Em meio ao lixo das chuvas no Rio Grande do Sul, catadores não conseguem trabalhar
Estudo inédito mapeou 47 milhões de toneladas de entulhos causados pelas chuvas; limpeza deve levar anos
Por Texto: Bruno Felin, Lara Ely | Edição: Bruno Fonseca da Agência Pública
Quando a água da enchente no Rio Grande do Sul baixar, o que restará além do sofrimento humano serão cerca de 47 milhões de toneladas de entulho. O número é semelhante ao de locais que passam por guerras, terremotos ou tsunamis. O cálculo, obtido pela Agência Pública, foi desenvolvido por Guilherme Marques Iablonovski, cientista de dados espaciais na Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (ONU), e Martin Bjerregaard, consultor em resíduos pós-catástrofe do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma).
Ao mesmo tempo, um ponto contraditório dessa história é que justamente as pessoas mais essenciais para o trabalho de limpeza das cidades – os catadores – foram duramente afetadas pelas enchentes. Moradores de regiões periféricas, áreas irregulares ou até mesmo ocupações, são dependentes de políticas sociais e por vezes encontram na reciclagem a única forma de subsistência.
Ao todo, sete das 17 unidades de triagem que fazem a separação de resíduos em Porto Alegre foram alagadas. Além de os galpões terem sido invadidos pela água ou destelhados, a falta de luz deixa equipamentos inoperantes. As estradas bloqueadas impedem o transporte do material para clientes de logística reversa em estados vizinhos. A instabilidade do sistema da Secretaria da Fazenda (Sefaz) dificulta a emissão de notas fiscais, o que torna inviável o processo de compra e venda de sucata.
Em Canoas, na região metropolitana, quatro cooperativas foram diretamente afetadas. Grande parte dos cooperados e seus familiares está em abrigos ou isolada em suas casas. “Essa enchente deixou quem já estava ruim ainda pior, por conta da falta de reconhecimento, investimento, preços baixos dos recicláveis. As pessoas estão sem casa, sem trabalho, sem nada”, diz Michele Ferreira dos Santos, catadora e coordenadora da cooperativa Renascer.
Entre a região metropolitana de Porto Alegre e o Vale dos Sinos, estima-se que 2,5 mil catadores de resíduos recicláveis perderam seu sustento com as cheias. Segundo o Movimento Nacional de Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis (MNCR), são 1,5 mil trabalhadores individuais – moradores principalmente das ilhas do Guaíba e da zona Norte da capital – que cumprem sua tarefa nas ruas, enquanto cerca de mil são cooperados, atuando nas unidades de reciclagem.
“Todo mundo foi diretamente ou indiretamente afetado. Está tudo muito confuso e amarrado, são muitos fatores que impactam na nossa renda”, explica a presidente do Fórum dos Catadores de Porto Alegre, Paula Medeiros, também coordenadora do Centro de Educação Ambiental Vila Pinto.
Por que isso importa?
A estimativa é que cerca de 2,5 mil catadores estejam com seu trabalho interrompido pelo desastre. Trabalhadores são essenciais para a limpeza e reconstrução do estado.
Segundo o estudo, há 47 milhões de toneladas de entulho geradas pela inundação no Rio Grande do Sul. Limpeza pode levar anos, mas pode ser otimizada com plano de aproveitamento de materiais.
Passados os primeiros dias de resgates e salvamentos, ela coordenou uma reunião com lideranças das unidades de triagem em uma tentativa de endereçar as primeiras necessidades e retomar gradualmente o trabalho. Foram redigidos ofícios solicitando à gestão municipal apoio para o enfrentamento da situação. O primeiro pedido foi em relação ao adiantamento de duas parcelas do auxílio emergencial, de R$ 670, um benefício criado pós-pandemia para apoiar a reestruturação financeira dessa população. O movimento organizado da classe também luta para angariar recursos, com apoio da Associação Nacional dos Catadores (Ancat), e cestas básicas.
“Planilhamos a situação emergencial de todas as unidades de triagem. Não sabemos se é possível aproveitar os espaços e equipamentos que ficaram. Além disso, para retomar nosso trabalho, tem a limpeza, para o qual precisaremos de botas, capa de chuva, a reconstrução dos telhados”, avalia a presidente.
Hoje, os resíduos sólidos domiciliares de Porto Alegre passam pela Estação de Transbordo da Lomba do Pinheiro (Unidade de Triagem e Compostagem – UTC) e de lá são transportados para a Companhia Riograndense de Valorização de Resíduos, aterro sanitário privado, no município de Minas do Leão, distante 105 km de Porto Alegre. Com as estradas interrompidas, todo material da coleta seletiva e lixo domiciliar que não está chegando ao destino final é armazenado na UTC, onde 96 pessoas atuam na triagem. “Expostos à pressão psicológica por mexer no que sobra nas casas de toda uma cidade alagada, os catadores estão trabalhando para separar montanhas e montanhas de lixo”, explica Medeiros.
Quando baixar a água, a mistura de lama, corpos e carcaças de bichos irá compor um tipo de resíduo altamente contaminado, o que inviabiliza, segundo Medeiros, a separação pelos catadores.
Quase meio milhão de edificações afetadas – o cálculo do desastre
Segundo os cientistas ouvidos pela Pública, ao todo mais de 400 mil edificações já foram afetadas pelo desastre, sendo 44,6 mil destruídas ou severamente danificadas por fortes correntezas e outras 170 mil com grande probabilidade de terem danos estruturais graves por estarem submersas durante vários dias. Cidades varridas pela força das águas, como Canoas, São Leopoldo, Eldorado do Sul, Roca Sales e Muçum, onde muitas residências e construções foram ao chão, se tornaram um enorme emaranhado de resíduos de todos os tipos.
400 mil edificações já foram afetadas pelo desastre. Foto: Gustavo Mansur/Palácio Piratini
Iablonovski faz parte de um grupo de voluntários que se uniu a pesquisadores do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) para manter um repositório de dados que traz informações valiosas para quem está gerenciando a crise.
Eles foram os primeiros a usar imagens de satélite – e não projeções de modelos matemáticos – para definir mais precisamente a mancha de inundação em todo o Rio Grande do Sul. Em seguida, usaram os dados do Censo para compreender características da população afetada pelo evento climático.
O trabalho dos pesquisadores tem gerado descobertas importantes para enfrentar a crise e planejar a reconstrução.
O mapa abaixo mostra onde estão distribuídos os 47 milhões de toneladas de resíduos no estado. Eles estão concentrados em Porto Alegre e cidades da região metropolitana como Canoas, São Leopoldo e Eldorado do Sul.
“Limpeza” do Rio Grande do Sul deve levar anos, diz especialista
Para o especialista em resíduos pós-desastres Martin Bjerregaard, que trabalha em parceria com Iablonovski, a enchente no Rio Grande do Sul, comparada a outras pelo mundo, surpreendeu pela extensão do desastre. Para ele, essa é possivelmente a maior em extensão já ocorrida no mundo. “Quando dizemos que há 47 milhões de toneladas, não significa que é algo exato, pois é algo que nunca saberemos. O que mostramos é que é muita coisa e não há como ignorar, se não tudo isso vai para o meio ambiente, causa um impacto gigantesco”, afirma.
O especialista conta que experiências de outros lugares do mundo mostram que a qualidade dos esforços de limpeza é fundamental para reduzir os custos da reconstrução. Separar os resíduos que são recicláveis ou reutilizáveis do que vai para aterros é fundamental. Um exemplo é a madeira, que pode e deve ser reutilizada. Outro são os resíduos da construção civil, que podem ser triturados e usados como matéria-prima para diversas construções e podem ser armazenados por mais tempo.
Além disso, há resíduos mais complexos, como os industriais, hospitalares e químicos. O estudo mostrou que há cerca de 200 mil veículos danificados em todo o estado. Se essa projeção estiver correta, teremos 180 mil toneladas de resíduos só de veículos e um passivo ambiental, analisa Wladi Souza, sócio-fundador da Green Way for Automotive, startup gaúcha que compra, descontamina e recicla peças automotivas. “Pelo aspecto ambiental temos um grande problema: derivados de petróleo [combustível e óleos lubrificantes], metais pesados como o chumbo das baterias se misturando nessa água já contaminada de outros poluentes.”
A análise dos pesquisadores mostra também que serão necessárias duas ondas de limpeza, que podem levar diversos meses ou anos. Uma primeira para retirar os destroços e tudo que estava dentro das construções, que foi calculada em 5 milhões de toneladas de móveis e equipamentos e 19 milhões de toneladas de resíduos da construção civil. A segunda é ainda maior quando se analisa a estrutura de todo o ambiente construído que fica submerso por um longo período, o que pode condenar um grande número de construções. “Nosso trabalho considera as características construtivas também, assim como a profundidade e força da água a que foram expostas. Quando as pessoas voltam para casas e prédios, é que podem analisar os danos estruturais”, explica Iablonovski.
Experiências anteriores pelo mundo mostram que o Rio Grande do Sul poderia reconstruir melhor se conseguir reciclar e reutilizar ao menos parte dos resíduos. “Imagine de onde virá tanta madeira ou areia para reconstruir tudo que foi perdido. Isso gerará pressão sobre florestas e outros ambientes naturais. Portanto, tudo que puder ser reciclado ou reutilizado será uma forma de economizar recursos e proteger o meio ambiente”, sugere Bjerregaard.
Pilha de entulho em Roca Sales, Rio Grande do Sul; limpeza pode levar anos. Foto: Gustavo Mansur/Palácio Piratini
Estado ainda lidava com impactos das últimas cheias
A cena de cidadãos colocando os pés e as mãos no barro para limpar as áreas por conta própria é muito comum em cidades afetadas por enchentes no Brasil. Esperar pelo poder público muitas vezes é inviável para muitas comunidades.
No início de maio, o governo estadual, através da Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema) e da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), publicou algumas orientações referentes à destinação de resíduos pelas prefeituras, já considerando os bloqueios em rodovias estaduais e federais provocados pelas fortes chuvas.
Para resíduos das enchentes, que não se enquadram no lixo domiciliar, a Fepam está mapeando áreas disponíveis e elaborando uma cartilha de orientação aos municípios, já que não há tempo para a criação de novos aterros licenciados. A orientação é que não sejam usadas áreas com recursos hídricos próximos, como rios, nascentes e lençóis freáticos e que possam ser acessadas no futuro. A Sema prometeu fazer um mapeamento de todas essas áreas para evitar que se tornem terrenos contaminados e abandonados, conhecidos tecnicamente como brownfields – campos marrons, do inglês.
Alguns municípios do estado já estão retomando a coleta de lixo domiciliar, o lixo comum, mas não podem utilizar os aterros usuais. Nesses casos, a orientação é que o lixo seja levado para as áreas definidas pela Fepam ou outro aterro que esteja funcionando – ainda que se supere o volume diário daquele aterro, mas nunca a sua vida útil.
A procuradora de Justiça Ana Maria Moreira Marchesan, coordenadora do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Meio Ambiente do Ministério Público do Rio Grande do Sul, relembra como foi a experiência de enchentes anteriores, como as ocorridas em setembro e novembro de 2023, especialmente no Vale do Taquari. “Eu diria que foi muito frustrante, porque a perda de materiais por não se ter de antemão um plano para reaproveitamento é algo muito triste. Se já tivéssemos usinas operacionais de reciclagem de resíduos da construção civil, para onde se pudesse destinar parte desse material, ou estações de compostagem, para algum resíduo orgânico aproveitável, tudo isso geraria um volume menor de destinação para aterros”, explica.
O impacto desse volume monstruoso de resíduos em aterros faz com que projetos como o principal aterro do estado, em Minas do Leão, próximo a Porto Alegre, tenham sua vida útil reduzida.
A reportagem conseguiu mapear apenas um projeto de reciclagem de resíduos da construção civil no Rio Grande do Sul, uma iniciativa da prefeitura de Canoas, executada pela empresa SBR Reciclagem, com capacidade para processar 14 mil metros cúbicos por mês. O valor é irrisório frente ao volume de resíduos espalhados pelo estado. Foi esse espaço que recebeu e processou os resíduos do prédio da Secretaria de Segurança Pública do estado, incendiado em 2021.
O Rio Grande do Sul precisará de muito apoio federal e/ou de outros estados no trabalho de limpeza. Cálculos de Iablonovski, com base em dados do Sistema Nacional de Informações sobre a Gestão dos Resíduos Sólidos, mostram que, com a estrutura atual de caminhões de coleta dos municípios gaúchos, o trabalho de limpeza poderia levar até três décadas.
Responsável pelo gerenciamento de resíduos de empresas de setores como o calçadista, farmacêutico e químico no estado, a Proamb é uma das consultorias envolvidas na destinação do que foi perdido pelas indústrias na enchente. Diego Pereira, engenheiro consultor de novos negócios na entidade, explica que uma alternativa é o coprocessamento para transformar em combustível CDR (combustível derivado de resíduo), uma prática que envolve circularidade bastante conhecida, porém cara.“Quanto mais misturados estão estes materiais, menores são as chances de reciclar. Se depender da vontade política, vai continuar sendo tudo aterrado”, afirma. De acordo com o Relatório Nacional de Gestão de Resíduos Sólidos, atualmente 98% do resíduo é destinado para aterro sanitário.
Fonte: Sul 21
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Data original de publicação: 21 de maio de 2024