Cozinhas fantasmas: o delivery mais precarizado
Grandes redes de restaurantes investem pesado para converter galpões, estacionamentos e containers em linhas de produção de refeições. Só num bairro de SP, há 35. A tônica: lucro máximo e condições insalubres para os trabalhadores
Por Marco Antonio Gonsales de Oliveira | Outras Palavras
Como parte da pesquisa que desenvolvi com entregadores(as) em empresas-plataforma de trabalho, em 2021, minha inserção etnográfica no setor, além de confirmar as indignas condições de trabalho enfrentadas pela categoria, me revelou algo inusitado. Muitas vezes, quando era chamado para ir com a minha bicicleta retirar uma refeição, ao invés de um restaurante, uma padaria ou uma lanchonete, encontrava residências, garagens, galpões e locais improvisados e adaptados para servirem de cozinhas industriais, as famosas cozinhas escuras (dark, ghost, commissary, smart, digital ou cloud kitchens1)
As cozinhas escuras são unidades de produção de refeições que utilizam principalmente as empresas-plataforma de entregas para comercializar e distribuir suas mercadorias. Configuram-se como uma nova versão das pequenas (quase sem mesas) pizzarias de bairros de São Paulo e dos populares restaurantes takeway2 dos EUA repaginados com o advento e o crescimento do mercado de entregas por plataformas e potencializado com a pandemia da covid-19.
Há, principalmente, dois tipos de negócios que envolvem as dark kitchens. O primeiro se refere às cozinhas escuras que possuem marca(s) própria(s) direcionadas substancialmente ao mercado de entregas por aplicativos. São cozinhas que muitas vezes operam com mais de uma marca, produzindo, no mesmo espaço, diferentes estilos gastronômicos e tipos de refeições. Por exemplo, podem operar com três marcas produzindo comida mexicana, baiana e mineira, ou mesmo, oferecendo refeições similares em formatos diversos para grupos socioeconômicos distintos. Um nicho que conta com marcas de refeições conhecidas como o Sush1, o Savage, o Patties, Papila Deli, dentre outras. Entretanto, parte considerável desse mercado é formado por micros e pequenas empresas que enfrentam as dificuldades características das suas estruturas e suas condições limitadas, como a falta de experiência, de recursos, a dificuldade do acesso ao crédito, a carência de trabalhadores(as) capacitados(as) e a caixa preta das plataformas3.
A propaganda do universo do management promove o empreendedorismo no setor afirmando que abrir um “restaurante” nunca foi tão fácil, afinal, dizem os(as) “especialistas”, montar ou locar uma cozinha escura é menos custoso do que um restaurante ou uma padaria, por exemplo. O espaço é menor, a quantidade de trabalhadores também e as plataformas se responsabilizam pelas vendas.
No entanto, as cozinhas escuras dependem, assim como os(as) entregadores(as) plataformizados(as), da caixa preta dos algoritmos das empresas de entregas. Como sabemos, os algoritmos não são mediadores e tampouco são neutros. São construídos para beneficiar seus proprietários, as empresas-plataforma. No caso das cozinhas escuras, os algoritmos beneficiam os estabelecimentos que pagam para serem favorecidos, promovendo um ambiente ainda mais perverso para o pequeno capital. Ou seja, assim como motoristas e entregadores(as) das empresas-plataforma, os(as) pequenos(as) empresários(as) estão à mercê das caixas pretas (da lógica operacional dos algoritmos) das empresas de entregas.
O segundo formato de negócios baseado no conceito de cozinhas escuras é constituído por empresas especializadas em locar espaços para a produção de refeições destinadas ao mercado de delivery. Muitas empresas oferecem aos seus clientes cozinhas equipadas com fornos, coifas, refrigeradores, caldeirões, trabalhadores (as) capacitados (a), além de programas de gestão interconectados com as principais empresas-plataformas de delivery. O(a)s grandes capitalistas do setor não precisam se preocupar em comprar, locar ou construir as suas próprias cozinhas, tão pouco em contratar trabalhadores(as) ou mesmo fazer a gestão da força de trabalho, visto que já há um mercado que o auxilia nesse processo.
Uma das maiores empresas nesse nicho é a multinacional californiana CloudKitchens, de propriedade do cofundador da Uber, Travis Kalanick. A empresa foi fundada em 2017 e teve o seu primeiro grande aporte financeiro do próprio Travis em 2018, ano em que ele investiu 150 milhões de dólares na companhia, tornando-se sócio majoritário. Em 2019, a empresa, avaliada à época em 5 bilhões de dólares, recebeu um dos maiores investimentos da história para uma nova startup. No Brasil, a Kitchen Central é o braço brasileiro da CloudKitchens4. Outra gigante é a também californiana C3 (Creating Culinary Communities) que foi fundada em 2019 e conta com mais de 800 cozinhas apenas nos Estados Unidos e, durante o ano de 2021, produziu 2,3 milhões de refeições5.
Na Inglaterra, chamam a atenção as RooBoxes, da empresa de entrega de refeições Deliveroo, uma das maiores da Europa. A empresa loca para seus clientes (restaurantes e lanchonetes) cozinhas-containers expostas em estacionamentos, obras e outros espaços ociosos. O interessante é que restaurantes famosos no país, como o MEATLiquor ou o Patty & Bun6, similares ao Outback, estão produzindo parte de suas refeições nestes tipos de instalações.
No Brasil, uma das empresas mais fortes nesse seguimento é a SmartKitchens, fundada em 2018, que conta com 9 centros de cozinhas escuras em São Paulo, Belo Horizonte, Campinas e Fortaleza7. No entanto, há diversas pequenas empresas especializadas na locação de espaços para cozinhas em comércios adaptados, áreas ociosas em estacionamentos ou em galpões, muitas vezes improvisados com o uso de containers.
No que se refere ao trabalho, apesar de ainda não haver um estudo aprofundado com este foco, sabemos que nunca foi fácil trabalhar em cozinhas industriais. E, neste caso, não é diferente. O trabalho é executado em espaços muitas vezes inadequados, úmidos, com temperaturas elevadas, iluminação deficiente, pouca ventilação, excesso de ruídos e intenso fluxo de pessoas. São atividades cansativas, que exigem longos períodos em pé, com frequentes deslocamentos e carregamento de objetos pesados. Tais condições resultam invariavelmente em problemas de saúde e acidentes de trabalho.
Outra questão importante se refere aos problemas que as cozinhas escuras causam no entorno de onde se estabelecem. As reclamações dos(as) moradores(as) referem-se a barulhos ensurdecedores, odores, fumaça, gordura lançada dentro das residências e outros impactos gerados pela própria operação das cozinhas, como trânsito intenso de motociclistas e de caminhões. Para se ter uma ideia, a unidade da Kitchen Central, que fica no bairro da Lapa, em São Paulo, uma região predominantemente residencial e comercial, opera com 35 cozinhas escuras8, um verdadeiro conglomerado industrial que não cabe na região.
Em suma, independentemente do tipo de negócio, seja ele o de marcas próprias de refeições produzidas em cozinhas escuras ou o de locação de espaços, máquinas, ferramentas para este mercado, é evidente que o setor vive um processo de reestruturação produtiva aos moldes da gestão flexível do trabalho: grandes empresas, muitas multinacionais, produzindo grande parte de seus produtos através de empresas terceirizadas e conectadas através das novas tecnologias da informação e da comunicação.
Isto significa, ao final, uma precarização cada vez maior do trabalho, um aprofundamento da terceirização e um total descaso com as condições de vida e trabalho.
1 Existem também as lojas escuras ou mercados escuros (dark stores), que, assim como as cozinhas escuras, especializaram-se em vender mercadorias para o mercado de delivery por plataforma.
2 Estabelecimento que produz e vende refeições para serem apreciadas em outros locais.
3 Ver Phoebe V. Moore, Simon Joyce. Black box or hidden abode? The expansion and exposure of platform work managerialism (Review of International Political Economy, 2019).
4 Bárbara Muniz Vieira, Barulho de turbina de avião, gordura impregnada na casa e mau cheiro: vizinhos de ‘dark kitchens’ em SP relatam “pesadelo” (São Paulo, G1, 29 mar. 2022). Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2022/03/29/barulho-de-turbina-de-aviao-gordura-impregnada-na-casa-e-mal-cheiro-vizinhos-de-dark-kitchens-em-sp-relatam-o-pesadelo-de-viver-ao-lado.ghtml. Acesso em: 2 abr. 2022.
5 PR Newswire. Uber Eats’ Head of Dark Kitchens Joins C3–Fastest Growing Food Tech Platform–as Chief Strategy Officer (10 jan. 2022). Disponível em: https://www.prnewswire.com/news-releases/uber-eats-head-of-dark-kitchens-joins-c3fastest-growing-food-tech-platformas-chief-strategy-officer-301457576.html Acesso em: 22 abr. 2022.
6 Sarah Butler, How Deliveroo’s ‘dark kitchens’ are catering from car parks (Londres, The Guardian, News, 28 out. 2017). Disponível em: https://www.theguardian.com/business/2017/oct/28/deliveroo-dark-kitchens-pop-up-feeding-the-city-london. Acesso em: 2 abr. 2022.
7 Smart Kitchens Disponível em: https://www.smartkitchens.com.br/ Acesso em: 13 mar. 2022.
8 Bárbara Muniz Vieira, Barulho de turbina de avião, gordura impregnada na casa e mau cheiro: vizinhos de ‘dark kitchens’ em SP relatam “pesadelo” (São Paulo, G1, 29 mar. 2022). Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2022/03/29/barulho-de-turbina-de-aviao-gordura-impregnada-na-casa-e-mal-cheiro-vizinhos-de-dark-kitchens-em-sp-relatam-o-pesadelo-de-viver-ao-lado.ghtml. Acesso em: 2 abr. 2022.
Clique aqui e acesse o artigo na íntegra
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação 13/10/2022