Desigualdade descomunal: renda média nacional domiciliar per capita é de R$ 1.400 e os 5% mais pobres moram nos lixões, com R$ 100 por mês. Entrevista especial com Otaviano Helene
“A desigualdade do Brasil é produto da cultura brasileira: nós nos acostumamos com ela”, afirma o pesquisador
“Às vezes, os pobres que nós conhecemos não são pobres, são aquelas pessoas que estão na faixa dos 40% mais ricos, que são aqueles que trabalham em empregos domésticos, em setores de limpeza, ou pessoas que moram em cortiços mais modestos. Mas há pessoas que estão em outra condição de pobreza. Por exemplo, quando uma diarista vai limpar uma casa por um certo valor, ela também precisa pagar alguém para cuidador do seu filho por outro valor evidentemente mais barato do que o que ela recebe. Então, os 5% mais pobres são aqueles que geralmente moram nos lixões, na periferia da periferia, cuja renda chega a aproximadamente R$ 100 por pessoa, por mês, além dos moradores de rua. A desigualdade entre esses grupos é descomunal e muitas vezes essas pessoas nem são atingidas pelos programas sociais”. A observação é de Otaviano Helene, professor sênior do Instituto de Física da USP, que acompanha os dados estatísticos sobre a desigualdade de renda no país.
Na entrevista a seguir, concedida via Zoom ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ele apresenta e comenta os dados relativos à renda da população brasileira, uma das fontes das desigualdades. Segundo ele, enquanto a renda média nacional domiciliar per capita é da ordem de R$ 1.400 por mês, aqueles que recebem uma renda domiciliar per capita superior a cerca R$ 2.700 já estão “no grupo dos 10% mais bem aquinhoados”, e os que têm um rendimento próximo a R$ 10 mil por mês estão no “grupo formado pelo 1% com maior renda”. Esses dados, acentua, “mostram a grande dificuldade quando o assunto é concentração de renda, porque as pessoas que estão nessa faixa acham que a conversa não é com elas. Mesmo elas estando entre os 10%, 5% ou 1% mais ricos, o rico, para elas, é o outro, aquele que é mais rico ainda. Mas não é assim”.
Para mudar o padrão de renda atual no país, explica, “os setores mais ricos teriam que diminuir 20% ou 30% da renda, e os muito ricos algo em torno de 50% ou 60%, para conseguirmos aumentar em 300%, 400% ou 500% a dos mais pobres. Isso permitiria atingir uma distribuição de renda mais ou menos parecida com a dos países relativamente não muito desiguais”. E adverte: “Aí está o problema: como convencer esses setores bem aquinhoados de que uma política de distribuição de renda por parte deles é importante para o país?”
A seguir, Otaviano Helene também comenta o círculo vicioso em torno do sistema educacional, que reproduz as desigualdades de renda. “Os instrumentos sociais são elaborados no sentido de congelar as desigualdades: a renda depende da escolarização e a escolarização das crianças depende da renda familiar”, afirma.
Otaviano Helene é graduado, mestre e doutor em Física pela Universidade de São Paulo – USP, onde leciona.
Confira a entrevista.
IHU – Que balanço o senhor faz da situação social no Brasil depois de dois anos de crise sanitária e econômica?
Otaviano Helene – A desigualdade é crônica no país e o escravagismo, na nossa história, é um dos fatores marcantes que fez com que a desigualdade continuasse. Além disso, há no país um grupo economicamente dominante que não encontra limite para o seu egoísmo e isso fez com que chegássemos a esse quadro de ser o país mais desigual do mundo, como já fomos. Em alguns países, como na África do Sul, é possível encontrar razões extraeconômicas para a desigualdade, como o Apartheid, que nós não vivenciamos. A desigualdade do Brasil é produto da cultura brasileira: nós nos acostumamos com ela.
As “soluções brasileiras” para enfrentar o problema são terríveis porque fazem com que a sociedade não só conviva, mas naturalize as desigualdades. A desigualdade não é natural; ela é construída pelo sistema escolar, pelo sistema de emprego, de renda, pela política de impostos, pela política dos benefícios sociais, que acabam sendo concentrados nos segmentos mais favorecidos. Um exemplo disso é o abatimento de gastos em saúde no imposto de renda: quanto mais rica a pessoa é, mais caro é o seu seguro saúde e maior é o subsídio que ela recebe do governo federal para pagá-lo. A pessoa remediada, que nem seguro de saúde tem e consulta pelo SUS, não recebe nada em termos compensatórios. Esse tipo de benefício piora a situação da desigualdade e faz com que nos adaptemos a ela.
IHU- Qual é a renda média nacional hoje?
Otaviano Helene – Em valores atuais, arredondados, porque ainda não se tem os valores dos últimos anos, a renda média nacional domiciliar per capita é da ordem de R$ 1.400 por mês, ou seja, uma renda bastante baixa e, além disso, mal distribuída. Hoje, existem muito mais pessoas abaixo dessa média do que acima dela. Para manter essa média e melhorar a redistribuição de renda, teríamos que reduzir a renda de todo mundo que ganha acima da média para aumentar a dos que ganham abaixo dela. Com isso, o aumento da renda seria brutal entre aquelas faixas mais desfavorecidas. Mas, para fazer isso, teria que reduzir o rendimento dos mais ricos.
IHU- Outro dado apresentado em seu artigo é que “uma renda domiciliar per capita superior a cerca de R$ 2.700 (…) já é suficiente para colocar uma pessoa no grupo dos 10% mais bem aquinhoados” e com uma renda “perto de dez mil reais por mês, a pessoa estará no grupo formado pelo 1% com maior renda”. O que isso revela, de um lado, sobre a redução da própria renda entre os brasileiros e, de outro, sobre o modo como é feita a distinção entre quem pertence ao grupo dos 10% mais ricos e 10% mais pobres?
Otaviano Helene – Esses dados mostram a grande dificuldade quando o assunto é concentração de renda, porque as pessoas que estão nessa faixa acham que a conversa não é com elas. Mesmo elas estando entre os 10%, 5% ou 1% mais ricos, o rico, para elas, é o outro, aquele que é mais rico ainda. Mas não é assim.
Para mudarmos o padrão de renda para um padrão europeu razoável, os setores mais ricos teriam que diminuir 20% ou 30% da renda e os muito ricos, algo em torno de 50% ou 60%, para conseguirmos aumentar em 300%, 400% ou 500% a dos mais pobres. Isso permitiria atingir uma distribuição de renda mais ou menos parecida com a dos países relativamente não muito desiguais.
Aí está o problema: como convencer esses setores bem aquinhoados de que uma política de distribuição de renda por parte deles é importante para o país? Por mais que o PIB cresça neste ano, no próximo, a média de renda anual poderá chegar a R$ 1.500, mas ela não mudará de um dia para o outro. No início da década, o PIB chegou a crescer 30% em um período de dez anos e mesmo sendo um belo crescimento, está muito aquém do necessário para conseguir melhorar a distribuição de renda sem reduzir a renda dos mais ricos.
Entre 2005 e 2012 houve uma melhoria significativa na redistribuição de renda da população brasileira. Nesse período, como a renda per capita cresceu, o rendimento dos que ganham menos aumentou significativamente, e aumentou um pouco a renda dos que ganham mais. Então, houve um período de crescimento econômico em que foi possível melhorar a redistribuição de renda sem nenhum segmento perdê-la. Isso foi possível com programas como o Bolsa Família, aumento do salário mínimo e redução do desemprego.
IHU- Quais as consequências da desigualdade de renda no sistema educacional?
Otaviano Helene – A renda de um trabalhador cresce na medida em que cresce a sua escolarização. Uma pessoa com ensino superior completo e profissões que exigem um preparo maior tem mais renda do que aqueles que têm um nível escolar mais baixo.
Existe uma diferença muito grande nesses extremos: entre o muito escolarizado e o pouco escolarizado. Por outro lado, a escola a que as crianças e jovens têm acesso e o nível e desempenho escolar delas dependem da renda domiciliar. Crianças e jovens que vêm de domicílios de alta renda têm como regra a frequência a boas escolas, apoio escolar em casa, cursos de idiomas, atividades físicas, viagens recreativas até a graduação ou pós-graduação, enquanto os mais desfavorecidos mal conseguem completar o ensino fundamental. 10% ou 15% das crianças e jovens saem da escola antes de concluir o ensino fundamental e, antes de concluir o ensino médio, a evasão já pode ter atingido aproximadamente 40% dos jovens. Então se cria um círculo vicioso do qual não se consegue sair porque os instrumentos sociais são elaborados no sentido de congelar as desigualdades: a renda depende da escolarização e a escolarização das crianças depende da renda familiar.
IHU – Em alguns artigos o senhor tem defendido a ideia de que “a renda de uma pessoa depende de muitos fatores, entre eles, de sua escolaridade”. Essa correlação está mudando, de algum modo, no país, uma vez que o desemprego cresce também entre pessoas com formação superior ou elas não encontram um trabalho compatível com a sua formação?
Otaviano Helene – Essa correlação ainda existe. É preciso levar em conta o seguinte: um aspecto é a quantidade de anos de escolarização de uma pessoa, outro aspecto é a qualidade do ensino que a pessoa recebeu. Podemos comparar duas pessoas que tiveram nove anos de escolarização, mas uma, em uma escola precária, onde faltavam professores, não tinha assistência educacional e outros recursos, enquanto a outra teve acesso a outros complementos, como aula em tempo integral, viagens, cursos. No fim, a diferença é enorme. No ensino superior também há essa diferença quantitativa e qualitativa. Há cursos de ensino superior em que claramente a remuneração das famílias dos estudantes é diferente de outros. Em cursos como medicina e engenharia em turno integral, a renda das famílias é alta, enquanto no outro extremo, nos cursos de licenciatura em geral, pedagogia e administração, a renda das famílias é muito baixa. Então, existe essa desigualdade interna.
O problema do ensino superior no Brasil é que ele foi muito mal planejado e virou uma coisa confusa. Se dá subsídios fiscais para cursos que não darão retorno algum nem para o aluno nem para a região onde o curso está instalado. A outra questão é a seguinte: uma coisa é ter uma pessoa com nível superior completo e uma profissão bem definida desempregada, outra é ter uma pessoa com ensino fundamental incompleto e desempregada. Ainda assim a diferença entre elas é muito grande. Então, a desigualdade é intrínseca ao sistema educacional, que a reproduz. Nesse sentido, essa correlação continua existindo e é muito forte. Os jovens que conheço e estão desempregados ou mal-empregados, ainda assim vivem bem. Além disso, além da escola, as relações familiares e de amizade pesam muito na integração social de uma pessoa. O pobre é pobre, seus parentes são pobres, irmãos e vizinhos são pobres e as pessoas que ele conhece são pobres. Já os bem aquinhoados, ao contrário, têm outra rede de relações.
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Fonte: IHU – Instituto Humanista Unisinos
Data original de publicação: 23/02/2022