Filmar o trabalho

Imagem: Reprodução

Por Embaúba Play

Uma legião de trabalhadoras e trabalhadores – da fábrica e do campo, da construção civil e da indústria têxtil, da mineração e da pedreira, dos transportes e da internet, do lar e do sexo – surgem nesta pequena coleção de filmes que propõem olhares sobre o trabalho, em abordagens diversas, desde o registro direto até a ficção experimental. Todos os filmes são atravessados por questões caras para pensar o nosso tempo: o fim do emprego, o que resta da luta de classes, a falta de dinheiro e perspectiva, a fome e o amor, o conflito entre o desejo e a obrigação, a captura do lazer e da saúde pelo capital, pois “o trabalhador necessita de exercício para os músculos que não são solicitados na sua tarefa diária” (Arte e jogos em Fortaleza).

Pensar o trabalho é tarefa urgente hoje, quando alguns já anunciam seu fim, ou ao menos o fim dos modos de trabalho tais quais os conhecemos desde a revolução industrial. Em tempos de empreendedorismo, uma carteira assinada torna-se artigo de luxo, junto às garantias e direitos dos trabalhadores. Refletir sobre essa transformação e o que dela resulta exige olhar criticamente para as profundas contradições de nosso tempo, tarefa que cada um dos filmes do programa enfrenta, à sua maneira. Dentre os lançamentos, há humor (Eu, empresa), há terror (A máquina infernal), há aposta no trabalho de fabulação dos próprios personagens e da câmera com eles (Mascarados, Japão).

Os quatro filmes inéditos na plataforma chegam acompanhados de outros já em catálogo. Filmes podem ser como entidades: crescem, quando se encontram. Assim, sugerimos assistir Mascarados e rever Arábia, por exemplo, para identificar, em ambos, não apenas nomes comuns na equipe, mas uma genuína militância contra a mortificação dos corpos pelo trabalho, movimentos em busca de alguma libertação, pela via do desejo. Também pode ser interessante comparar os papéis vividos por Aristides de Sousa, o Juninho, nesses dois filme e em Eu, empresa: o operário de outrora reaparece como um YouTuber famoso, cujo canal alcança fama com suas críticas à exploração da mão de obra por lojas chiques e restaurantes caros. Nas mutações do ator, de personagem em personagem, surge uma espécie de síntese do que assombra o trabalho, quando o capitalismo avança em sua versão ultra-liberal, que faz do antigo operário um empreendedor de si mesmo.

Em algumas obras, é a morte que ronda: o terror de A máquina infernal se expande e concretiza nos sombrios túneis de Japão e nas histórias também terríveis, registradas diretamente, em Ameaçados. Ao lado dos vivos, o cinema mantém pacto com os fantasmas. Aqui, trata-se de uma fantasmagoria própria de um sistema opressor, que insiste em excluir aqueles que mantém sua máquina em funcionamento. Diante de tamanha violência real, concreta, própria e tristemente brasileiras, restaria lugar para um pensamento como o que inspira Pão e Vida, baseado num texto escrito por Brecht há mais de 100 anos? Como articular contextos tão distintos – a Alemanha do século XX, o Brasil do século XXI – em um só gesto de cinema? São questões que ganham contornos mais complexos, quando pensamos as obras comparativamente.

Destacamos ainda um conjunto de filmes protagonizados por trabalhadoras: muitas confinadas em trabalhos do lar (Doméstica, Como se fosse da família) ou em ofícios distantes do universo do lar e da família, vivido nas ruas, a trocadora de Estado itinerante, as prostitutas da Rua Guaicurus. E se compararmos Vitória e Depois da chuva, dois filmes de trabalhadoras da indústria têxtil, com seus headphones para abafar o ruído das máquinas, vemos possíveis saídas para os impasses da mais valia – o chamado para resistência coletiva de Vitória contrasta fortemente com o exercício de reinvenção individual da protagonista de Depois da chuva.

Fica nosso convite para maratonar todos os filmes e reconhecer, com disposição e olhar atento, suas variadas e múltiplas ressonâncias.

Veja aqui a programação completa.

lançamentos:
Eu, empresa (Marcus Curvelo e Leon Sampaio, 2021, 92min)
A máquina infernal (Francis Vogner dos Reis, 2021, 30min)
Japão (Henrique Borela, 2022, 20min)
Mascarados (Marcela Borela e Henrique Borela, 2020, 66min)

em catálogo:
Arábia (Affonso Uchoa, João Dumans, 2017, 96min)
Arte e jogos em Fortaleza (Luisa Marques, 2019, 10 min)
Ameaçados (Júlia Mariano, 2014, 22min)
Carregador 1118 (Eduardo Consonni, Rodrigo T. Marques, 2015, 64min)
Pão e gente (Renan Rovida, 2020, 60 min)
Rua Guaicurus (João Borges, 2019, 75min)
Estado itinerante (Ana Carolina Soares, 2016, 27min)
Doméstica (Gabriel Mascaro, 2013, 75min)
Como se fosse da família (Alice Riff, Luciano Onça, 2013, 13 min)
Vitória (Ricardo Alves Junior, 2020, 14 min)
Depois da chuva (Cavi Borges, 2017, 17min)

Fonte: Embaúba Play

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