Críticas ao PL do governo, fake news e greves: entenda disputas em torno do trabalho em apps
Por Gabriela Moncau | Brasil de Fato
Nos grupos de WhatsApp, nas ruas, em shoppings brecados, no Supremo Tribunal Federal (STF), no Planalto e no Congresso: com visões distintas, os debates sobre o trabalho em apps no Brasil estão quentes. Em São Paulo, na próxima quarta (20), entregadores organizam uma motociata até a porta do iFood. No próximo 31 de março a paralisação pretende ser nacional e está sendo convocada em estados como Paraíba, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Mato Grosso e Santa Catarina.
As mobilizações começaram com reivindicações voltadas ao iFood, tais como taxa mínima de R$10 por corrida e promoções distribuídas igualmente pelos bairros da cidade. No entanto, desde que o governo Lula apresentou, no último 4 de março, o Projeto de Lei Complementar (PLP) 12/2024, que propõe a regulamentação do trabalho de motorista de carros por aplicativo, as greves incorporaram outro foco.
Agora, também contestam a regulamentação proposta pelo governo federal — seja a do trabalho dos entregadores, que ainda está em elaboração e não tem data para ser apresentada, seja a dos motoristas, lançada em evento com o presidente Lula e o ministro do Trabalho e Emprego (MTE), Luiz Marinho.
O projeto cria a categoria “trabalhador autônomo por plataforma” e nomeia esta relação de trabalho como “intermediada” pelas empresas de aplicativo. Prevê uma carga máxima de 12h diárias em cada app, a contribuição para a previdência (por parte dos trabalhadores e das empresas) e uma remuneração mínima de R$32,10 por hora trabalhada. Só é contado como tempo de trabalho, no entanto, o momento em que o motorista aceita uma viagem até aquele em que o passageiro chega ao destino. O tempo em que o trabalhador está logado à disposição da plataforma não é contabilizado.
No mesmo dia em que o PLP foi lançado, a Uber encaminhou ao STF uma petição pedindo a suspensão de todos os processos contra a empresa que demandam o reconhecimento do vínculo empregatício.
As críticas ao projeto do governo Lula vêm de diversos espectros políticos. Por um lado, pesquisadores, juristas e ativistas o consideram o desmantelamento dos direitos trabalhistas e afirmam que as principais propostas das empresas é que foram acatadas.
Por outro, políticos de direita estão tomando as redes sociais com rechaços à proposta e, muitas vezes, com informações mentirosas. O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) postou, em um story, uma matéria com o falso título de que aplicativos de delivery sairiam do país caso haja uma regulamentação.
Ao Brasil de Fato, o iFood disse que defende publicamente a regulamentação desde 2021, pois ela poderá proporcionar “autonomia” aos trabalhadores e “segurança jurídica” para as empresas.
O deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) postou que o projeto assinado por Lula “quer destruir o ganha pão de milhares de trabalhadores” e sufocar a “liberdade do mercado”. Já o parlamentar Kim Kataguiri (União-SP) fez um vídeo dizendo que, com o projeto, quem trabalhar menos vai ganhar o mesmo valor que quem trabalhar mais.
O empresário e deputado federal Gustavo Gayer (PL-GO) publicou um vídeo rodeado de motoristas em Goiânia, com gritos de ordem contra o projeto de lei e chamando Lula de “ladrão”. Gayer foi condenado a pagar R$80 mil por coagir funcionários de sua empresa a votar em Bolsonaro na última eleição presidencial.
No último 11 de março, um protesto com centenas de entregadores e motoristas percorreu ruas de Belo Horizonte (MG) com escritos como “sem sindicato”, “não ao PLP 12/2024” e “governo está atrás de tributos”.
“Na minha visão, o governo quis agradar os dois lados”, afirma o entregador de São Paulo JR Freitas, membro da Aliança Nacional dos Entregadores (ANEA). “E acabou não agradando nenhum”, completa.
Procurado, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) informou que “muitas das críticas estão vindo de fake news, desinformações ou informações pela metade”. Segundo a pasta, “o texto garante direitos que hoje os motoristas não têm, como remuneração mínima, cobertura de custos, transparência por parte das empresas, segurança financeira com a previdência garantindo direito a benefícios como aposentadoria, auxílio-doença, pensão por morte, auxílio durante licença maternidade, entre outros. Tudo isso sem deixar o motorista perder sua autonomia”.
Atos contra a regulamentação
Ulisses Castro é um dos entregadores envolvidos na organização da mobilização do dia 31 no Rio de Janeiro (RJ). “Primeiramente iríamos manifestar pela melhoria da classe”, conta, citando a demanda por um espaço físico de suporte e o aumento da taxa paga por entrega. “Mas a nossa principal reivindicação é contra a regulamentação do governo que está por vir”, diz.
“A regulamentação traz benefícios para sindicatos, que não fazem nada pela gente, e para o governo, que se quisesse fazer alguma coisa, daria desconto no combustível, benefícios. Mas só quer arrecadar”, opina Castro. “O que vem é multa em cima de multa, é toda hora blitz para prejudicar um pai de família que está levando o pão para casa e a gente está de saco cheio dessa opressão do governo em cima da gente”, afirma. “Lembrando que não temos cunho político com nenhum partido”, acrescenta.
Alex Melo, entregador em Campina Grande (PB) há oito anos, conversou com o Brasil de Fato apesar de estar machucado. Sofreu um acidente de moto enquanto trabalhava mas, por não estar com a mercadoria dentro da bag no momento, disse não ter conseguido acessar auxílio do iFood. Na sua cidade, assim como na capital João Pessoa, entregadores também preparam breques e atos para o 31 de março.
“A gente tem tomado conhecimento do que vem sendo preparado aí pelo governo. E não enxerga com bons olhos. Porque somos autônomos”, diz Melo. Na sua interpretação, a regulação vai fazer com que a remuneração diminua. “Se o salário ficar menor, a gente não vai conseguir manter o veículo e, infelizmente, vai ter que se afastar dos apps”, opina.
Samara Queiroz trabalhava como auxiliar administrativa em São Paulo em regime CLT, mas preferiu mudar para as entregas de moto. Atualmente sua única fonte de renda é o trabalho para o iFood, 12h por dia, seis dias por semana.
A entregadora participa da organização do ato da próxima quarta (20) na capital paulista por ser contra a forma como o iFood distribui as promoções, que é como são chamadas bonificações esporádicas. “Eles mandam promoções somente para as áreas nobres. Mas quem trabalha em comunidade não recebe. A gente começou a achar isso muito injusto”, relata.
Jorge Vidal, também organizador da motociata cuja concentração está marcada na frente do estádio Pacaembu, ressalta que “não irão aceitar um governo ladrão” e que “o iFood e o governo terão que entender que hoje não somos só motoboy, mas uma classe muito bem instituída”.
Sob pressão, governo prepara o PL dos entregadores
O Brasil de Fato questionou o governo federal sobre o projeto de regulamentação do trabalho de entregadores e qual a previsão para que ele seja apresentado. Em nota, o MTE declarou que “está disposto a conversar e avançar” no tema.
JR Freitas participou, como integrante da ANEA, do Grupo de Trabalho criado pelo Ministério do Trabalho que, ao longo do segundo semestre de 2023, reuniu representantes do governo, dos trabalhadores e das empresas para debater a regulamentação. No caso dos entregadores, as reuniões terminaram sem acordo. Segundo Freitas, o diálogo entre a ANEA e governo foi retomado neste momento.
“No final quem vai decidir como vai ser o projeto é o governo. Mas a ANEA não pode ser omissa nessa hora, vamos apresentar o que achamos que tem que ter”, conta Freitas. “Vamos trabalhar para conseguir a melhor remuneração possível”, diz.
JR participou do chamado das greves quando tinham a melhoria nas condições de trabalho como foco e o iFood como alvo principal. Depois, decidiu se afastar.
“Quando surgiu o PL dos motoristas tudo mudou, porque rapidamente a extrema direita usou desse artifício mobilizando a sua base bolsonarista, e conseguiram acender uma chama no coração dos entregadores de que o Lula quer tirar todos os direitos, quer tirar os empregos”, critica. “É muita desinformação. E para a gente fica difícil de combater essa fake news”, avalia.
Engrossando ainda mais o caldo, o STF definiu, no fim de fevereiro, que o julgamento de uma ação entre uma motorista e a Uber (RE 1.446.336) terá repercussão geral. Assim, a decisão sobre a existência ou não de vínculo empregatício neste caso vai padronizar como todas as disputas judiciais entre plataformas e trabalhadores de aplicativos serão tratadas no país.
A expectativa é que o plenário repita decisões recentes tomadas de forma monocrática ou por turma, em que a Justiça do Trabalho foi contrariada e o vínculo de emprego entre trabalhadores e empresas como Uber, iFood e 99 não foi reconhecido. Este julgamento, ainda sem data marcada, vai ser o primeiro em que toda a Corte vai se debruçar sobre o tema.
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Por Gabriela Moncau | Brasil de Fato
Data original de publicação: 18/03/2024