“É preciso que o recurso de 600 reais chegue hoje”. Entrevista com Sonia Fleury

Imagem: Pixabay

“Sonia Fleury é graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, mestra em Sociologia e doutora em Ciência Política pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ. Foi fundadora do Núcleo de Estudos Político-Sociais em Saúde na Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz – NUPES. Foi membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social – CDES entre 2003-2006 e da Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde – CNDSS. Atualmente coordena a Plataforma Digital do Dicionário de Favelas Marielle Franco Wikifavelas.”

Por João Vitor Santos e Patricia Fachin | Instituto Humanitas Unisinos

“O coronavoucher de 600 reais para os trabalhadores informais, autônomos e intermitentes, como ficou conhecido o pagamento do auxílio emergencial que será feito pelo governo federal, “pode chegar às pessoas das comunidades, mas para ser operacionalizado, ele requer uma burocracia que pode retardar o recebimento e talvez seja tarde demais”, adverte a cientista política Sonia Fleury. Para ela, a melhor maneira de suprir as necessidades financeiras desses trabalhadores é através de uma renda mínima que possa ser garantida imediatamente. “Um economista liberal disse que deveriam estar jogando dinheiro de helicóptero. É mais ou menos isso; não dá para pensar agora em mecanismos burocráticos, porque as pessoas não têm como prover a renda. Na favela, as pessoas costumam dizer que se vende o almoço para comprar a janta. Se a pessoa não trabalhar, não tem o que comer e isso já está acontecendo”, afirma.

Enquanto o auxílio governamental não chega às comunidades, o voluntariado assistencial tenta suprir as necessidades mais emergenciais, como alimentação, mas somente isso “não dá; é preciso que esse recurso de 600 reais chegue hoje, e não se tem clareza de quando vai chegar na mesa das pessoas”, reitera. A crise, salienta, evidencia as carências, mas também as potencialidades das favelas. “A favela hoje é o lugar mais organizado que existe no Brasil. O seu bairro tem algum nível de organização para enfrentar a pandemia? No meu, as pessoas nem se cumprimentam. A sociedade está inteiramente desmobilizada, não participa de nada, mas este não é o caso das favelas. Elas têm um nível de organização cultural, social, religioso, que é muito diferenciado em relação ao resto da população brasileira. Isso vai ficar patente na maneira como eles estão enfrentando a pandemia”, assegura.

Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp à IHU On-Line, Sonia Fleury pontua que a pandemia de Covid-19 acentuou a tensão entre as áreas sociais e a área econômica, em curso desde a aprovação da Emenda Constitucional 95 em 2016, que limita o teto dos gastos nas próximas duas décadas. Na avaliação dela, a crise, de outro lado, também ressalta a importância do Sistema Único de Saúde – SUS. “Ficou claro para a sociedade brasileira, pela primeira vez, a importância do sistema de saúde. Ele não é apenas um atendimento de atenção médica para pobre, mas é responsável pela saúde pública do Brasil inteiro, de pobres, ricos, pelas ações de vigilância sanitáriaepidemiológica”, assinala.”

Confira abaixo alguns trechos da entrevista

IHU On-Line – Como vê, de um lado, os discursos do presidente na crise atual, inclusive dizendo que a situação no país será diferente da dos EUA porque o brasileiro “pula no esgoto e não pega nada” e defendendo o isolamento vertical e, de outro, as ações dos ministérios, em especial do Ministério da Saúde?

Sonia Fleury – Está havendo muita tensão do governo federal com o seu próprio governo na área da saúde. O ministro [Luiz Henrique] Mandetta tem representado uma postura republicana, independentemente de partido. Está tentando enfrentar a crise com argumentos científicos, técnicos e os recursos que pode ter e, ao mesmo tempo, está sofrendo uma pressão muito grande do governo em função dos discursos do presidente.

Há algum sentido político em opor as medidas sanitárias ao crescimento econômico. Claro que todos nós já sabíamos que estávamos enfrentando uma crise econômica muito grande, que o PIB não estava crescendo e que as medidas que foram feitas, tanto de reforma trabalhista quanto de reforma previdenciária, não deram nenhum resultado em relação ao crescimento econômico e nem dariam, porque medidas de austeridade não levam a crescimento econômico.

Com a pandemia, o mundo inteiro vai entrar numa crise econômica, mesmo aqueles países que já estavam crescendo. A China reduziu a menos da metade o seu crescimento e isso impacta o mundo todo, porque os chineses compram do mundo inteiro. Ao dizer que são as medidas de combate à pandemia que vão levar a uma recessão econômica, o presidente quer, de alguma maneira, jogar a população contra os governadores e dizer que a culpa não foi dele, porque ele falou o contrário, quando todos nós sabemos que a crise econômica será uma realidade em todos os países. O que deveria ser feito agora são medidas de proteção social, anticíclicas e completamente contrárias ao discurso da área econômica. Paradoxalmente, os liberais que defendem a austeridade estão no poder para implementar medidas de proteção social, keynesianas, que aumentem a demanda e o consumo das populações mais pobres. Esse é um paradoxo que vamos viver.

IHU On-Line – A senhora também tem defendido que uma renda mínima seria necessária nesta hora. Em que consiste essa proposta neste momento e como se diferencia do que vem sendo proposto pelo governo?

Sonia Fleury – A renda mínima que defendemos tem que ser garantida imediatamente, porque é muito mais facilmente operacionalizada. Para receber a renda focalizada, como a que está sendo proposta pelo governo neste momento emergencial, a pessoa vai ter que provar que não tem outra fonte de renda. Até operacionalizar isso, muita gente já morreu de fome.

No último final de semana, os jornais de SãoPaulo informaram que nas favelas as pessoas estão saindo porque estão com fome e têm que sair de casa para procurar uma forma de ganhar algum dinheiro. Por isso essa política tem que ser para agora e não para daqui a 20 dias, quando vai ser promulgada no Senado e vai ser negociada com a CaixaEconômica. Isso é para ontem. Um economista liberal disse que deveriam estar jogando dinheiro de helicóptero. É mais ou menos isso; não dá para pensar agora em mecanismos burocráticos, porque as pessoas não têm como prover a renda. Na favela, as pessoas costumam dizer que se vende o almoço para comprar a janta. Se a pessoa não trabalhar, não tem o que comer e isso já está acontecendo.

Acesse aqui a entrevista completa

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos
Data original de publicação: 02/04/2020

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