Denúncias de escravidão revelam lado obscuro da gastronomia
Enquanto restaurantes ganham reconhecimento mundo afora, o sabor não conta a história dos trabalhadores na cozinha ou nas plantações
Por Gabriela Francisco | Metrópoles
Em 13 de maio de 1888, há 135 anos, o Brasil pôs fim à escravidão no país. Na prática, a teoria é outra. Apenas em 2023, mais de 900 trabalhadores foram resgatados de situação análoga à escravidão no Brasil, segundo dados do Ministério Público do Trabalho (MPT).
Na gastronomia, o problema é ainda maior. Enquanto os restaurantes brasileiros ganham reconhecimento mundo afora, o sabor não conta a história dos trabalhadores na cozinha ou nas plantações, que passam por situações insalubres para ganhar um salário mínimo — isso quando recebem.
Entre os casos mais marcantes, estão o de 207 pessoas encontradas em vinhedos do Rio Grande do Sul, de sete trabalhadores resgatados em um cafezal de Minas Gerais e de 15 funcionários em situação análoga a escravidão em um restaurante japonês de São Paulo.
Há, no entanto, outros episódios que não viralizaram na mídia, mas que constam na “lista suja” do trabalho escravo pelo Ministério do Trabalho. Dos 174 nomes incluídos no documento, 97 vieram de fiscalizações em fazendas, uma das principais áreas de cultivo de alimentos.
“O aumento dos números de resgate pode ser explicado por uma série de fatores, e não necessariamente significa o aumento do trabalho escravo no país. Essa não é uma realidade de agora, já que ela vem acompanhada de outros anos também”, explica o vice-coordenador nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conaete) do MPT, Italvar Medina.
Afinal, por que a exploração de trabalhadores está cada vez mais ligada à gastronomia?
Rotina exaustiva dentro de uma cozinha
A cozinha de um restaurante pode ser um ambiente bem intenso física e emocionalmente. Pode-se dizer ainda que ela funciona, em alguns casos, como um espaço de execução do escravismo contemporâneo. O que era para ser um recinto de aprendizado, acaba se tornando um território esgotante.
“Geralmente são 8h em pé, seis dias da semana, um salário mínimo e uma folga na semana, que não é domingo. Em altas temporadas, quando tem muito movimento, eu já cheguei a dobrar a hora, entrando 14h da tarde e saindo às 4h da manhã. Apesar do restaurante pagar o horário excedido, não era um ‘mega’ salário”, relata o gastrônomo Edmundo Lino.
De acordo com a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), cerca de 5,3 milhões de pessoas estavam empregadas em bares e restaurantes em 2022. A rotina exaustiva e baixos salários, no entanto, forçam os funcionários a investir no próprio negócio, a exemplo de Edmundo, que trabalha de forma autônoma.
“Entrar em uma cozinha de novo e passar por toda aquela pressão eu não quero mais. Hoje, depois de muita experiência, a minha vontade de estar em um restaurante passou e, por isso, eu optei em trabalhar com o meu pai em uma construtora e fazer produtos de Páscoa”, diz.
Edmundo, compara o cenário da gastronomia a uma “prostituição”. “Alguns restaurantes não pagam bem e só crescem conforme oferecem um salário mínimo. Não é caracterizado um trabalho escravo, mas pela carga horária, a insalubridade e por ficar em pé várias horas por dia, o salário é baixo”, afirma o gastrônomo.
A romantização da gastronomia
A exploração do trabalhador é aceita na gastronomia. Isso parte, muitas vezes, da hierarquia dentro do ambiente de trabalho, que é extremamente baseada no militarismo. Em fazendas ou dentro de uma cozinha, a figura do patrão é essencial para entender a situação.
Segundo o chef de cozinha e colunista do Metrópoles, André Rochadel, as situações insalubres vividas pelos funcionários acontecem, muitas vezes, por conta da romantização da gastronomia.
“Muitos chefs acham que só porque a carreira na cozinha foi feita em cima de uma exploração e romantização todo mundo tem que agir da mesma maneira. Ninguém está disposto a mudar o cenário porque sempre aconteceu desse jeito”.
“Há muitos chefs renomados que falam sobre a valorização da gastronomia e do mercado. Porém, é só chegar na cozinha deles que é possível ver estagiários que ganham pouco, funcionários que não tem folga e o desrespeito com os horários acordados”, conta André.
Para o ex-MasterChef, uma parte esmagadora dos restaurantes à la carte tem uma jornada irregular de trabalho. A explicação para isso se dá, muitas vezes, pela falta de fiscalização das autoridades responsáveis.
O que dizem as autoridades?
Ao Metrópoles, o procurador do MPT Italvar Medina explica que não há uma causa concreta para o aumento do trabalho análogo à escravidão no país, mas existem fatores que contribuem para alta de casos.
“Nos últimos anos, houve um aumento da vulnerabilidade econômica, sobretudo com a crise que surgiu na pandemia, que gerou o desemprego e a precarização das relações de trabalho. Isso torna mais suscetíveis a exploração por outras pessoas”, esclarece o também vice-coordenador nacional do Conaete.
Na gastronomia, as alterações trabalhistas também contribuem para o aumento dos casos no setor.
“A flexibilização das regras de jornada, o aumento das terceirizações e a dificuldade em acessar a justiça do trabalho podem estar ligados ao crescimento da escravidão na modernidade”, avalia.
Outro fator importante a citar é a fiscalização, insuficiente para atender a totalidade de denúncias que existem. Isso se explica devido à redução do número de auditores fiscais do trabalho, tendo em vista que não é realizado concurso público desde 2013.
“Conforme as atividades ilegais avançam por conta da falta de inspeção, os empregadores ficam mais à vontade em descumprir a legislação”, lamenta.
Fonte: Gabriela Francisco | Metrópoles
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Data da publicação original: 01/04/2023