Da tecnoutopia ao tecnoniilismo

Foto: Pexels

Por Cesar Gagligoni | Nexo

Sonho de criar uma ‘aldeia global’ por meio da tecnologia foi substituído por um clima de ceticismo. O ‘ Nexo’ mostra como a teoria foi solapada pela realidade e o que pode ser feito para mudar o cenário

Se nos anos 2000 e 2010 a internet parecia ser a ferramenta que concretizaria os sonhos do filósofo canadense Marshall McLuhan em ver uma “aldeia global” com poucas fronteiras, comunicação rápida e incessante e a diminuição de conflitos, em 2022 o cenário é outro.

A confiança pública em empresas do setor está em queda – cerca de 32% da população global não confia nos principais representantes da indústria e em suas organizações, segundo a pesquisa Edelman Trust Barometer realizada em 2021 com respondentes em 28 países, incluindo o Brasil.

Em 2020, os desconfiados eram 24%. Os achados da Edelman reiteram o que a FGV (Fundação Getulio Vargas) tinha notado em 2019 na pesquisa do ICD (Indicador de Confiança Digital), que mede quanto os brasileiros confiam na tecnologia e nas empresas de tecnologia com base em questionários.

Naquele ano, a pesquisa registrou uma pontuação geral de 3,22 (de 5 pontos possíveis), uma queda de 0,15 ponto em relação à medição feita em 2018, quando houve pontuação de 3,37; e de 0,68 ponto em relação à medição de 2017, quando houve pontuação de 3,9.

A disseminação de desinformação e de discursos de ódio, a captação de dados pessoais e os comportamentos e posicionamentos de executivos de empresas de tecnologia são as principais razões para a mudança de perspectiva.

Neste texto, o Nexo explica como o mundo foi de um estado de tecnoutopia para um cenário de tecnoniilismo.

‘Isto é para os loucos…’


“Isto é para os loucos. Os desajustados. Os rebeldes. Os criadores de caso. Os que são peças redondas nos buracos quadrados. Os que veem as coisas de forma diferente. Eles não gostam de regras. E eles não têm nenhum respeito pelo status quo. Você pode citá-los, discordar deles, glorificá-los ou difamá-los. Mas a única coisa que você não pode fazer é ignorá-los. Porque eles mudam as coisas. Eles empurram a raça humana para frente. Enquanto alguns os veem como loucos, nós vemos gênios. Porque as pessoas que são loucas o suficiente para achar que podem mudar o mundo são as que de fato mudam”

Steve Jobs, no comercial ‘Think different’, da Apple, em 1997

Tim Berners-Lee sempre teve uma memória péssima, especialmente para rostos e nomes. Em 1980, quando trabalhava como engenheiro da computação no Cern, o Centro Europeu de Pesquisas Nucleares, Berners-Lee teve uma ideia que mudaria a sua vida – e o mundo – para sempre.

“Eu precisava de um substituto para a memória”, disse à revista The Atlantic em 2012. Ele então criou arquivos de textos no computador e desenvolveu o hipertexto, uma forma de conectá-los. Dez anos depois da invenção, a princípio limitada para uso dos pesquisadores, o sistema de conexão de ideias de Berners-Lee foi integrado com tecnologia de comunicação de computadores desenvolvida pelo Exército dos EUA nos anos 1960 e ganhou o mundo. Em 1990, começava a internet.

Em última instância, se limitada apenas a seus componentes essenciais, a internet nada mais é do que o diálogo entre informações distintas, armazenadas em locais distintos, formando um todo coeso. Houve mudanças visuais, técnicas e de comportamento, mas, em suma, a internet ainda é a mesma.

Tim Berners-Lee poderia ter transformado seu projeto em um negócio bilionário, ou até mesmo trilionário. Mas, por princípios, decidiu que o melhor caminho seria compartilhar livremente os códigos base que formam a internet.

Berners-Lee acredita que, se tivesse monetizado sua invenção, concorrentes iriam surgir e inevitavelmente chegaria um momento em que as informações armazenadas na rede de uma empresa não conseguiriam se comunicar com aquelas guardadas na rede de outra, frustrando, assim, o próprio propósito da internet. “Isso deve estar disponível para todos, mundialmente”, afirmou o programador no documento da Política de Patente da internet, publicado por ele ainda na década de 1990.

O espírito inventivo de Tim Berners-Lee nas décadas de 1980 e 1990 era o mesmo de toda a indústria tecnológica, fundada na esteira da contracultura da década de 1960, dos hippies que lutavam por “paz e amor”, das viagens de LSD, do festival de Woodstock e da chegada do ser humano à Lua.

Os pioneiros da tecnologia eram nerds entusiastas, que queriam encontrar formas de facilitar e melhorar a vida das pessoas. Se isso gerasse algum dinheiro, ele seria consequência, e não a causa motivadora inicial. “A cibercultura é indissociável da contracultura”, escreveu o pesquisador de mídia Fred Turner em 2008 no livro “From Counterculture to Cyberculture”, publicado pela Universidade de Chicago.

Havia uma certa rebeldia autoevidente no mundo da tecnologia. Os dois Steves de San Francisco – Jobs e Wozniak – , antes de fundarem a Apple, desenvolveram uma pequena geringonça, a Blue Box, que gerava sons nas frequências necessárias para que telefones públicos fizessem ligações sem a necessidade da inserção de fichas ou moedas.

Bill Gates, que viria a fundar a Microsoft, aprendeu a mexer com computadores entrando de forma quase clandestina nos prédios da Universidade de Washington.

Do lado dos usuários, o espírito era o mesmo. A internet e a tecnologia no geral eram um tópico destinado a nichos. Em fóruns, sites obscuros e sistemas de BBS (um proto-WhatsApp), esses entusiastas compartilhavam links, tiravam dúvidas e discutiam entre si. A internet ainda era underground, rock’n roll e punk – no melhor estilo “Faça você mesmo”. Isso, no entanto, logo mudaria.

A ‘ideologia californiana’

Quando se tornou uma celebridade global que estampava capas de revistas, Steve Jobs percebeu que a tecnologia poderia ser uma farta fonte de renda, dinheiro esse que era mais importante do que os sonhos de mudar o mundo. O “vil metal”, inclusive, foi um dos motivos da rusga entre os dois Steves: Wozniak mantinha dentro de si parte do espírito inventivo e rebelde dos primórdios, enquanto Jobs já vislumbrava sua própria estrada de tijolos dourados para percorrer.

“De uma hora para outra, ele mudou”, disse Wozniak ao podcast Remarkable People em 2020. “Ele não fazia mais piadas, não queria mais se divertir. Ele só usava ternos sérios e posava para revistas, falando de negócios e aprendendo a falar sobre eles. Ele virou uma espécie de presença diferente do que era. A personalidade dele mudou, ele ficou muito sisudo. Ele queria ser importante, acima de tudo”.

A mentalidade de Jobs viria a ditar as grandes empresas do Vale do Silício, região da Califórnia em que se concentra as grandes empresas de tecnologia, que logo começaram a seguir a chamada “ideologia californiana”.

O termo foi criado em um ensaio de 1995 pelos pesquisadores de mídia Richard Barbrook e Andy Cameron, da Universidade de Westminster, no Reino Unido. Eles acreditavam que a expressão conseguia definir bem a absorção dos rebeldes e hippies dos primórdios da indústria tecnológica pelos lemas do capitalismo tradicional. O texto completo pode ser lido em português gratuitamente.

“Apesar de sua retórica radical, a ideologia californiana é totalmente pessimista a respeito de mudanças sociais estruturais”

“A ‘ideologia californiana’, simultaneamente, reflete as disciplinas da economia de mercado e as liberdades do artesanato hippie”, definiram os autores.

O mundo pensado pela “ideologia californiana”, de acordo com os pesquisadores, é um mundo de “surfe, comida saudável, espiritualidade ‘nova era’, música pop, drogas recreativas, mídia comunitária e a tradição da boemia cultural”, tudo catapultado por empresas privadas que, dentro de um livre mercado liberal, podem operar sem restrições e burocracias dos “antiquados” sistemas de controle estatal.

Duas figuras são centrais para o pensamento da “ideologia californiana”: Thomas Jefferson, um dos “pais fundadores dos EUA”, e a escritora russo-americana Ayn Rand.

Jefferson, na Declaração de Independência, chamou os cidadãos americanos à liberdade e à democracia, afirmando que esses dois fenômenos dependiam de uma liberdade de expressão irrestrita.

Rand, na ficção científica “A revolta de Atlas” (1957), afirma que o único sistema econômico que está alinhado com o objetivo moral dos seres humanos – a busca incessante pela felicidade, apresentada por ela como “egoísmo racional” – é o capitalismo liberal, com pouca participação pública, capitaneado pela iniciativa privada.

Em essência, a “ideologia californiana” é a ideia de que o progresso tecnológico é inevitável, mesmo quando há consequências negativas, e que o mercado capitalista sempre vai conseguir administrar a vida cotidiana melhor do que qualquer Estado, mesmo que isso signifique condições precárias de trabalho, perda de direitos e acentuamento de desigualdades.

“Em vez de compartilharem com seus vizinhos pobres, negros ou hispânicos, os yuppies [gíria para jovens profissionais] se retiram para seus afluentes subúrbios, protegidos por guardas armados e seguros com seus serviços privados de previdência social”, diz o ensaio.

“Por todo o mundo, a ideologia californiana foi aceita como uma forma otimista e emancipadora de determinismo tecnológico”, afirma. “Porém, esta fantasia utópica da costa oeste depende de sua cegueira frente à – e dependência de – polarização social e racial da sociedade em que nasceu. Apesar de sua retórica radical, a ideologia californiana é totalmente pessimista a respeito de mudanças sociais estruturais.”

Se a “ideologia californiana” fosse uma religião, naquele momento do início dos anos 2000, Steve Jobs era seu messias, a ideia personificada. Mas logo surgiram outras figuras

“Se apenas algumas pessoas podem ter acesso às novas tecnologias da informação, a democracia jeffersoniana pode se tornar uma versão de alta tecnologia da economia de latifúndios do Velho Sul. Refletindo esta profunda ambiguidade, o determinismo tecnológico da ideologia californiana não é simplesmente otimista e emancipador. É simultaneamente, também, uma visão profundamente pessimista e repressiva do futuro”, diz o texto.

Para Jason Rhode, colunista de tecnologia da revista Salon, a “ideologia californiana” é quase uma religião. “É a ideia de que as máquinas vão consertar tudo”, afirmou em texto de 2018. “O termo ‘neoliberalismo’ não era popular na época, mas reflete bem a essência da ‘ideologia californiana’: progressismo social com conservadorismo econômico.”

A “ideologia californiana” contribuiu para a formação de um estado de tecnoutopia. Na virada do milênio, a imprensa e a sociedade viam a tecnologia e a internet como intrinsecamente boas, as ferramentas que trariam “os ventos da mudança” profetizado pela banda Scorpions e o “fim da história” do cientista político Francis Fukuyama na década de 1990.

Se a “ideologia californiana” fosse uma religião, naquele momento do início dos anos 2000, Steve Jobs era seu messias, a ideia personificada. Mas logo surgiram outras figuras no debate público que ocuparam o posto de Jobs após sua morte em 2011, catapultando as mudanças que levaram ao tecnoniilismo.

Um conto de dois garotos

Aaron Swartz aprendeu a ler cedo. Com 3 anos, já conseguia compreender e recitar as histórias do ursinho Paddington, escritas pelo britânico Michael Bond. Filho de um programador, ele logo se familiarizou – e se entusiasmou – com computadores.

Eles seriam a ferramenta que Aaron teria para acessar – e, por que não?, transformar – o mundo. Para ele, a rede seria a melhor forma de compartilhar conhecimento entre as pessoas. Quando tinha 12 anos, em 1999, criou o site The Info Network, uma enciclopédia colaborativa aos moldes do que viria a ser a Wikipédia.

O PROGRAMADOR AARON SWARTZ QUANDO CRIANÇA

Dois anos antes e a duas horas de distância da casa dos Swartz, um dentista e uma psiquiatra tiveram um filho. O garoto cresceu jogando “Civilization”, um jogo de computador no qual você deve construir sociedades, enriquecê-las e transformá-las em grandes impérios. Já adulto, décadas depois, ele traria para si e para a empresa que fundou a ideia de um crescimento ininterrupto: Mark Zuckerberg queria conectar o mundo.

MARK ZUCKERBERG (ESQ.) QUANDO CRIANÇA

Apesar de anedóticas, as histórias dos dois garotos são ilustrativas de duas formas distintas de se ver a tecnologia: Zuckerberg virou dono de um império global, aos moldes daqueles que criava em “Civilization”, mas tornou-se cada vez menos popular.

Para 56% dos americanos, o fundador do Facebook não é confiável; e 57% acreditam que a rede social criada por ele primariamente é uma ferramenta maléfica para a humanidade. A pesquisa foi feita pela revista Forbes em 2020. Os escândalos envolvendo as práticas da empresa no processamento de dados pessoais dos usuários e na inação para impedir a disseminação de discursos de ódio contribuíram para um quadro em que o Facebook está longe de cumprir a ideia original de “conectar o mundo”.

Do outro lado dos Estados Unidos, na costa leste, Swartz viveu – e morreu, – lutando pelo livre compartilhamento do conhecimento, uma ideia que remonta à “aldeia global” de McLuhan, tornando-se um símbolo, “o menino da internet”, como diz o título de um documentário sobre ele lançado em 2014.

Na segunda metade dos anos 2000, Swartz virou ativista pela cultura livre. Ele acreditava que a internet tinha o poder de distribuir conhecimento em larga escala e que ninguém deveria ser impedido de acessar informação de qualidade.

Em 2010, quando trabalhava como pesquisador de ciência da computação na Universidade de Harvard, Swartz visitou o Instituto de Tecnologia de Massachusetts e programou um computador para baixar milhares de artigos científicos do repositório JSTOR – acessível mediante pagamento ou filiação com universidades. Sua ideia, pelo pouco que se sabe dada sua introversão, era criar uma biblioteca virtual de acesso livre para todos aqueles que se interessassem pela produção acadêmica.

O sistema de segurança do Instituto filmou Swartz agindo e uma denúncia às autoridades foi feita. Aaron Swartz foi investigado pelo FBI e acusado de invasão de domicílio, fraude, apropriação indébita de bens e acesso não autorizado a uma rede de computadores.

O apocalipse de 2012 da profecia maia não aconteceu, mas, para a jornalista de tecnologia Quinn Norton, a tecnoutopia morreu com aquele ano

Durante o processo, Swartz negou, repetidas vezes, acordos propostos pelo procurador federal Stephen Heyman. Ele queria ir a julgamento público. O caso já se estendia por três anos quando Aaron Swartz cometeu suicídio, aos 26 anos. Ele não deixou nenhuma nota ou mensagem sobre a decisão, mas amigos e familiares sabiam que a pressão do caso estava deteriorando a saúde mental do programador.

Dentro dos círculos que acompanham a tecnologia, Swartz é majoritariamente visto como um herói. “Ele era um guerreiro”, escreveu Tim Berners-Lee em seu blog logo após o suicídio do programador. “Ele brilhava no céu de pessoas normais, sistemas quebrados. Foi uma força para o bem, um criador.”

“Ele queria libertar o conhecimento”, disse ao Nexo Leonardo Foletto, líder do braço brasileiro do Creative Commons, organização de compartilhamento de informação cofundada por Swartz em 2001. “Ele é um símbolo dessa discussão e dessa pauta, foi alguém que muito jovem desenvolveu as ferramentas para tornar a internet mais livre.”

Já nos círculos que se preocupam com direitos autorais, a figura de Swartz não levanta tanta simpatia. “Não existe almoço grátis”, escreveu em 2013 Rob Weir, advogado e professor da Universidade Smith, nos EUA. “Se você não pode arranjar tempo [para conseguir o acesso legalmente], não cometa o crime.”

Do outro lado dos Estados Unidos, na baía de San Francisco, a lenda urbana dizia que o mundo acabaria em 2012, segundo uma antiga profecia maia. O apocalipse não aconteceu, mas, para a jornalista de tecnologia Quinn Norton, a tecnoutopia morreu com aquele ano. “Em 2011, dizíamos que a internet ia mudar tudo. Nós tivemos o Occupy [movimento popular liderado pelo grupo hacker Anonymous como crítica ao sistema financeiro de Wall Street], a Primavera Árabe”, disse Norton à revista New Yorker em 2013.

“E em 2012 tudo foi destruído. Tivemos uma escalada da vigilância e logo na sequência Aaron se matou. Aaron era o menino da internet, e a morte dele mostra muito bem como a indústria matou nossos sonhos”, afirmou.

O capitalismo de vigilância

Entre os pesquisadores da área, é consenso que a chamada “era do capitalismo de vigilância” – o momento em que a tecnologia passa a monitorar e rastrear todos os aspectos da vida cotidiana, também lucrando com eles – veio na esteira dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, quando membros da Al Qaeda, liderados por Osama Bin Laden, jogaram aviões contra o World Trade Center, em Nova York; e contra o prédio do Pentágono, o Departamento de Defesa dos EUA, em Washington.

Os temores de novos ataques e a instauração dos sistemas de monitoramento de cidadãos, denunciado em 2013 pelo ex-agente da NSA (Agência Nacional de Segurança dos EUA) Edward Snowden, fez com que dados fossem encarados como “o novo petróleo”.

“O capitalismo de vigilância reivindica de maneira unilateral a experiência humana como matéria-prima gratuita para a tradução em dados comportamentais”, afirma a pesquisadora Shoshana Zuboff, professora da Universidade de Harvard, no livro “A era do capitalismo de vigilância” (Intrínseca).

A ESCRITORA SHOSHANA ZUBOFF DURANTE EVENTO

“Embora alguns desses dados sejam aplicados para o aprimoramento de produtos e serviços, o restante é declarado como superávit comportamental do proprietário, alimentando avançados processos de fabricação conhecidos como ‘inteligência de máquina’ e manufaturado em produtos de predição que antecipam o que um determinado indivíduo faria agora, daqui a pouco e mais tarde”, diz.

Empresas como Google, Facebook, Twitter e Amazon operam dentro do capitalismo de vigilância. Essas organizações sabem do que os usuários gostam, desgostam, como se comportam e, a partir disso, conseguem estabelecer um raio-x detalhado da personalidade daquele indivíduo.

Esses dados, então, são repassados a anunciantes, que agora são capazes de direcionar suas propagandas a grupos muito específicos, potencializando o poder das mensagens que querem transmitir. Em contrapartida, os usuários recebem uma série de facilidades e conveniências, como entregas rápidas, conteúdo de seu interesse e dispositivos acionados por comandos de voz.

ILUSTRAÇÃO DO “GRANDE IRMÃO” EM CENA DO FILME “1984”, ADAPTADO DA OBRA DE GEORGE ORWELL

Paralelamente ao lucro da iniciativa privada, governos podem monitorar pessoas e grupos de pessoas e agir caso haja suspeita do possível cometimento de um crime.

Zuboff é categórica: a era do capitalismo de vigilância matou a tecnoutopia. “O capitalismo de vigilância vai na direção oposta à do sonho digital dos primeiros tempos”, diz em seu livro. “A conexão digital é agora um meio para fins comerciais de terceiros. Em sua essência, o capitalismo de vigilância é parasítico e autorreferente.”

“Ele revive a velha imagem que Karl Marx desenhou do capitalismo como um vampiro que se alimenta do trabalho, mas agora com uma reviravolta. Em vez do trabalho, o capitalismo de vigilância se alimenta de todo aspecto de toda a experiência humana.”

O tecnoniilismo

Com a “ideologia californiana”, a era da vigilância e a plataformização, a sensação de deslumbramento com a tecnologia se perdeu. Paris Marx, colunista de tecnologia da revista americana Jacobin e comentarista do canal de TV americano NBC, vê o tecnoniilismo – um grande ceticismo com a tecnologia – como um caminho sem volta, e que é preciso entender que nem todos os problemas podem ser resolvidos com novas tecnologias.

“O Vale do Silício não vai nos salvar”, disse ao Nexo. “Acreditar que a tecnologia é a única forma de solucionar problemas é algo que não funciona, já que isso ignora várias soluções políticas. Jogar tecnologia em cima dos problemas que temos não é algo que vai solucioná-los.”

“Por exemplo, a mobilidade urbana. Temos os problemas de congestionamento, de acidentes, coisas assim. Você pode dizer que para solucioná-los basta um aplicativo como o Uber ou a criação de carros autônomos. Mas não é o suficiente, porque não estamos lidando com as questões estruturais que criaram esses problemas.”

Marx vê algumas figuras como a personificação do espírito tecnoniilista: nomes como Jeff Bezos – dono da Amazon – ; Zuckerberg, com o Facebook, Instagram e WhatsApp; e Elon Musk, da montadora de carros Tesla, da montadora de foguetes SpaceX e, mais recentemente, do Twitter.

Na visão de Carissa Véliz, professora de ética digital na Universidade de Oxford, autora do livro “Privacidade é poder” (Contracorrente), a população global foi traída múltiplas vezes pelas empresas de tecnologia.

“Eles prometeram que iam cuidar de nossos dados, mas não fizeram isso. Eles disseram que nossos dados eram necessários para fornecer serviços que gostamos, mas não são”, disse ao Nexo.

“Nós pensávamos que essas pessoas jovens com blusas de moletom eram idealistas que queriam fazer do mundo um lugar melhor, mas, na verdade, eles só queriam ganhar dinheiro a qualquer custo, mesmo que esse custo fosse a erosão da democracia”

O jornalismo percebeu as mudanças e adotou uma postura mais crítica à indústria durante a década de 2010. Até então, a imprensa especializada era majoritariamente empolgada com o mercado tecnológico, noticiando o setor com um ar entusiasmado de novidade.

Alguns casos sinalizaram a mudança de postura na imprensa. Em 2015, o jornalista John Carreyrou, à época repórter do Wall Street Journal, denunciou a empresária Elizabeth Holmes – que era considerada a “sucessora de Steve Jobs” – de enganar os investidores de sua empresa de exames de sangue rápido, a Theranos. Em janeiro de 2022, Holmes foi condenada em três acusações de fraude e pode pegar até 20 anos de prisão, em uma sentença que será proferida em setembro.

Em 2016, quando Donald Trump foi eleito presidente dos EUA, o Facebook foi colocado no noticiário após um escândalo envolvendo a empresa de consultoria Cambridge Analytica. No centro da polêmica estava o uso de dados pessoais dos usuários para o direcionamento de propaganda política.

Além da Theranos e do Facebook, outras empresas de destaque foram colocadas sob escrutínio público: Uber, Airbnb, WeWork, Google e Amazon passaram a ser vistas pela imprensa e pela sociedade com grande ceticismo e desconfiança.

“A gente saiu de um momento em que havia grande confiança nas empresas de tecnologia por parte da imprensa para um momento em que elas são acompanhadas com um olhar mais crítico. Tem que ser assim”, disse ao Nexo Rodrigo Ghedin, jornalista especializado em tecnologia e criador do site Manual do Usuário, que tem como missão oferecer um jornalismo de tecnologia analítico e mais crítico. “O escrutínio que essas plataformas estão passando é comparável ao tamanho e à influência que elas têm.”

Ele vê o escândalo da Cambridge Analytica como um ponto de virada para o jornalismo especializado no setor que, segundo ele, passou anos em uma relação “promíscua” com as empresas da indústria. “Um texto que marcou minha trajetória saiu em 2017, quando eu fui convidado pela [fabricante de celulares] Asus para ir em um cruzeiro organizado por eles para jornalistas.”

“Fui no cruzeiro e fiquei chocado com tudo aquilo [gincanas para distribuir celulares para jornalistas e outras brincadeiras do tipo]. Quando voltei, publiquei o texto e mostrei como era essa promiscuidade toda. Aquilo repercutiu muito no jornalismo especializado e nas próprias empresas. A Asus inclusive nunca mais fez o cruzeiro depois disso”, afirmou.

Anthony Nadler, professor de jornalismo da Faculdade Ursinus, nos EUA, compartilha da visão de Ghedin. “O jornalismo que cobre o Vale do Silício passou a ser um vigia da indústria, e não mais um mascote”, afirmou em texto publicado pela revista Columbia Journalism Review em 2019.

Nadler, no entanto, acredita que desconfiança, olhar crítico e ceticismo não são suficientes para despertar a atenção da sociedade e qualificar o debate público. “É necessário também apresentar soluções para os problemas”, disse.

O que pode ser feito

A escritora Carissa Véliz acredita que a mudança no cenário tecnoniilista deve começar a partir dos próprios usuários, paralelamente a uma intervenção estatal regulamentando o setor.

“Precisamos espalhar a palavra de que existem alternativas que protegem a privacidade das pessoas e que são boas”, disse ao Nexo. “Em vez de usar o WhatsApp, use o Signal; em vez de usar a pesquisa do Google, use o DuckDuckGo; em vez de usar o Gmail, use o ProtonMail. O site Privacy Tools é um lugar para encontrar outras alternativas.”

Para ela, é possível que empresas grandes como o Google e o Facebook se mantenham funcionando de forma economicamente saudável e sem comprometer os dados dos usuários.

“Em 2013, o Google já era uma empresa muito lucrativa. Eles arrecadavam US$ 10 por usuário anualmente. Você pagaria US$ 10 por todos os serviços do Google por ano para a empresa não precisar mostrar anúncios? Essas empresas poderiam encontrar outras formas de se manterem lucrativas”, afirmou.

Mariana Valente, diretora associada do InternetLab, acredita que a ação coletiva dos usuários e do Estado são essenciais para melhorar o cenário do tecnoniilismo. “As ações individuais são importantes, inclusive para chamar a atenção de legisladores que formulam políticas públicas”, disse ao Nexo.

“Mas não temos saída se não pensar isso de uma perspectiva coletiva. Precisamos sim de uma legislação protetiva, de autoridades que apliquem essa legislação e fiscalizem.”

“A gente parou de falar do que a gente queria para a internet. Tem um motivo para isso: estamos apagando incêndios. Estamos sempre pensando numa lógica de conter danos”

Há uma movimentação em boa parte do mundo para regular o funcionamento das empresas de tecnologia de forma mais incisiva.

A União Europeia e o Brasil já contam com leis de proteção de dados que definem as diretrizes para que as empresas informem quais informações de usuários estão sendo coletadas e para qual finalidade, dando também a possibilidade de pedidos de exclusão caso o usuário deseje.

O Brasil também conta com o Marco Civil da Internet, uma espécie de “Constituição Federal” que guia os direitos e os deveres nas redes. No Congresso, a Comissão de Ciência, Tecnologia e Comissões conta com 243 projetos legislativos sobre o tema em tramitação.

Mariana Valente acredita que uma mudança de perspectiva e de ação coletiva é essencial para resolver um de seus grandes incômodos atuais com a tecnologia. “A gente parou de sonhar, sabe?”, afirmou ao Nexo. “A gente parou de falar do que a gente queria para a internet. Tem um motivo para isso: estamos apagando incêndios. Estamos sempre pensando numa lógica de conter danos. A gente precisa voltar a ter a capacidade de sonhar com uma outra relação com a tecnologia.”

Shoshana Zuboff mantém certo otimismo. Ela acredita que os usuários e os Estados conseguirão mitigar os efeitos danosos do capitalismo de vigilância e do cenário tecnoniilista. “O que está em jogo aqui é a expectativa humana de soberania sobre a própria vida e a autoria da própria existência de cada um”, diz no livro. “Estamos no começo dessa história, não no fim.”

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Fonte: Nexo

Data original de publicação: 01/05/2022

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