Inteligência artificial promete produtividade e entrega burnout

Imagem: Brasil Escola - UOL / Reprodução

Pelo Intercept Brasil

Quando levei minha filha comigo para a Nova Zelândia no circuito de lançamento do meu livro, fiquei encantado ao descobrir que os supermercados tinham corredores especiais de onde todos os doces no nível dos olhos das crianças haviam sido removidos, para diminuir os pedidos insistentes. Que ideia incrível!

No mesmo sentido, países do mundo inteiro limitam a publicidade para crianças, por duas razões:

1) As crianças podem não ser estúpidas, mas são inexperientes, e isso as torna fáceis de enganar; e

2) As crianças não têm o próprio dinheiro, por isso o caminho para conseguirem as coisas é insistir com os pais, o que cria naturalmente um eleitorado disposto a apoiar os limites à publicidade para crianças (os pais incomodados).

É especialmente irritante quando a publicidade pretende convencer pessoas crédulas a coagirem ou atormentarem outras pessoas em prol do anunciante. Por exemplo, as empresas de inteligência artificial gastaram milhões para convencer seu chefe de que você pode ser substituído por um chatbot que, indiscutivelmente, não consegue de forma nenhuma fazer o seu trabalho.

Seu chefe não faz a menor ideia do que o seu trabalho requer, e está (não muito) secretamente convencido de que você é um parasita aproveitador que só aparece para trabalhar porque tem medo da linha da pobreza, não porque o seu trabalho é a) desafiador, ou b) recompensador.

“Seu chefe adoraria demitir você e colocar um chatbot no lugar.”

Isso os transforma nos principais alvos dos vendedores de IA que querem empurrar chatbots. Seu chefe adoraria demitir você e colocar um chatbot no lugar. Os chatbots não criam sindicatos, não questionam ordens idiotas, e não sentem nenhum dilema moral quando recebem ordens para “merdificar” o produto.

Os chefes são os marxistas do mundo bizarro. Como os marxistas, a visão de mundo do seu chefe está organizada em torno do princípio de que cada dólar de salário que você leva para casa é um dólar que deixa de estar disponível para pagar os bônus dos executivos, as recompras de ações, ou os dividendos. É por isso que o seu patrão está insaciável com a possibilidade de demitir você e substituir por software. O software é mais barato, e não pede aumento de salário.

Isso transforma o seu chefe em presa muito fácil para os vendedores de inteligência artificial, o que explica a enorme distância entre a valoração das empresas de IA e a utilidade da IA para os consumidores que compram os produtos dessas empresas. Como investidor, comprar ações do setor de IA pode representar uma aposta na utilidade da inteligência artificial. Mas para muitos desses investidores, apoiar uma empresa de IA é na verdade uma aposta na credulidade do seu chefe, e no desprezo dele por você e pelo seu trabalho.

Mas a semelhança entre chefes e crianças pequenas não se limita à credulidade. O caminho de uma criança para conseguir aquele chocolate à altura dos olhos passa por seus pais exaustos. O caminho do seu chefe para atingir os ganhos de produtividade prometidos por um vendedor de IA passa por você.

Um novo relatório de pesquisa do Instituto de Pesquisa Upwork oferece um panorama da bizarra situação que se desenrola nos locais de trabalho, onde os chefes foram enganados para comprar inteligência artificial e agora enfrentam o desafio de fazer que ela funcione como anunciado.

As conclusões do título contam a história inteira:

96% dos chefes esperam que a IA torne seus trabalhadores mais produtivos;
85% das empresas estão exigindo ou incentivando fortemente seus trabalhadores a usarem IA;
49% dos trabalhadores não fazem a menor ideia de como a IA deveria aumentar sua produtividade;
77% dos trabalhadores dizem que usar a IA diminui sua produtividade.

Trabalhar em um escritório equipado com IA é como ser um dos pais de uma criança pequena furiosa, que comprou um milhão de kits de Kikos Marinhos pelo anúncio em um gibi e agora está destruindo sua vida com a exigência de que você descubra como fazer as artêmias, que ele comprou de um conhecido negacionista do Holocausto, usarem pequenas coroas como no anúncio.

Chefes gastam muito tempo pensando na sua produtividade. O “paradoxo da produtividade” mostra um declínio rápido e persistente na produtividade dos trabalhadores americanos, que começou na década de 1970 e continua até hoje:

O “paradoxo” se refere ao crescimento da TI, que é vendida como um milagre do aumento de produtividade. Existem muitas teorias para explicar esse paradoxo. Uma delas, especialmente boa, foi criada pelo falecido David Graber (que descanse no poder), em um ensaio de 2012, chamado “Of Flying Cars and the Declining Rate of Profit” (Sobre carros voadores e o declínio da taxa de lucro).

Graeber propõe a teoria de que o crescimento da TI fez parte de uma mudança mais ampla nas abordagens de pesquisa. A pesquisa já foi dominada pelos esquisitos (por exemplo, Jack Parsons, Oppenheimer etc), que operavam com relativamente pouca burocracia. A ascensão da TI coincide com a ascensão do “gerencialismo”, o impulso estilo McKinsey de monitorar, quantificar, e, acima de tudo, disciplinar a força de trabalho. A TI facilitou a produção desses registros, o que também normalizou a expectativa de que eles existam.

Dali a pouco, todos os empregados, incluindo os “criativos” cujas ideias receberam crédito pelos ganhos de produtividade do século americano até a década de 1970, estavam desperdiçando um enorme volume de tempo (às vezes a maior parte do dia de trabalho) preenchendo formulários, documentando o trabalho, produzindo um relato legível das atividades do dia. Todos esses dados deram origem a uma categoria inflada de gerentes, que colonizaram todos os tipos de instituição, não apenas as empresas, mas também as universidades e os órgãos públicos, que foram estruturados para se assemelharem às empresas (a ponto de se referirem a eleitores ou alunos como “clientes”).

Mesmo que você ache que todo esse registro pode ser útil, não há como negar que quanto mais tempo você passa documentando seu trabalho, menos tempo você tem para fazer seu trabalho. A solução para isso foi, inevitavelmente, mais TI, vendida como forma de facilitar a manutenção dos registros. Mas acrescentar TI a uma burocracia é como acrescentar faixas a uma rodovia: quando mais fácil for exigir registros detalhados, mais registros serão exigidos de você.

Mas não é só isso que a TI causou nos locais de trabalho. Existem áreas em que a TI definitivamente aumentou a lucratividade das empresas que investiram nela.

Em primeiro lugar, permitiu que as empresas terceirizassem a produção para países com baixa remuneração no sul global, normalmente em lugares com menos proteção trabalhista, legislação ambiental mais fraca e órgãos reguladores fáceis de corromper. É muito difícil produzir coisas em fábricar a milhares de quilômetros de distância, ou supervisionar trabalhadores em outro país. Mas a TI permite eliminar a distância, as diferenças de fuso horário, e as barreiras de idioma. As empresas que descobriram como usar a TI para demitir trabalhadores locais e explorar trabalhadores e destruir o meio ambiente em terras distantes prosperaram. Os executivos que supervisionaram esses projetos subiram na hierarquia. Tim Cook, por exemplo, tornou-se CEO da Apple graças ao seu sucesso na transferência da produção dos EUA para a China.

A terceirização foi uma onda que compensou o declínio da produtividade… por um tempo. Mas, em algum momento, todos os ganhos que podiam ser obtidos da terceirização foram realizados, e as empresas precisavam de uma nova fonte de lucros baratos. Foi aí que entrou o “bossware”, mistura de “boss” (chefe, em inglês) e software: a automação do controle e da disciplina da força de trabalho. O bossware permitiu monitorar os trabalhadores no mais alto nível de precisão, medindo desde os toques nas teclas até a movimentação do globo ocular.

Além disso, o bossware passou a ser usado para vincular o salário às métricas, graças ao declínio do poder do trabalhador americano, um belo bônus do projeto de demitir hordas de trabalhadores e remeter seus empregos para o exterior, deixando os remanescentes aterrorizados com a possibilidade de perder os próprios empregos, e por isso dispostos a engolir qualquer sapo e pedir para repetir. Não são apenas os trabalhadores de aplicativo que não recebem consistentemente cinco estrelas dos usuários que perdem remuneração — são também os trabalhadores criativos cujos salários no YouTube e no TikTok são cortados por violar regras que eles nem são autorizados a conhecer, porque isso pode permitir que eles violem as regras sem serem detectados e punidos.

O bossware dominou os locais de trabalho, das escolas públicas aos hospitais, restaurantes e call centers, e chega até sua casa e seu carro, se você trabalha de casa (ou melhor, “mora no trabalho”) ou dirige para a Uber ou a Amazon.

Ao oferecer uma desculpa para roubar salários, a TI pode aumentar os lucros, mesmo que reduza a produtividade.

Uma forma de pensar sobre o funcionamento disso é por meio de uma metáfora da teoria da automação, o “centauro” e o “centauro invertido”. Nos círculos da automação, um “centauro” é uma pessoa auxiliada por uma ferramenta de automação — por exemplo, quando seu chefe usa inteligência artificial para monitorar os seus olhos e encontrar desculpas para roubar seu salário, ele é um centauro, uma cabeça humana sobre um corpo de máquina que faz todo o trabalho pesado, muito além da capacidade de qualquer ser humano.

Um “centauro invertido” é um trabalhador que serve de assistente para um sistema de automação. O trabalhador que é cavalgado por uma inteligência artificial que monitora seus olhos, suas pausas para ir ao banheiro e seus toques no teclado é um centauro invertido, sendo usado (e, em algum momento, esgotado) por uma máquina para realizar as tarefas que a máquina não pode realizar sem ajuda.

Mas há um limite para quanto trabalho é possível extrair de um ser humano dessa forma, antes que ele fique inutilizado para o trabalho. Uma pesquisa interna da Amazon revela que a empresa já calculou que esgota seus trabalhadores tão rapidamente que corre o risco de consumir toda a mão-de-obra saudável da América.

O que explica as outras principais conclusões do estudo de Upwork:

81% dos chefes aumentaram as exigências sobre os trabalhadores no ano passando; e
71% dos trabalhadores estão “esgotados”.

A resposta dos chefes à informação de que “a inteligência artificial está deixando os trabalhadores esgotados” é a mesma que dão para “o preenchimento de formulários exigido pela TI deixa os trabalhadores improdutivos”: continue fazendo a mesma coisa, mas dobre a aposta. A Cisco tem um novo produto que procura detectar quando os trabalhadores estão prestes a sair do eixo depois de absorver agressões de consumidores furiosos, e então dar a eles um momento “zen”, que mostra uma foto “calmante” de sua família,

Essa é apenas a mais recentes de uma série de tecnologias de “bem-estar no trabalho” cada vez mais desgastante e cruéis, que espionam os trabalhadores e tentam ajudá-los a “administrar o stress”, e todas têm o efeito (totalmente previsível) de aumentar o stress no trabalho.

A única pessoa que não poderia prever que ser monitorado de perto por uma inteligência artificial que delata você para o seu chefe poderia aumentar seus níveis de stress é o seu próprio chefe. Infelizmente para você, os vendedores de IA também sabem disso, e ficam bem felizes de vender ao seu chefe a ferramenta de automação de centauro invertido que faz você querer morrer, e depois vender outra ferramenta de automação que deveria resgatar a sua vontade de viver.

“A IA é apenas a geringonça sucessora ao final de 40 anos de aumento dos lucros às custas do couro dos trabalhadores, não de maior eficiência.”

A IA é apenas a geringonça sucessora ao final de 40 anos de aumento dos lucros às custas do couro dos trabalhadores, não de maior eficiência.

O “paradoxo da produtividade” está sendo resolvido bem diante dos nossos olhos. A produtividade por trabalhador caiu nos EUA porque era mais lucrativo transferir os empregos americanos para zonas regulatórias sem lei, e aproveitar a precariedade resultante para explorar os trabalhadores que permaneceram. Aqueles que reclamaram desse ajuste foram repreendidos por terem uma “ética de trabalho” de merda — embora o número de horas de trabalho do trabalhador americano médio tenha aumentado 13% entre 1976 e 2016.

A IA é apenas a geringonça sucessora ao final de 40 anos de aumento dos lucros às custas do couro dos trabalhadores, não de maior eficiência. Esse arranjo não saiu do nada: foi o resultado direto de uma teoria de poder corporativo da era Reagan, chamada de “bem-estar do consumidor”. Pela abordagem de “bem-estar do consumidor” na proteção à concorrência, os monopólios seriam estimulados, desde que usassem seu poder de mercado para reduzir salários e prejudicar fornecedores, ao mesmo tempo em que reduziam os custos para os consumidores.

A ideia do “bem-estar do consumidor” presumia que poderíamos de alguma forma separar nossas identidades como “trabalhadores” de nossas identidades de “compradores” — que a estagnação dos nossos salários e a piora das condições de trabalho deixariam de importar depois de batermos o ponto às 17h (ou, sabemos, 21h), ao comprarmos uma McOferta baratinha no McDonald’s, que só poderia ter um preço tão baixo porque era preparada por alguém que dormia no carro e dependia de auxílio do governo.

Mas estamos chegando aos últimos suspiros do bem-estar do consumidor. Claro, seu chefe pirracento pode ser enganado para comprar inteligência artificial e demitir metade dos seus colegas de trabalho, e exigir que o restante use a inteligência artificial para fazer o trabalho. Mas se a inteligência artificial não pode fazer o trabalho deles (e não pode), nenhuma exigência de que você descubra como fazer os Kikos Marinhos se comportarem como no anúncio de gibi vai fazer isso acontecer.

À medida que passa a haver cada vez menos lucros na exploração de trabalhadores e fornecedores, as empresas estão se voltando cada vez mais para os consumidores. Não apenas você está recebendo um serviço pior de chatbots, ou de seres humanos que estão inseridos no fluxo de trabalho como centauros invertidos. Você também está pagando mais por isso, pois a precificação por vigilância algorítmica usa automação para extorquir você nos preços em tempo real.

Na memorável frase de David Dayen e Lidnsay Owens, esta é a “era da recuperação“, em que as empresas estão encerrando a prática de dividir com os consumidores os ganhos da supressão da mão-de-obra.

É uma aposta de que a tolerância aos monopólios tornou essas empresas grandes demais para quebrar, e isso significa que elas são grandes demais para irem para a cadeia, e por isso podem enganar seus consumidores, além dos trabalhadores.

A inteligência artificial é uma aposta de que o seu chefe pode ser enrolado para comprar um chatbot que não consegue fazer o seu trabalho, mas os investidores estão se arrependendo dessa aposta. O Goldman Sachs, que chegou a alardear a IA como um setor multitrilionário de crescimento ilimitado, agora publica relatórios mostrando como as empresas que podem comprar IA não sabem o que fazer com isso.

Tudo bem, é esperado que bancos de investimento sejam um pouco conservadores. Mas empresas de investimento em capital de risco? São elas que têm apetite de risco, não é isso? Sim, talvez, mas a Sequoia Capital, uma das principais empresas de capital de risco do Vale do Silício, também está questionando publicamente se alguém conseguirá fazer os investimentos em IA serem recompensados.

É difícil explicar como foi bom levar minha filha a um supermercado onde todos os doces ao nível dos olhos foram removidos do caixa. Infelizmente, também é difícil descobrir como impedir os executivos pirracentos de ficarem deslumbrados pelo reluzente discurso de vendas da inteligência artificial, que nos deixa atrelados às consequências de suas compras de impulso.

Fonte: Intercept Brasil

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Data original de publicação: 16 de agosto de 2024.

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