Lugares de Memória dos Trabalhadores: Armação da Piedade, Governador Celso Ramos (SC)

Imagem: Igreja da Nossa Senhora da Piedade em Governador Celso Ramos. Acervo repositório institucional da UFSC. Fotografia de Eduardo Marques (2006)

Por Beatriz Mamigonian | Para LEHMT

“A capela dedicada a Nossa Senhora da Piedade é a única construção remanescente do que foi o primeiro e mais importante complexo fabril voltado para o processamento do óleo e de outros derivados de baleia no litoral de Santa Catarina, no período colonial. Localizado no atual município de Governador Celso Ramos, hoje o espaço da antiga Armação da Piedade é ocupado por famílias de trabalhadores do mar e casas de veraneio, além de uma marina para embarcações de luxo. Não há qualquer placa ou indicação de que lá trabalharam e viveram centenas de africanos e africanas escravizados, assim como dezenas de pessoas livres, administrados pelos detentores do monopólio da pesca de baleias.

A Armação da Piedade foi instalada em 1746, no contexto do projeto da coroa portuguesa de ocupação do litoral de Santa Catarina. Ele envolveu a elevação desse território a capitania, a construção de fortificações que protegessem a Ilha de Santa Catarina de invasões estrangeiras, o incentivo à fixação de colonos, com a promoção do transporte de casais vindos das ilhas dos Açores e da Madeira e a concessão de um contrato para exploração da atividade baleeira. Das baleias eram extraídos sobretudo o óleo e o espermacete, que tinham valor comercial. O primeiro, como combustível para iluminação, fundamental até a difusão do querosene; e o segundo, um líquido ceroso com muitas aplicações como lubrificante e fármaco. Nas localidades, aproveitava-se também a carne, como fonte de proteína.

A Armação da Piedade foi a pioneira das unidades baleeiras do litoral sul. Até então, a pesca e o beneficiamento das baleias ocorriam na Bahia, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Estabelecida e administrada por meio de sucessivos contratos de concessão de monopólio sobre a pesca das baleias, a Piedade serviu de “matriz” para a fundação de outras: a Armação da Lagoinha (situada na Ilha de Santa Catarina), em 1772; a Armação de Itapocorói  (1778); a Armação de Garopaba (1794),  de Imbituba (1795) e a Armação da Ilha da Graça, próxima a São Francisco do Sul, em 1807. Elas funcionaram sob a administração dos contratantes particulares até o fim do monopólio sobre a pesca das baleias em 1801; depois passaram à Fazenda Real e foram desativadas após a independência, incorporadas aos “próprios nacionais” e vendidas. Apenas o terreno da Armação da Piedade manteve-se como propriedade do Estado, e serviu como colônia de imigrantes alemães na década de 1840. Tudo indica que as pessoas escravizadas acompanharam os bens das armações quando foram vendidos; mais pesquisa, no entanto, poderá responder se algumas foram alforriadas, se permaneceram na mesma região ou se tiveram a chance de tornar-se pequenos produtores agrícolas, ou pescadores autônomos.

O complexo da Armação da Piedade englobava as atividades fabris e as de reprodução da vida cotidiana, como a produção de alimentos. O espaço era situado em uma ponta de difícil acesso por terra e relativamente protegido pela Fortaleza de Santa Cruz de Anhatomirim para quem chegasse pelo mar. Contava com uma casa grande para o administrador, uma “casa da fábrica” onde era derretido o óleo das baleias, três casas de tanques, uma casa para o capelão, uma ferraria, uma “casa do hospital e botica”, residência para os feitores e pescadores livres e duas senzalas em quadra para os escravos solteiros, além de outra com divisórias de tijolos destinada aos escravos casados e suas famílias. Havia também um sítio com roças, pomar e engenho, onde era produzida parte da farinha de mandioca que alimentava os trabalhadores. Na capela dedicada à Nossa Senhora da Piedade foram batizados africanos trazidos jovens e adultos, e depois seus filhos e netos. No cemitério adjacente, foram enterrados os trabalhadores e trabalhadoras falecidos, acometidos por doenças traumáticas, fisiológicas ou infecciosas.


Os trabalhadores livres e escravizados partilhavam tarefas no mar e em terra, caçando as baleias, encalhando-as na praia para cortá-las e fritando os nacos de carne para extrair o óleo. Uma parte deles – possivelmente as mulheres, os idosos e as crianças escravizados – ocupavam-se da produção e preparação de alimentos.


Um inventário da Armação da Piedade de 1816 registra que nela trabalhavam 137 homens, 14 mulheres e 16 menores escravizados, dentre os quais 92 homens e 3 mulheres eram africanos. Entre eles estavam Vicente Angola, de 62 anos e aleijado de uma perna, Miguel Benguela, que havia sido gancheiro mas estava “decrépito” aos 58 anos e Domingos Benguela, pescador, de 79 anos, também inativo. Haviam sido trazidos à Piedade ainda na segunda metade do século XVIII. Entre os ativos havia Domingos Mina, de 57 anos, cortador de praia, e Domingos Magumbe, de 63 anos, que exercia talvez a mais importante das profissões da armação: era mestre de azeite. A hierarquia das ocupações e a distribuição de sexo e idade leva a comparar a comunidade de trabalhadores da Armação da Piedade com a das plantations de açúcar ou café de outras regiões escravistas, que tinham trabalhadores escravizados especializados e reuniam gerações na senzala.

A Armação da Piedade é mais um importante exemplo da presença de africanos e africanas na história de Santa Catarina. Esse lugar de memória desafia a narrativa racista que exalta a exclusividade da origem europeia da população do estado. Ele nos faz refletir sobre a fundamental importância dos negros e da diversidade étnica nos processos de formação da classe trabalhadora em Santa Catarina e no Brasil. (…)”

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Fonte: LEHMT

Data original da publicação: 27/05/2021

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