Hostilidade na linha de frente

Imagem: Unsplash

Por Victor Hugo Viegas Silva | Passa Palavra

“Esta pandemia tem exacerbado problemas estruturais do estado”, me diz Gabriela Lotta, professora da FGV e especialista em profissionais da linha de frente. “Quase 1/3 dos profissionais alegaram estar sofrendo assédio moral durante a pandemia”. O desespero é uma situação comum para esses profissionais no Brasil — que piora com a precariedade de vínculos, equipamentos e condições. O Brasil concentra o triste recorde de maior número de mortes de enfermeiros do mundo durante a epidemia de covid-19 — mais de 190 enfermeiros mortos — 2,44% de letalidade, uma média de uma morte por dia.

Quero falar dos impactos que essa estigmatização e a hostilização tem na vida dessas pessoas — e, portanto, nas vidas de todos nós.

“Aqui não tem pandemia” — hostilidade, invisibilização e negacionismo

Uma das manifestações da precariedade intensificada durante a pandemia é a hostilização dos trabalhadores da saúde. Fernando*, por exemplo, é médico generalista, 27 anos, trabalha há 3 anos na atenção básica e há 1 ano na Saúde da Família. “Gosto de trabalhar com saúde pública e não pretendo mudar de área”, me explica Fernando. O orgulho de trabalhar com saúde pública não o impede de tomar certos cuidados. Ele estaciona longe do Posto de Saúde da Família (PSF) para não exibir o adesivo de que trabalha no Hospital de Campanha. “Prefiro evitar o stress”, ele explica, “se o pessoal ver que eu trabalho com covid vai começar a ter o assédio”.

Como assim? As pessoas têm medo? Fernando me explica que existe o medo normal. “Mesmo com EPI, as pessoas tem medo de pegar a doença. Muito medo”. Mas não é disso que se trata. O assédio de que ele está falando é a estigmatização.

“Os colegas começam a ficar vigiando você, para ver se você tem sintomas, quando você trabalha com covid”. As ações de “cuidado” vão de tentar restringir a participação nos espaços coletivos até ficar espreitando o comportamento e as comunicações. Quando alguém acha que viu alguma coisa, espalham o boato. “Falam, por exemplo, que te viram tossindo. E ficam falando, falando, até a chefia te exigir um teste. Mesmo que você não apresente os sintomas. Você acaba tendo de gastar um teste sem os requerimentos que você mesmo aplica nos pacientes para fazer. Então eu prefiro evitar o desgaste”.

Perguntada se os profissionais da linha de frente são mesmo alvo de discriminação, Gabriela concorda: “nas nossas pesquisas com profissionais da saúde estamos recebendo vários relatos de profissionais que estão sendo hostilizados nas ruas e nos seus trabalhos por causa do medo da população ser infectada por eles. Isso certamente tem impacto nestes profissionais, tanto na sua proteção física como em sua saúde mental”.

Outro desses profissionais é o médico dentista e socorrista Frederico*. Ele trabalhava com crianças carentes vítimas de covid-19 em Marabá, Pará. Estava com cabelos grandes por não ter conseguido cortar enquanto trabalhava durante o lockdown. A “irmã” da igreja da mãe ficou sabendo que ele não estava bem de saúde no trabalho e, quando ele foi visitá-la em Goiânia, espalhou o boato: a mãe tinha sido vista tossindo. Resultado: o síndico do prédio, bolsonarista, que costuma ficar na portaria sem máscara com alguns amigos — exigiu que o profissional ficasse isolado por 14 dias com sua mãe. Ele tinha o teste com negativo da doença. Tentou esclarecer. Resultado: foi agredido. Fisicamente. E xingado por ser homoafetivo.

Desde então não trabalhou como socorrista no Hospital de Campanha em São Paulo, pelo trauma e pelos problemas legais decorrentes. Ele relata que tem encontrado dificuldades de dormir, de retomar suas atividades. E que sente que foi agredido por ter feito seu trabalho com pessoas que precisavam e, mesmo tendo todos os cuidados necessários, sente que aproveitaram da pandemia para destilar outros preconceitos. E que as pessoas que o fizeram nem sequer tomam cuidados reais. Quando fui perguntar ao síndico a versão dele, ele me disse que não queria dar declarações, além de “aqui no condomínio não teve pandemia, nenhum caso, só teve uma suspeita que foi devidamente tratada”. O síndico e o médico dentista fizeram boletins de ocorrência um contra o outro e esperam a audiência de conciliação.

Frederico, o médico agredido por ser suspeito e por ajudar pessoas suspeitas, não pretende conciliar: “fui agredido injustamente e pretendo buscar meus direitos e reparação”.

Gabriela Lotta explica que “ao serem hostilizados nas ruas ou em seus locais de trabalho, isso torna a sobrecarga ainda mais difícil e pesada de lidar”. Incapacita uns e aumenta o trabalho para os outros. No caso de Frederico, tornou-se uma ausência que sobrecarregou ainda mais os colegas.

Gabriela explica como essa degradação vai inviabilizando o trabalho de enfrentamento da doença: “imagina sair de um dia exaustivo de trabalho, cheio de medo, de tristeza pela pandemia, e ainda ser agredido e hostilizado? E isso é mais grave ainda com aqueles profissionais que residem no mesmo território onde trabalham, como é o caso dos agentes comunitários de saúde. Vários deles têm nos reportado situações de hostilidade em sua vizinhança”.

Sandra, Agente Comunitária de Saúde de uma UBS de Diadema, que trabalha há 35 anos na comunidade, fala que as agentes estão com medo de tudo. As famílias a conhecem muito bem. E ela percebe uma tristeza, uma aflição e até mesmo uma preocupação inédita das famílias com os agentes.

Josânia, agente comunitária há dez anos da mesma UBS, ama o trabalho. “Mesmo com o medo e nossas angústias, temos de ser fortes e passar isso ao nosso paciente”. Ela conta que antes da pandemia “eu podia entrar na casa dos meus pacientes, tomava um café com eles, olhava em seus olhos, ouvia suas angústias, dores e os confortava”. Agora, com a internet, ficou mais difícil, mas não é tanta novidade: “eu sempre fiz uso da internet para ficar mais próxima dos meus pacientes. Tenho muitos pacientes no WhatsApp, Facebook e Instagram. Me ajuda muito, pois as dúvidas deles chegam mais rápido e posso respondê-los. Assim eles me procuram menos na minha casa”. (…)”

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Fonte: Passa Palavra

Data original da publicação: 22/07/2020

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