Lugares de Memórias dos Trabalhadores: Praça Luiza Mahin, Brasilândia, São Paulo
Por Andrew G. Britt | LEHMT
Luiza Mahin está na praça
pela dignidade da raça.
Qual o segredo
da linguagem dos espaços
e estátuas?
Entre o ser que passa
desligado
e a pedra imóvel ou placa
a mensagem assobia
contra o silêncio da farsa.
O que tem o passado
de tão secreto
para serem selecionados nomes de ruas e praças?
Em 1985 o escritor e poeta Cuti compôs as linhas acima para comemorar a inauguração da Praça Luíza Mahin no distrito da Brasilândia, na zona norte da cidade de São Paulo. Em um contexto de redemocratização do país e de participação de lideranças do movimento negro nos governos de oposição recém eleitos, como era o caso do estado e da cidade de São Paulo, a ONG Coletivo de Mulheres Negras liderou a iniciativa de dar o nome de Luíza Mahin àquele espaço público. Um dos mais importantes ícones de feminismo negro contemporâneo, Mahin é comumente lembrada por seu envolvimento em revoltas de africanos e afrodescendentes libertos e escravizados na Bahia nos anos 1830. Ela foi a mãe de Luiz Gama, um dos mais famosos abolicionistas brasileiros. Apesar de, até hoje, constar na praça apenas uma placa simples com o nome de Mahin, sem maiores informações históricas, o ato de nomeação daquele espaço refletia e também colaborava com o processo de produção da Brasilândia como um centro de resistência e autodeterminação negra na cidade de São Paulo.
Atualmente um dos mais populosos distritos da capital paulista, a Brasilândia formou-se a partir do loteamento Vila Brasilândia em 1947. O crescimento rápido do bairro tem relação direta com as grandes intervenções urbanísticas do prefeito Prestes Maia, que começaram nos anos 1930 e continuaram até a década de 1960. O seu ambicioso projeto, o “Plano de Avenidas”, demoliu cortiços e outras moradias populares no centro da cidade. O projeto teve grande impacto em distritos como Bela Vista e Liberdade, locais de grande concentração de afrodescendentes até os anos 1940. Nas décadas seguintes, uma nova memória sobre essas regiões seria construída, invisibilizando o papel dos negros na formação desses bairros, que se se tornariam conhecidos como territórios de imigrantes: a Bela Vista “italiana” e a Liberdade “japonesa.” Muitos dos ex-moradores dessas áreas, inclusive uma população significativa de afrodescendentes, foram viver no novo loteamento de Vila Brasilândia.
Como a vasta maioria de bairros de trabalhadores pobres criados na periferia paulistana em meados do século XX, os próprios residentes autoconstruíram suas moradias e o espaço físico em geral da Vila Brasilândia. A população expandiu-se rapidamente após a abertura do loteamento em 1947, atingindo 30.000 mil residentes em menos de uma década. Esse crescimento continuaria nos anos seguintes e novos loteamentos atrairiam tanto outros residentes deslocados do centro urbano quanto a imensa leva de migrantes do Minas Gerais e do Nordeste que chegava a São Paulo naquele período. Alguns dos moradores do bairro trabalhavam nas duas pedreiras da região, enquanto outros cruzavam o rio Tietê diariamente para trabalhar na São Paulo industrial, ocupando postos em diversos setores, como no emprego doméstico, na construção civil e nos transportes.
A falta de investimento público, práticas oportunistas das imobiliárias, e a demanda incessante por moradia contribuíram para tornar a Vila Brasilândia um dos bairros mais urbanisticamente irregulares da capital paulista. A partir dos anos 1970, por exemplo, a região passou a ter a maior concentração de favelas na cidade.
Entretanto, a Brasilândia forjou-se como um espaço de afirmação de identidades e de luta contra as desigualdades étnico-raciais e sociais em São Paulo. No contexto de uma cidade definida por um projeto de branqueamento e pelo mito da branquitude, onde os corpos negros têm sidos sistematicamente deslocados, silenciados e/ou invisibilizados, os residentes autoconstruíram a Brasilândia como um lugar de sobrevivência, resistência e autodeterminação negra.
Fizeram isso através de vários projetos e práticas, inclusive a construção de territórios de religiões de matriz africana e a criação da escola de samba Rosas de Ouro. Embora sempre habitada por uma população multirracial, a Brasilândia tornou-se uma das regiões de maior porcentagem de trabalhadores afrodescendentes na cidade e passaria a ser chamada a “Pequena África” paulista.
Nomear lugares foi uma prática marcante na construção da Brasilândia como uma “Pequena África.” Entre meados do século XIX até 1960, por exemplo, a via principal da região era chamada de Estrada do Congo, em uma referência direta à alta presença de africanos e afrodescendentes escravizados e libertos no norte da região da Freguesia do Ó (atual Brasilândia). É provável que esse nome tenha sido popularizado pelos residentes negros indicando a região como um lugar de refúgio a pessoas escravizadas e fugidas. Novos capítulos dessa história estão sendo escritos atualmente. A apenas 3km ao norte da Praça Luíza Mahin, uma nova praça foi recentemente batizada como Marielle Franco.
Esses nomes na paisagem do bairro demonstram a luta de sucessivas gerações de trabalhadores(as) negros(as) que construíram a Brasilândia como um local de resistência em meio a uma sociedade marcada por graves desigualdades e violência raciais. Lugares como a Praça Luiza Mahin reafirmam a autodeterminação negra da Brasilândia e são fundamentais nas batalhas pela memória social. Como disse o poeta Cuti há três décadas, esses são espaços “contra o silêncio da farsa” promulgado pelo projeto de branqueamento do país.
Fonte: LEHMT
Data original da publicação: 29/07/2021