Especialistas destacam importância de identificar e combater o trabalho escravo doméstico

Foto: Divulgação

Por Bianca Nascimento | Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região

O lançamento oficial da campanha de erradicação do trabalho escravo doméstico “O Basta Começa em Casa!” reuniu mulheres especialistas no tema de todo o Brasil para um seminário que evidenciou dados sobre o problema e ressaltou a urgência de se prevenir e identificar práticas abusivas e exploratórias na relação de trabalho doméstico. O evento online da Escola Judicial da Décima foi transmitido ao vivo, no final da tarde de quinta-feira (18), pelo YouTube.

A mesa de abertura contou com a participação da diretora da Ejud10, desembargadora Flávia Falcão, do presidente da Comissão de Responsabilidade Socioambiental do regional, desembargador Pedro Foltran, e da idealizadora da campanha e integrante da Comissão de Erradicação ao Trabalho Escravo do Tribunal, juíza Maria José Rigotti Borges. Os breves discursos de introdução do seminário enfatizaram a relevância de se oferecer condições dignas e seguras de trabalho decente às domésticas no Brasil, profissão alvo de muitas violências e invisibilizada ao longo de séculos.

“O evento traz uma temática muito inquietante e perturbadora, mas é uma temática necessária porque é complexa e traz várias camadas que requerem um olhar do Judiciário em várias perspectivas. (…) A campanha quer ajudar a visibilizar o trabalho doméstico como um trabalho digno, assim como expor as vulnerabilidades dessas trabalhadoras, trazendo à tona essa inaceitável realidade que ainda existe na sociedade brasileira em pleno século 21, que é o trabalho doméstico análogo à escravidão”, disse a juíza Maria José na abertura.

Patrícia Lima, advogada e diretora executiva do Instituto Trabalho Decente, abriu a série de palestras falando sobre trabalho infantil doméstico e suas consequências. Antes de avançar sobre o assunto, a especialista lembrou as desigualdades, as opressões e as violências históricas que vitimaram mulheres negras desde o Brasil colônia e que culminaram na legitimação da desumanização e da exploração das trabalhadoras domésticas.  

“Precisamos trazer vários elementos para esse diálogo. Não podemos esquecer o nosso passado. Na discussão da construção da sociedade brasileira temos mais de 300 anos de escravidão. Obviamente, numa sociedade onde o trabalho escravo esteve na base por tantos anos, muito mais do que temos de história de trabalho livre, isso deixa marcas. Os resquícios de uma sociedade racista permanecem. Então, nós temos uma questão racial que não podemos deixar de fazer quando falamos de trabalho doméstico”, observou a advogada.

O trabalho doméstico infantil tem como perfil majoritário meninas negras de famílias mais pobres, segundo a especialista. Há algumas condições em que a legislação permite o trabalho de menores de 18 anos no país e nenhuma delas é a de trabalho doméstico, que foi considerada uma das piores formas de exploração do labor de crianças, por suas inúmeras consequências para saúde e a qualidade de vida, que geralmente impactam na privação de uma vivência plena da infância, na dificuldade de construção de relações sociais, no déficit educacional, entre outros. “Nós, coletivamente, falhamos com essas meninas”, constatou.

Na sequência, a coordenadora da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da UFMG, Lívia Miraglia, fez uma palestra sobre trabalho escravo doméstico e suas interssecionalidades. A especialista trouxe dados para contextualizar o tema. Por exemplo, o número de trabalhadores resgatados nessas condições, de 2003 a junho de 2022, que é de mais de 58 mil. Relatórios sobre o tema mostram que há pontos em comum observados indicando a existência de um “tripé de degradância” na maioria dos casos: ausência de fornecimento de água potável, falta de instalações sanitárias e alojamentos inadequados.

A especialista também pontuou que o trabalho doméstico remunerado ainda é uma atividade precária, com baixos rendimentos, baixa proteção social, discriminação e até assédio. Segundo ela, há uma dinâmica afetiva do “quase da família”, que invisibiliza, dilui a percepção do trabalho como tal e da trabalhadora como profissional. “É uma condição que não podemos mais aceitar, que devemos falar e, enquanto sociedade, também nos cabe denunciar e fazer algo para modificar essa situação. Não podemos mais aceitar que uma pessoa seja excluída e invisibilizada a ponto de continuar sendo escravizada”, concluiu Lívia Miraglia.

Em seguida, Luciana Conforti, juíza da 6ª Região, falou sobre o tema de seu livro: “O direito fundamental de não ser escravizada”. A magistrada apresentou algumas reportagens e fatos para que os participantes do evento refletissem sobre questões culturais que envolvem o trabalho escravo doméstico. “O que a gente observa é a violência racial como entretenimento e que o país da suposta democracia racial ainda não deixou de ser separado por casa grande e senzala”, lembrou. De acordo com a palestrante, apesar de não ser uma situação nova, o trabalho escravo doméstico tem raízes profundas.

“As escravizadas domésticas são vítimas do ciclo vicioso que associa pobreza, raça, trabalho infantil, divisão sexual do trabalho e maior atribuição das tarefas e cuidados às mulheres, entre outras situações”, pontuou a juíza. Esse cenário de violência recorrente fez surgir instrumentos legais de maior proteção às mulheres. Um exemplo é o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, “que é um roteiro indicativo dos caminhos a serem seguidos pelos julgadores para possibilitar a produção de provas pelos mais vulneráveis, inclusive, para a necessária adoção do recorte de gênero e raça e reconhecimento de interseccionalidade, além da igualdade, como dever de não discriminação”, destacou a magistrada do trabalho.

Logo depois, a fiscalização do trabalho doméstico análogo à escravidão foi abordada por Marina Sampaio, auditora fiscal do Trabalho e coordenadora do Projeto de Trabalho Doméstico do Ministério do Trabalho e Emprego. A especialista explicou alguns dos indícios que caracterizam a condição de exploração na relação de trabalho doméstica, como a submissão da trabalhadora a jornadas exaustivas, a ausência de férias e descansos semanais, isolamento social e falta de pagamento. Marina contou que assim que a denúncia é recebida, a fiscalização se mobiliza com o Ministério Público do Trabalho para obter uma autorização judicial para entrada na residência.

“Esse é um ponto importante, porque pedido judicial acaba sendo um amparo para os agentes públicos. Felizmente, temos tido um retorno positivo do Judiciário. A maioria dos juízes têm entendido a gravidade dos indícios para expedição do mandado, até porque o trabalho escravo é tipificado como crime”, ressaltou a auditora fiscal. Após a inspeção no local de trabalho, ocorre a coleta dos depoimentos, são realizadas reuniões para deliberações e encaminhamentos e, por fim, o resgate efetivo da trabalhadora e o pagamento do seguro desemprego. Depois, “é elaborado um relatório da ação fiscal, indicando a situação encontrada, e é feita a lavratura dos autos de infração”, detalhou a palestrante.  

O último tema do seminário foi a atuação do MPT no combate ao trabalho escravo doméstico, palestra proferida pela procuradora do Trabalho Lys Sobral Cardoso, que coordena a Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. A especialista esclareceu a disparidade evidenciada nas estatísticas entre a quantidade muito maior de homens em detrimento dos baixos percentuais de mulheres resgatadas em condições análogas à escravidão no Brasil. Na análise dela, isso se deve, principalmente, com dados de formas de trabalho que ainda não são reconhecidas como escravidão e exploração pela sociedade.  

“Existem situações de exploração que ainda passam ao largo da fiscalização. E aqui eu também incluo o Ministério Público do Trabalho nesse dever de casa: prestar mais atenção para esse aspecto. É um trabalho prioritário para os próximos anos. Quando se fala nessa disparidade dos números se caracteriza uma discriminação, no mínimo, indireta. Ainda que não seja proposital, o fato é que o estado brasileiro está dando respostas muito diferentes para situações de exploração que são similares ou até piores. Quanto mais invisibilizada uma situação, maior tende a ser o grau de exploração”, finalizou a procuradora do Trabalho.

Assista abaixo a live completa do seminário no YouTube.


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Fonte: Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região

Data original da publicação 19/08/2022

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