor excessivo pode gerar estresse térmico, que é uma espécie de colapso do corpo.
Nesta condição, o organismo perde a capacidade de autorregular a temperatura, pois ocorre uma falha do mecanismo de transpiração, responsável por fazer o corpo resfriar. A condição é considerada uma emergência médica, pois essa falha pode levar a pessoa à morte. Manter a temperatura corporal ao redor dos 37°C é essencial para o corpo funcionar normalmente.
Também são sinais de alerta, segundo Floss, inchaço, vermelhidão na pele, exaustão e desmaio. Procurar um local mais fresco, aumentar a ingestão de água e resfriar o corpo são algumas medidas de prevenção.
A médica lembra que o estresse por calor não ocorre apenas pela exposição solar, mas pela condição de temperatura e ventilação do ambiente.
As atividades que oferecem maior risco
Um relatório da Organização Internacional do Trabalho mostra que o calor extremo impacta na produtividade e no trabalho digno em praticamente todos os países do mundo e afeta todos os setores da economia. Os riscos são maiores, porém, em atividades realizadas ao ar livre e que envolvem trabalho físico, como:
- Agricultura
- Construção civil
- Trabalho de reparos de emergência
- Transporte
- Turismo
- Esporte
Segundo a entidade, a agricultura e a construção civil são atividades especialmente vulneráveis, pois há uma exposição contínua ao sol e ao calor, o que aumenta o risco de o trabalhador desenvolver algum tipo de doença crônica relacionada ao trabalho, como doenças renais ou câncer de pele.
“Vendedores ambulantes e entregadores que usam bicicleta ou moto são especialmente vulneráveis, porque o asfalto aumenta a sensação de calor”, afirmou Mayara Floss.
De acordo com a Organização Internacional do Trabalho, temperaturas de até 26°C são consideradas confortáveis e seguras para atividades laborais ao ar livre. Acima disso, há riscos de estresse por calor e redução da capacidade de trabalho.
5 milhões é o número de pessoas que morrem anualmente no mundo por causa de temperaturas extremas, diz a Cool Coalition, entidade global para resfriamento eficiente e ecológico do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente
Em 2023, trabalhadores da UPS (United Parcel Service), empresa de logística dos Estados Unidos, quase entraram em greve — a ameaça de paralisação foi motivada em parte pelas condições ruins de trabalho no calor.
Os motoristas da UPS, que trabalham em caminhões sem ar-condicionado, diziam que o veículo se tornava uma espécie de forno ao longo do dia. Alguns foram hospitalizados após um dia de entregas sob altas temperaturas com estresse por calor e lesão renal grave.
Na Itália, em julho de 2023, trabalhadores da construção civil morreram por causa do calor extremo – foram cinco casos em apenas uma semana. Representantes de sindicatos defenderam à época que quem atua no setor tenha licença remunerada quando a temperatura ultrapassa os 35°C.
Já trabalhadores da indústria que atuam em ambientes fechados sofrem risco se os níveis de temperatura dentro das fábricas e escritórios não estiverem regulados adequadamente, alerta a organização.
Em Sorocaba, no interior de São Paulo, trabalhadores de uma fábrica de resistência elétrica passaram mal em uma das ondas de calor de 2023 por causa do ambiente de trabalho: um galpão baixo, com teto de zinco e água quente para beber, conforme mostrou a Repórter Brasil em janeiro de 2024.
O aumento das denúncias no Brasil
Segundo o Ministério Público do Trabalho, as ondas de calor aumentaram as queixas sobre exposição ao calor excessivo e de impactos à saúde no Brasil.
Embora o órgão não tenha informações precisas sobre o número de denúncias envolvendo o tema, a procuradora Cirlene Zimmermann, coordenadora nacional de Defesa do Meio Ambiente do Trabalho e da Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora, disse ao Nexo que há um “número muito expressivo de casos” .
Zimmermann afirma que as denúncias vêm principalmente de trabalhadores rurais, da construção civil e motoristas de ônibus e caminhões, além de empregados do comércio e de supermercados. Eles disseram ao órgão que tiveram problemas como desidratação, mal-estar, tontura, desmaios, dor de cabeça e esgotamento físico ocasionado pelo calor excessivo e ambiente de trabalho inadequado.
Os danos à produtividade
Projeções da Organização Internacional do Trabalho indicam que o estresse por calor vai reduzir em 2,2% as horas de trabalho em todo o mundo até 2030. É uma perda de produtividade que equivale ao rendimento de cerca de 80 milhões de postos em tempo integral.
A estimativa, no entanto, é conservadora, e leva em conta que o mundo conseguirá não exceder a temperatura global em 1,5°C — uma meta que tem se tornado menos possível na medida em que países não atuam para reduzir suas emissões de gases causadores do efeito estufa no ritmo necessário.
De acordo com o estudo, a construção civil e a agricultura são os dois setores que serão mais severamente afetados pelas ondas de calor extremo.
No Brasil, a construção civil notou uma queda no rendimento médio dos trabalhadores em 2023 por causa do calor e do sol excessivo por períodos mais longos, algo semelhante ao que ocorria nas estações chuvosas, quando obras de infraestrutura precisavam ser paralisadas.
60% estimativa de perdas de horas trabalhadas no setor agrícola até 2030, por causa de estresse por calor, segundo a Organização Internacional do Trabalho
Outro aspecto é a informalidade presente nessas atividades. Esse fator, somado às condições de trabalho insalubres, podem levar trabalhadores a deixarem o setor, afirma a organização.
As mudanças necessárias
O calor extremo vai exigir adaptações dos governos, de empresas e da sociedade. Em 2023, quando ondas de calor atingiram o hemisfério norte, a Espanha reforçou normas para proibir o trabalho ao ar livre em dias de alerta pelo calor e impôs multa para empresas que desrespeitarem as regras.
Nos Estados Unidos, onde existem menos leis de proteção aos trabalhadores, o governo do democrata Joe Biden fez recomendações como alertas de perigos em fazendas e canteiros de obras, além de aumentar a inspeção de segurança em relação ao calor na agricultura e na construção civil.
O estado do Texas aprovou uma lei que eliminou regras locais que exigiam que a construção civil concedesse pausas obrigatórias para hidratação e descanso dos operários, algo criticado por Biden.
No Brasil, segundo a legislação trabalhista, as empresas são responsáveis pelo bem-estar e saúde dos trabalhadores, o que inclui o conforto térmico. O Ministério Público do Trabalho tem normas regulamentadoras que são aplicadas conforme a atividade econômica. Denúncias sobre calor excessivo são consideradas, de acordo com o MPT, como violação à norma regulamentadora 24.
Segundo a Organização Internacional do Trabalho, a criação de normas e legislações por parte do governo é a medida mais eficaz para combater abusos e problemas relacionados ao calor extremo no trabalho. A organização orienta ainda que governos, entidades sociais e trabalhadores estabeleçam um diálogo para pensar e implementar, juntos, políticas de mitigação ao problema.
Para a médica Mayara Floss, uma das adaptações necessárias para trabalhadores mais expostos ao calor, principalmente na agricultura e construção civil, é a alteração dos horários de trabalho. O ideal é que a atividade se concentre bem no começo do dia ou à noite.
Na cidade de Phoenix, nos Estados Unidos, dias sucessivos de calor extremo em 2019 fizeram com que obras de infraestrutura fossem realizadas no período noturno para poupar trabalhadores das temperaturas altas e do sol. “As ondas de calor e estresse de calor estão relacionados a uma perda econômica. Mudar turnos é uma boa medida de prevenção”, afirmou Floss.
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Por Isadora Rupp | Nexo Jornal
Data original de publicação: 17/03/2024