“É assustadora a bomba-relógio que temos pela frente”. 80% dos trabalhadores brasileiros são pobres e vivem com renda de até 1.700 reais – Entrevista especial com Waldir Quadros
Por Patricia Fachin
Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Pnad Contínua, publicados recentemente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, mostram que os estratos sociais mais pobres ainda estão sentindo os efeitos da recessão econômicaque atingiu seu ponto mais alto em 2016. Para medir e avaliar os impactos da crise, o economista Waldir Quadros analisa as condições de vida da população de baixa de renda divididas em três categorias gerais: “superior dos pobres”, que corresponde ao que alguns pesquisadores chamam de “baixa classe média”, “pobres” e “miseráveis”. Segundo ele, “olhando os dados recentes, como o dado do último trimestre de 2018, percebe-se que 80% dos ocupados são classificados em alguma dessas categorias de pobres: 40% estão na camada ‘superior dos pobres’, 27% na camada dos ‘pobres’ e 13% na camada dos ‘miseráveis’”. Em termos de renda, informa, aqueles que estão na camada “superior dos pobres” têm uma renda média mensal de 1.700 reais, os “pobres” recebem 920 reais mensais e os “miseráveis”, 310 reais mensais. Na entrevista a seguir, concedida por telefone para a IHU On-Line, Quadros menciona que os dados da Pnad indicam que a crise econômica gerou ao menos três consequências: desemprego, queda da renda dos trabalhadores e aumento do número de desempregados com ensino superior completo.
Confira a Entrevista
HU On-Line – Em 2017, o senhor informou que 5% da população, cerca de 11 milhões de pessoas, havia sofrido uma mobilidade descendente em 2015 por conta do aumento do desemprego e da queda da renda. Qual tem sido a situação de lá para cá? O que os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Pnad que o senhor monitora informam sobre a situação de desemprego, a queda da renda e o aumento da pobreza no Brasil?
Waldir Quadros – O IBGE mudou a metodologia da Pnad e desde 2012 está publicando a Pnad Contínua. Então, aquela série antiga de análises que eu fazia foi concluída em 2015, porque em 2016 o IBGE também mudou a metodologia que possibilita obter os dados sobre as famílias, e, sem agregar esses dados, não consigo analisar a mobilidade, como eu fazia antes. A Pnad Contínua melhorou muito, os dados estão melhores, mas há esse problema da quebra da série. Diante disso, ainda não tenho o estudo de mobilidade social, mas com os dados disponíveis podemos caracterizar a crise que começa em 2015. Então, embora haja uma ruptura daquela série de análise, vou fazer uma estimativa aproximada dos dados de 2015.
IHU On-Line – O que os dados da Pnad Contínua mostram sobre a crise a partir de 2015?
Waldir Quadros – Os dados da Pnad Contínua desde 2012 mostram que o grande impacto no mercado de trabalho por causa da crise econômica ocorreu em 2016. O que acontece a partir de 2016? Eu e vários outros professores estamos ajustando nosso olhar para analisar esse cenário de crise, porque até então trabalhávamos com uma perspectiva analítica daquele período anterior, que era de mobilidade ascendente e de progresso social. Mas esse cenário mudou. Por conta disso, a própria denominação da estrutura da minha pesquisa mudou: não estou mais trabalhando com a categoria “baixa classe média”. Estou chamando essa categoria de “camada superior dos pobres”, porque a crise está provocando um empobrecimento das estruturas sociais. Porém continuo trabalhando com as categorias “alta classe média” e “média classe média”, que sempre foram os dois segmentos que de fato representam a classe média. Além da categoria “camada superior dos pobres”, estou trabalhando com outras duas: os pobres, que são a massa trabalhadora, e os miseráveis. Estamos analisando com mais atenção as camadas “superior dos pobres”, “pobres” e “miseráveis”. Fazendo essa agregação e olhando os dados recentes, como os do último trimestre de 2018, percebe-se que 80% dos ocupados são classificados em alguma dessas categorias: 40% estão na camada superior dos pobres, 27% na camada dos pobres e 13% na camada dos miseráveis.
A camada “superior dos pobres” tem uma renda média mensal de 1.700 reais, os “pobres” recebem 920 reais mensais e os “miseráveis”, 310 reais mensais – Waldir Quadros
IHU On-Line – Qual é a renda média dos trabalhadores de cada um desses estratos?
Waldir Quadros – A camada “superior dos pobres” tem uma renda média mensal de 1.700 reais, os “pobres” recebem 920 reais mensais e os “miseráveis”, 310 reais mensais. Como se vê, a renda é consistente com a denominação.
(Tabelas elaboradas pelo entrevistado)
O que aconteceu de 2015 para cá? Primeiro, o impacto imediato da crise foi em relação ao desemprego: em 2015 houve um crescimento do desemprego de 26,5%. Esse desemprego imediato ocorreu após o ajuste do governo Dilma. Em 2016, que foi o ano mais grave da crise, o aumento da taxa de desemprego foi de 37%, em 2017 teve um crescimento de 13,5% e em 2018 houve uma redução de 2,2%. O grande fenômeno em termos de mercado de trabalho é o desemprego e este é o primeiro aspecto da crise. O segundo aspecto da crise no mercado de trabalho é o aumento da participação de trabalhadores autônomos, porque todo mundo que fica desempregado e vai procurar algum trabalho, acaba exercendo alguma atividade autônoma, como vendedor, motoboy etc. Esse percentual vem crescendo desde 2016.
Outro aspecto da crise mostra a estratificação social dos ocupados em família. Se numa família há três ocupados, considero o membro que é mais bem remunerado, ou seja, a família é classificada a partir da situação do membro melhor remunerado. Ao analisar a estratificação familiar dos ocupados, que é a visão mais ampla que temos, fica claro que o grande baque para as famílias ocorreu em 2016, quando houve uma grande retração na “alta classe média” e um crescimento de 2% nos “miseráveis”, ou seja, nos dois extremos. A estrutura piorou em 2016, que foi o grande ano da crise, e continua ruim até agora, já que não houve nenhuma melhora na economia. Este é o cenário, mas há alguns agravantes: quando olhamos os pobres ocupados — classificados nas três categorias que mencionei —, observamos que existe uma grande parcela de trabalhadores com nível superior. Então, é assustadora a bomba-relógio que temos pela frente. Considerando os dados do quarto trimestre de 2018 da Pnad Contínua, é possível observar que dos 5,8 milhões de ocupados com ensino superior incompleto, 4,6 milhões são “pobres”. Mais grave ainda: 8,3 milhões de ocupados que estão classificados na categoria “pobres” têm ensino superior completo. Se juntarmos aqueles que têm ensino superior incompleto e aqueles que têm ensino superior completo, temos 12,9 milhões de trabalhadores “pobres” com nível superior. Isso significa confusão; esse pessoal não vai aceitar essa condição tranquilamente, porque eles foram fazer faculdade, boa parte pagando a mensalidade com o Fies, esperando uma melhora de vida, e agora não tem melhora.
Na classe média pobre, há 9 milhões de pessoas que fizeram faculdade — concluíram ou estavam cursando — esperando passar para a média classe média, mas não terão essa oportunidade. Então, essa é uma situação que está represada e que tem um componente muito explosivo para a crise social. Entre todos os desempregados de todas as classes, 2 milhões têm nível superior; é muita gente, porque estamos falando de um número de 12,5 milhões de desempregados.
Entre todos os desempregados de todas as classes, 2 milhões têm nível superior; é muita gente, porque estamos falando de um número de 12,5 milhões de desempregados – Waldir Quadros
Em linhas gerais, essa é a síntese da análise que fiz. Depois, fiz uma análise por ocupações, por regiões, mas chamo a atenção para a proporção de pobres e sobre esse novo olhar para a baixa classe média, porque está claro que há uma camada superior de pobres que continua sendo pobre. É um cenário difícil, que começou em 2015, surgiu com intensidade em 2016 e já estamos em 2019 e nada indica que o cenário vai melhorar. Então, é um cenário preocupante e, com certeza, neste cenário a mobilidade também sofreu. No geral, caiu a “alta classe média”, caiu a “média” e cresceu o número de “pobres”.
IHU On-Line – Qual é o impacto social e cultural de ter um número significativo de pessoas com nível superior completo desempregadas?
Waldir Quadros – Tanto os desempregados quanto os ocupados que têm nível superior completo estão vivendo num nível social muito inferior, o qual é incompatível com o que se espera de alguém que tem ensino superior. Todo mundo imagina que após concluir o curso superior é possível ao menos ir para a média classe média, mas não é o que está acontecendo no Brasil. Então, o significado disso é uma profunda insatisfação. Aliás, esse quadro agrava a insatisfação e pode se encaminhar para uma revolta. O que ocorreu em 2013 foi nesse sentido: o descontentamento virou revolta.
Essa crise social é muito séria e tem este componente de novidade: o número de pessoas com nível superior cresceu muito por causa do progresso que ocorreu nos últimos anos, com cotas, ProUni, Fies, mas agora há uma grande frustração. Então, é um componente que pode se transformar numa coisa mais séria. Entre os desempregados a situação é ainda pior, porque eles têm nível superior e não conseguem emprego.
Quando conversamos com os motoristas de Uber, percebemos que uma boa parte tem curso superior e está numa ocupação altamente precária. Quando conversamos com os motoristas de Uber, percebemos que uma boa parte tem curso superior e está numa ocupação altamente precária – Waldir Quadros
IHU On-Line – Há dois anos o senhor atribuiu o quadro de desemprego e aumento da pobreza à crise econômica. As causas da situação atual continuam as mesmas ou há algum agravante de lá para cá, como a crise política ou até mesmo dificuldades por conta do novo governo?
Waldir Quadros – Veja bem, o novo governo começou agora. A grande responsável por isso foi Dilma Rousseff em 2015. Foi ela quem jogou o país numa recessão brutal, que gerou uma queda de 8% da renda per capita. A responsabilidade maior é dela. Depois, o Temermanteve esse quadro e, agora, Bolsonaro e Guedes querem tripudiar. Basta ver a quantidade de cortes que estão implementando e o tratamento que estão dando à reforma da Previdência, como se ela fosse a salvação da lavoura. Enquanto isso o investimento não reage, a produção não reage. Então, a crise iniciou em 2015 com Dilma e [Joaquim] Levy, que colocaram o país na recessão. Nesse contexto, a esquerda ficou desmobilizada e quem entrou foi Bolsonaro, que explorou a raiva.
IHU On-Line – Qual tem sido o impacto da reforma trabalhista neste cenário? Já é possível avaliar se ela tem contribuído ou prejudicado os trabalhadores no atual contexto de crise e desemprego que o país vive?
Waldir Quadros – A reforma trabalhista ajudou a precarizar a situação, com o contrato temporário. Tudo aquilo que “não pegava” na época de ascensão, agora está funcionando: o trabalhador aceita qualquer oferta de trabalho porque está desempregado. E a reforma trabalhista não protege, não ajuda o trabalhador.
O que reduz o desemprego é o crescimento econômico, por isso, enquanto o país não sair desse buraco, não tem saída. O que reduz o desemprego é o crescimento econômico, por isso, enquanto o país não sair desse buraco, não tem saída – Waldir Quadros
IHU On-Line – O governo e vários setores apostam na melhora da economia após a aprovação da reforma da Previdência. Como o senhor vê essa expectativa?
Waldir Quadros – Não há por que melhorar. A economia está parada porque ninguém tem renda. O consumo está baixo, estagnado e a reforma não vai mudar nada. Por que os empresários vão investir? Só porque agora tem uma reforma? Não. Essa é uma demanda do setor financeiro, dos rentistas e o Guedes representa esse grupo. É claro que é preciso uma reforma da Previdência, porque a atual é cheia de privilégios, mas a reforma proposta não mexe nos privilégios; ao contrário, mexe no Benefício de Prestação Continuada – BPC, nos benefícios do trabalhador rural etc. A reforma, se for levada ao limite, vai significar um alívio para os empresários no sentido de diminuir os custos, de tirar todos os direitos do trabalhador, mas não vai empregar mais. A reforma não é a salvação da lavoura.
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos
Data original de publicação: 14/06/2019