iFood quer entregadores gerando créditos de carbono em bicicletas e motos elétricas alugadas

Foto: iFood

Por Flávia Schiochet | O joio e o trigo

Bicicletas elétricas alugadas a R$ 95 por semana são a solução apresentada pelo iFood para diminuir a emissão de carbono; entregadores pagam aluguel, boa parte da manutenção e precisam fazer intervalos de duas a quatro horas para recarregar

Para alcançar os objetivos que definiu a si próprio, o iFood tenta descarbonizar sua operação, mas o “agente da descarbonização” é o entregador. Um dos passos dados em direção à imagem de uma empresa sustentável social e ambientalmente é fazer com que os entregadores da plataforma optem por usar modais limpos, o que valeria à startup uma certificação de diminuição na emissão de CO2, gerando créditos de carbono. 

Segundo as informações oficiais, a meta é neutralizar em 100% as emissões de carbono nas entregas e atingir mais de 50% das entregas próprias feitas em modais não poluentes até 2025. O primeiro objetivo é concretizado desde 2021, quando o iFood começou a antecipar a compra de créditos de carbono para neutralizar as emissões anuais. O segundo está em construção desde aquele ano, quando o iFood lançou o iFood Pedal, um programa em parceria com a startup tembici para fornecer aluguel de bicicletas elétricas e mecânicas para os entregadores.

Atualmente, a plataforma tem 250 mil entregadores cadastrados e faz uma média mensal de 75 milhões de entregas. Em abril de 2024, as entregas por modais limpos com o programa iFood Pedal (motocicletas e bicicletas elétricas e bicicletas mecânicas) eram de 1 milhão, ou seja, 1,33% do total, feitas por 5 mil entregadores ativos mensalmente em seis cidades do Brasil – São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Porto Alegre e Brasília. 

Os dados foram passados por André Borges, diretor de sustentabilidade, em entrevista ao Joio. No Relatório de Sustentabilidade da empresa, afirmam que 22% dos pedidos do iFood em 2022 foram entregues por modais não poluentes em todo o Brasil, o que equivaleria a 10 milhões de pedidos, da qual boa parte de bicicletas mecânicas. 

Submetido há um ano para validação pela certificadora estadunidense Verra, o projeto “Ifood Cleaner Delivery Transportation Modes Grouped Project” pretende certificar as entregas feitas por entregadores que trocarem a motocicleta a combustível por motocicletas elétricas, bicicletas elétricas ou bicicletas mecânicas. A Eqao, empresa responsável pela elaboração do documento enviado à Verra, retornou o pedido de entrevista do Joio afirmando ser “necessário entrar em contato diretamente com a iFood para tratar sobre o assunto”.

“O conceito de adicionalidade empregado no projeto não está de acordo com a definição de adicionalidade do regimento internacional. Internacionalmente, a adicionalidade diz respeito a um nível projetado de emissões a partir de uma linha de base”, observa Tatiana Oliveira, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). 

Adicionalidade é um conceito-chave dos mercados de carbono: significa que uma determinada remoção de carbono não teria ocorrido sem o incentivo criado pela existência de um projeto. “No caso do projeto do iFood, eles relacionam adicionalidade ao adensamento da infraestrutura de aluguel de bicicletas e imaginando que haverá uma adesão do uso de veículos elétricos pelos entregadores no Brasil. Não necessariamente isso vai levar a uma maior redução de emissões, ou seja, não é uma adicionalidade.”.

Os projetos, segundo André Borges, visam obter a certificação para repassar o valor do crédito de carbono gerado ao entregador – porém, no documento submetido à Verra, não há nenhuma informação sobre o repasse, apenas sobre a geração de créditos de carbono e como esses valores seriam reinvestidos para ampliação de infraestrutura e aumento de disponibilidade de modais elétricos. 

“O entregador é um tomador de decisão, e a decisão dessa migração é dele, ele é o agente de descarbonização. A visão é colocar o entregador no centro disso: se ele é o agente de descarbonização, então os benefícios devem ser direcionados a ele”, defende Borges. 

A previsão é deixar de emitir 174 mil toneladas de gás carbônico em dez anos. É quase o mesmo volume emitido pelo iFood em um único ano – em 2022, a estimativa apresentada pelo iFood em seu relatório de sustentabilidade foi de 173,8 mil toneladas, um montante que foi compensado através da compra de crédito de carbono. Considerando que o valor do CBIO (crédito de descarbonização comercializado por instituições financeiras que equivale a uma tonelada de carbono) valia entre R$ 100 e R$ 115, o iFood provavelmente desembolsou no mínimo R$ 17 milhões em créditos de carbono em 2022. 

“Os valores apresentados no projeto enviado para a Verra são baixos, principalmente porque se referem ao coletivo de cidades onde foi implantado. Transporte não é um setor que contribui muito para a mudança do clima, particularmente, no caso brasileiro, em que o perfil de emissões se concentra na mudança do uso da terra e agricultura”, pontua Tatiana. “Isso não significa que não se deva fazer nada a respeito do transporte, apenas que o impacto tende a ser menor para o resultado global ou país de redução de emissões”, completa.

Segundo o Relatório de Sustentabilidade do iFood de 2022/23, a estimativa de emissão de carbono por entrega é uma média de 248 gramas de CO2. O valor é calculado a partir do Protocolo GHG, criado pelo instituto de pesquisa World Resource Institute (WRI) e pela consultora World Business Council for Sustainable Development (WBCSD) no final dos anos 1990. É a metodologia padrão adotada por atores públicos e privados para calcular as emissões de gases de efeito estufa de uma organização ou empresa. É em cima desses valores de não emissão que os entregadores receberiam. A grosso modo, usando o valor de R$ 100 o crédito de carbono, a cada entrega o trabalhador receberia pouco mais de dois centavos. Seriam necessárias quase 50 viagens para o entregador receber R$ 1 por créditos de carbono gerados. 

Questionado se o valor de compensação por entrega seria considerado um incentivo suficiente para os entregadores, o iFood respondeu: “Para o iFood, créditos de carbono não são o único e nem incentivo suficiente para a migração de modal. Por exemplo, entregadores reduzindo os custos com combustíveis, menor exposição ao ruído e vibração do motor, segundo os depoimentos dos próprios entregadores, acarretam melhor qualidade de vida”.

“A métrica do carbono não considera o problema na sua complexidade, despolitiza o debate climático, oculta as causas e as diversas desigualdades de classe, gênero, raça”, analisa Fabrina Furtado, professora de Ecologia Política Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA-UFRRJ).

Iniciativas como essa são do tipo voluntária, ou seja, feita por atores que não são obrigados legalmente a mitigar suas emissões de carbono, segundo o Protocolo de Quioto e o Acordo de Paris. “As reduções dos projetos voluntários também entram na contabilidade do Estado, e isso tem causado muitos problemas da chamada dupla contagem. A empresa ganha sem fazer praticamente nada. Ganha mercado, mas também a manutenção de um sistema de valores que influencia mentalidades e imaginários, e exclui do imaginário coletivo outras possibilidades, inclusive de direitos”, diz Fabrina.

Apesar de ser uma conduta bem avaliada pela motivação ambiental, a maneira com que o iFood a promove coloca no colo dos entregadores a responsabilidade. “O benefício de ficar com uma boa imagem é da empresa, mas o custo fica para o elo mais fraco da cadeia”, analisa o sociólogo e geógrafo Guilherme Vieira Dias, professor da Universidade Federal Fluminense. “Mas querer trabalhar questões socioambientais do ponto de vista estritamente econômico limita a discussão e deixa vários problemas de fora”, completa Dias.

Remuneração potencial dos entregadores de acordo com valores atuais da tonelada de carbono
R$ 0,024 por entrega
R$ 1 a cada 42 viagens

No projeto, constam as motocicletas elétricas da Voltz, que seriam vendidas com desconto para entregadores, como outra ação para aumentar a opção de modais limpos. A parceria não deu certo, segundo consta no relatório. “O projeto com a Voltz não progrediu como a gente queria. Agora temos parceiros que alugam motocicletas elétricas”, diz André Borges, diretor de sustentabilidade do iFood. 

Em São Paulo, são mais de 800 motos elétricas alugadas a partir de R$ 240 por semana pela Vammo e Riba. Há também uma frota para aluguel em Maringá pelo Riba, e em Brasília pela Origem Motos. “As bicicletas e motocicletas elétricas são um modal novo no Brasil. Ainda não tem infraestrutura instalada, mas no aluguel de motocicletas tem planos de troca ilimitada de bateria”, completa Borges. 

As baterias de íon de lítio, usadas nas bicicletas e motocicletas elétricas, são outro problema ambiental: segundo levantamento da Agência Internacional de Energia, a produção de lítio aumentou 180% desde 2017 em decorrência da produção de baterias elétricas. Em 2021 a demanda global foi maior que a oferta, e em 2022, cerca de 60% da procura de lítio foi para baterias, junto de outros minerais como cobalto (30%) e níquel (10%). O descarte, reuso e reciclagem ainda estão incertos. “Não se está resolvendo o problema ambiental com os créditos de carbono. Só está se deslocando o problema para outro lugar”, diz Fabrina.

O iFood não revela quanto investiu no iFood Pedal desde 2021, nem em outros programas como as parcerias com o aluguel de motocicletas elétricas, ainda sem nome. Tampouco abrem o valor investido em créditos de carbono para neutralizar suas emissões desde 2021.  

Não há prazo para a análise da Verra ser concluída, mas o iFood afirma que há um projeto de mesma natureza submetido a uma outra certificadora – que “está sob sigilo por questões contratuais”. Não há previsão para nenhuma das duas certificações serem aprovadas, mas isso não impede o Joio de levantar algumas questões sobre a proposta. Se aprovada, a startup afirma que a mesma premissa de pagamento por crédito de carbono para quem troque de modal seja ampliada para todo o Brasil.

Há várias questões a serem esmiuçadas nessa afirmação. A primeira é: como o entregador fará a migração de modal? A segunda é mais complexa. Até aqui, projetos de carbono em territórios coletivos para o setor de agricultura, florestas e uso do solo têm dado errado, no Brasil, em parte devido ao fato de que o pagamento por créditos, quando dividido entre dezenas ou centenas de pessoas, torna-se muito pequeno. No caso do iFood, com milhares de entregadores, é difícil imaginar uma remuneração que seja suficientemente estimulante, como mostram os cálculos que trouxemos acima.

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Por Flávia Schiochet | O joio e o trigo
Data original de publicação: 15/04/2024

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