Livro DELIVERY FIGHT – A luta contra os patrões sem rosto | Apresentação da Edição Brasileira

Imagem: Segundo breque dos apps em São Paulo| Foto: Roberto Parizotti/FotosPublicas

Por Leo Vinicius Liberato | Blog da Editora Veneta

“Enquanto lia Delivery Fight não pude deixar de recordar o já clássico Greve na Fábrica, de Robert Linhart. Com seus pontos comuns e diferenças, o livro de Callum Cant faz parte desse mesmo gênero de literatura, infelizmente não numeroso, em que a experiência do trabalho, as formas de controle e a construção das lutas são apresentadas pelo olhar de um trabalhador

Robert Linhart era um jovem militante e intelectual que se inseriu como operário numa fábrica da Citroën na França no final dos anos 1960. Seu objetivo era fomentar a luta e organização dos operários daquela fábrica. Callum Cant, diferentemente, foi fazer entregas pela Deliveroo sem o objetivo militante, apesar de ser um militante e de ter sido ativo na organização da greve dos entregadores em Brighton, no período em que trabalhou para a Deliveroo. O objetivo dele ao se cadastrar no aplicativo era ter mais uma fonte de renda.

Apesar de o livro de Linhart ser magnífico para se estudar algumas áreas do conhecimento, como a ergonomia, a sociologia e psicologia do trabalho, será no livro de Callum Cant que encontraremos uma preocupação em analisar a organização do trabalho, a composição dos trabalhadores e as lutas deles. Mas deixemos as comparações de lado. O motivo de Greve na Fábrica ter aparecido neste Prefácio é servir como referência para situarmos historicamente a experiência relatada e analisada em Delivery Fight ao longo dos últimos setenta anos de luta de classes.

DO FORDISMO À FÁBRICA DIFUSA

O cenário apresentado por Robert Linhart foi emblemático do último grande ciclo mundial de lutas da classe trabalhadora, situado nas décadas de 1960 e 1970 1. A maior greve geral mundial até então, ocorrida de forma selvagem em maio de 1968 na França, mostrava que o chão das grandes fábricas era ainda local privilegiado de luta e rebeldia da classe trabalhadora. No ano seguinte, na Itália, no que ficou conhecido como “outono quente”, ocorreu uma das mais intensas mobilizações de trabalhadores da história, com mais de 300 milhões de horas de trabalho perdidas por greves, das quais 230 milhões foram nas indústrias 2. Costuma-se dizer que o “Maio de 68” italiano durou uma década, pois as lutas se estenderam com incrível intensidade até a segunda metade da década de 1970. O caráter espontâneo, por fora dos sindicatos, das contínuas lutas de fábrica fizeram as grandes plantas da Fiat, tidas como termômetros da luta de classes naquele país há décadas, serem consideradas ingovernáveis por volta de 1974. Para além das greves selvagens e da intimidação a supervisores, as faltas ao trabalho chegaram a 28% em certas semanas 3.

Essa tentativa de fuga da subordinação do trabalho expressa na rebeldia e nas formas de luta operárias levou o capital a fugir dessa insubordinação. Na Itália, ainda nos anos 1970, a resposta dada à insubordinação operária foi a reestruturação produtiva, com a automatização, a terceirização e a descentralização do processo produtivo, além do aumento do setor informal da economia 4. Cabe ressaltar que a maior planta da Fiat, em Mirafiori, concentrava 63 mil operários no final dos anos 1960, sendo a maior fábrica do mundo. Esse processo de reorganização e dispersão da produção foi uma resposta global dos capitalistas àquele ciclo de lutas da classe trabalhadora. A intensidade daquelas lutas havia posto em xeque o fordismo como forma de controle e organização do trabalho.

Intelectuais italianos envolvidos nas lutas daquelas décadas passaram a denominar de fábrica difusa essa dispersão e terceirização da produção, que a espraiava pelo território da cidade, retirando a centralidade das grandes fábricas. Na expressão de Antonio Negri, a cidade passaria a ser produtiva como antes era a terra trabalhada 5. Se o livro de Linhart ilustrava perfeitamente o cenário daquele ciclo de lutas, Callum Cant nos traz uma ilustração equivalente da experiência de trabalho e de lutas nessa fábrica difusa pós-fordista. Os entregadores de aplicativos são hoje uma das expressões mais notáveis das tendências que se desencadearam como resposta à crise do fordismo gerada pela insubordinação da classe trabalhadora. A ampliação do setor informal (ou a exploração direta da informalidade), a expansão da relação de serviço, a terceirização, a produção se confundindo com o próprio território da cidade, o desmanche da proteção trabalhista e social, a fuga por parte das empresas da própria relação de trabalho buscando transformar os trabalhadores em consumidores do seu serviço. Todas essas características da reestruturação produtiva pós-fordista são vividas pelos entregadores de aplicativos.

MULTICULTURALISMO E LUTA DE CLASSES

Apesar de ambientado na Inglaterra, o livro de Callum Cant toca diretamente ao leitor brasileiro não apenas pelo fato de a organização do trabalho imposta aos entregadores de aplicativos ser muito parecida na Inglaterra e no Brasil. Como o leitor terá oportunidade de verificar através das palavras do autor, os imigrantes brasileiros eram particularmente conhecedores de táticas de greve, tendo disparado as greves em Brighton (2016) e desempenhado papel importante na consolidação da greve em Londres (2018). Isso em si talvez marque uma diferença da composição dessa força de trabalho na Europa e no Brasil. Lá, uma grande parte dos entregadores de aplicativos são imigrantes vindos de outros países, frequentemente não legalizados. A participação de imigrantes nessa força de trabalho tem aumentado à medida que os rendimentos baixam e os estudantes locais se retiram da atividade.

O esforço relatado por Callum Cant para ultrapassar a barreira linguística que separava entregadores de diversas nacionalidades nos remete ao tema do multiculturalismo na luta de classes. Na fábrica em que Robert Linhart trabalhou na França, como fica bastante nítido através de seu relato, os patrões se aproveitavam de uma força de trabalho multicultural, formada em grande parte por imigrantes, de modo a melhor manter os trabalhadores separados e sem unidade coletiva. Além das diferenças de língua, as identidades étnicas, religiosas, algumas das quais com rixas históricas, eram usadas pelo comando e controle capitalista. A greve naquela fábrica da Citroën foi possível porque a barreira das diferenças de origem e de identidade foi sendo superada pela condição operária compartilhada no local de trabalho. Na fábrica difusa, em que a produção se espalha pela cidade e pelo tempo de vida, as classes capitalistas continuam contando com as diferenças e rixas identitárias para que a força de trabalho não se constitua como coletividade em luta.

Programas políticos e a política eleitoral também podem se constituir como força de fragmentação dos trabalhadores. Os motoboys brasileiros que estavam na vanguarda das greves relatadas por Callum Cant simpatizavam com Jair Bolsonaro e compartilhavam conteúdos dessa nova direita nos grupos de WhatsApp dos entregadores brasileiros. Contradições à parte, o fato é que eles constituíram uma prática de antagonismo direto ao capital, lutando contra a exploração a que eram submetidos pelas empresas de entrega por aplicativos. No Brasil, durante a mobilização para as paralisações nacionais dos entregadores dos dias 1º e 25 de julho de 2020 – o Breque dos Apps –, a classe pôde se constituir porque deixou de lado as preferências partidárias e eleitorais individuais. A comunidade emergia da experiência comum do trabalho e sabiamente não se falava de política nos grupos de WhatsApp de organização e divulgação do Breque. A organização e mobilização da categoria constituía uma política contra a exploração, sem dúvida. Tratava-se de uma política implícita nas práticas de mobilização e luta dos entregadores, o que era diferente de identidades políticas que evidenciadas em programas e preferências partidárias e eleitorais.

Foi a política nesse sentido identitário 6, com potencial de fragmentar os trabalhadores, que veículos e pessoas de esquerda acabaram reforçando ao concederem enorme destaque e sobrevalorizarem a importância do grupo Entregadores Antifascistas. Introduzindo um elemento de identidade política, o “antifascismo”, eles introduziram um elemento de tensão e divisão. Não por algum entregador se considerar fascista, evidentemente. Mas por trazer algo externo à experiência comum de trabalho, o único elemento capaz de ser imediatamente compreendido por todos e de unificar e constituir a classe.

O BREQUE DOS APPS E O FANTASMA DA AUTONOMIA OPERÁRIA

Como disse antes, havia sim um programa político implícito nas práticas do Breque dos Apps. Para usar um termo corrente nos anos 1970, principalmente na Itália, o Breque dos Apps foi uma expressão política de “autonomia operária”. Autonomia “operária” numa dimensão alcançada em São Paulo que não se via nos centros urbanos brasileiros havia pelo menos quarenta anos. Comunicação horizontal e participação ativa dos entregadores imprimindo e distribuindo eles próprios os cartazes, gravando vídeos, por fora de entidades sindicais – e em parte até mesmo contra o sindicato em São Paulo. A percepção dessa autonomia e horizontalidade foi o que possibilitou um efeito de contágio pelo Brasil, para dentro e para fora da categoria, e até mesmo fora do país, fazendo do chamado de greve para o dia 1º de julho uma greve internacional, com a paralisação se estendendo a outros países da América Latina. Essa participação ativa da categoria na construção da mobilização e a comunicação horizontal entre os trabalhadores tornaram o Breque dos Apps uma mobilização diferente daquelas puxadas por direções sindicais. Essa forma potencializou o movimento e também o seu impacto. Um movimento que não é controlado por direções sindicais não é limitado por convenções, normas, leis, e possui assim uma imprevisibilidade que em si constitui uma força sua. A autonomia “operária” se constituía já na própria construção do Breque.

Puxar uma greve nacional de entregadores de aplicativos para o dia 1º de julho foi uma ideia discutida e decidida em grupos de WhatsApp de entregadores de alguns estados. A ideia de uma greve nacional já vinha sendo gestada desde os primeiros meses do ano e ganhou impulso com ações de luta dos entregadores em algumas cidades, como em Rio Branco, Rio de Janeiro e São Paulo. Seguindo mais ou menos uma ordem decrescente de importância para a mobilização dos entregadores, as reivindicações eram: 1) Aumento do valor das corridas; 2) Aumento do valor mínimo por entrega; 3) Fim dos bloqueios e desligamentos indevidos; 4) Seguro de roubo, acidente e vida; 5) Fim do sistema de pontuação; 6) Auxílio-pandemia (EPIs e licença).

Evidentemente, as tendências e relações que se estabeleciam entre entregadores e sindicatos, políticos e instituições não são homogêneas Brasil afora. Mas o que prevaleceu, principalmente em São Paulo, onde o movimento era mais potente, foi uma posição de autonomia total quanto a sindicatos, partidos, instituições… quando não com uma atitude de aversão aberta e declarada. Dias antes da paralisação, um vídeo gravado por alguns motoboys de São Paulo que estavam bastante engajados na organização do Breque sintetizou a perspectiva autônoma do movimento 7.

Baseando as pautas na atividade dos entregadores de aplicativos e explicitando que não havia vínculo político com ninguém nem com sindicatos, sendo uma iniciativa e ação dos próprios entregadores, eles demonstravam uma aguçada consciência de classe prática. Mais do que isso, mostravam como o movimento era uma expressão de continuidade da autonomia operária que precipitou a crise do fordismo nos anos 1970, dessa vez numa condição pós-fordista. Como diz um ex-operário italiano bastante ativo nas lutas e na construção dessa autonomia operária nos anos 1960 e 1970: a passividade dos trabalhadores normalmente pode ser superada, pois ela seria consequência da falta de referências políticas e organizativas alternativas ao sindicato 8. Em parte, era isso que também estava sendo constituído pelos entregadores: uma referência de organização alternativa ao sindicato. Como no último grande ciclo de lutas da classe trabalhadora, o potencial disruptivo da ação dos trabalhadores vinha de fora do sindicato, quando não se voltava diretamente contra ele.

Impossível dizer o número de entregadores que aderiram à paralisação em 1º de julho de 2020 no Brasil. Em São Paulo, especificamente, talvez seja difícil até mesmo fazer uma estimativa. Provavelmente foi a maior paralisação de entregadores de aplicativos no Ocidente. A imagem midiática, espetacular, foi a da imensa manifestação que saiu da Avenida Paulista e terminou ocupando a Ponte Estaiada. Contudo, a autonomia de classe se expressou de forma menos visível aos olhos do público. Foram os incontáveis piquetes auto-organizados em locais de coleta de pedidos, como shopping centers, que fizeram desse o dia de maior expressão de autonomia “operária” nos centros urbanos brasileiros das últimas décadas.

Para o dia 25 de julho era nítido que não havia a mesma energia e disposição dos entregadores para se envolver com a paralisação. Mesmo assim, ao menos em São Paulo ela foi bastante expressiva. Dessa vez a paralisação teve um tom de “greve de pijama”. Muitos ficaram em casa. Mas os piquetes em alguns shoppings eram desnecessários uma vez que o movimento de trabalho estava mesmo muito abaixo do normal. Grande parte dos entregadores de fato não havia ido trabalhar.

O movimento conseguiu trazer uma boa exposição da situação vivida pelos entregadores de aplicativos. A imagem das empresas de aplicativo saiu arranhada, e esse prejuízo à marca certamente foi maior do que aquele trazido pela paralisação do trabalho. No entanto, comparada com as greves de entregadores na Inglaterra relatadas por Callum Cant, o Breque dos Apps objetivamente conquistou muito pouco. Talvez o único ganho objetivo tenha sido alguma melhora para que não haja tantos bloqueios indevidos por parte da maior empresa do mercado, mas sem nada oficializado. Essa diferença em termos de conquistas e compromisso das empresas na Inglaterra e no Brasil é indício de que aqui os trabalhadores estão enfrentando um poder econômico mais soberano, mais difícil de ser constrangido. Algo que a existência do modelo OL no Brasil também nos indica, o que veremos mais adiante. (…)”

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