Maioria dos países não regula relação entre trabalhadores e plataformas

Imagem: Rawpixel

Por ConJur

A probabilidade de trabalhadores da chamada gig economy (economia de “bicos”) ao redor do mundo serem considerados empregados — à luz do modelo padrão do que é um emprego — é relativamente baixa: 13%. A probabilidade contrária — não reconhecimento do vínculo empregatício — é de 53%. E uma resposta indefinida, que depende de como a relação de trabalho é estabelecida, tem uma chance de 34%.

As estimativas constam de estudo da Ius Laboris, entidade que reúne os principais escritórios de advocacia trabalhista do mundo. O levantamento considerou a legislação de 40 países e se eles já haviam editado normas para regular essas novas formas de trabalho, em que os prestadores de serviços trabalham informal e ocasionalmente por meio de demandas feitas em plataformas digitais, como é o caso da Uber. Há até aplicativo para contratar goleiro para a pelada de fim de semana.

Para Flávia Azevedo, sócia da área trabalhista do Veirano, “houve uma evolução das relações de trabalho muita mais rápida e maior do que a evolução da lei”. Assim, ante a omissão legislativa, em muitos países as desavenças acabam desaguando no Judiciário. E, de 2018 para cá — ano em que foi feito o estudo — muita coisa vem mudando.

O caso mais recente é o da Espanha. Em decisão da última quarta-feira (23/9), o Tribunal Supremo daquele país decidiu que a relação existente entre um entregador e a empresa Glovo — plataforma de entregadores ciclistas — configura vínculo de emprego.

Para a corte, em tal relação estão presentes os traços distintivos dos contratos de emprego — em especial, a dependência e a alienação. A Glovo, portanto, não é uma mera intermediária entre comerciantes e entregadores, pois fixa as condições essenciais da prestação de serviço e detém os ativos, também essenciais, para que as atividades possam ser feitas — como as ferramentas de informática que fazem a gestão dos pedidos e das entregas.

Assim, a empresa se serve de entregadores que não têm uma organização empresarial própria e autônoma, pois os trabalhadores prestam os serviços se inserindo na organização de trabalho do próprio empregador. 

A decisão da suprema corte espanhola, que provavelmente será estendida a outras plataformas de aplicativos de entrega, ocorre após uma avalanche de ações na Justiça — situação semelhante à de muitos dos países onde as empresas da chamada gig economy atuam.

Novos paradigmas
Os desafios a serem enfrentados por parlamentos e cortes ao redor do mundo não se restringem à solução de disputas concretas envolvendo remuneração. Afinal, a gig economy põe em xeque os modelos de produção anteriores — como o fordista e o toyotista —, extrapolando a mera alteração nas relações sociais: há consequências urbanísticas, ambientais, tributárias e, principalmente, no próprio modelo de estado de bem-estar social consagrado durante o século 20.

Assim, a definição sobre como entender os meandros dessas novas formas de trabalho deve considerar não apenas a criação de amarras a eventual desenvolvimento econômico, mas também a garantia de condições de trabalho dignas — incluindo adesão à seguridade social, como aposentadoria, auxílio doença etc.

Diante desse quadro, a ConJur fez um levantamento sobre como alguns estados, para além do caso espanhol, vêm enfrentando a questão. 

Brasil
Ainda não existem normas específicas para regular a chamada “uberização”. Mas tramitam no Congresso alguns projetos de lei. Um deles, de autoria de deputada federal Tábata Amaral, prevê a criação de uma figura híbrida entre o trabalhador autônomo e o celetista.

Assim, o Judiciário é que fica com a incumbência de determinar se o vínculo celetista está ou não presente. Nas instâncias inferiores, há decisões para todos os gostos — embora, no geral, os entregadores estejam perdendo a batalha.

No tribunal trabalhista de cúpula, a jurisprudência ainda não está cristalizada. Há basicamente duas decisões do TST — ambas não reconhecendo o vínculo de emprego. Uma é de fevereiro deste ano; a outra, do início deste mês.

“É importante lembrar, porém, que no TST não se analisa, em regra, matéria de prova. Muitos não conseguem sequer que seus recursos sejam devidamente conhecidos. Assim, é importante que o conjunto probatório seja firme desde a primeira instância”, afirma José Roberto Dantas Oliva,advogado e juiz do trabalho aposentado.

Estados Unidos
No pacto federativo americano, cabe aos estados editar normas trabalhistas. Cada um dos cinquenta entes federados, portanto, têm regramentos distintos.

A Suprema Corte da Pensilvânia, por exemplo, já decidiu que os motoristas do Uber não são autônomos. “O objeto da ação, na verdade, era o seguro-desemprego, que foi assegurado a um trabalhador, direito que só os empregados possuem, havendo, portanto, a equiparação”, explica Dantas Oliva.

Na Califórnia, a resposta veio do legislativo — algo ainda raro no mundo. Uma lei em vigor desde o começo deste ano cria vínculo de emprego entre motoristas e aplicativos.

Segundo Flávia Azevedo, em Nova Iorque, mesmo não havendo reconhecimento legislativo do vínculo, “há a obrigação de garantir um pagamento mínimo para quem trabalha um determinado número de horas”, afirma. “Mas os aplicativos estavam desconectando quem chegava perto desse mínimo”, explica. 

Em Nova Jersey, a Justiça condenou a Uber em U$ 650 milhões porque a empresa não considerou os motoristas como seus empregados. O valor se refere a tributos que deixaram de ser recolhidos.

França
Decisão do início deste ano tomada pelo órgão de cúpula do Judiciário reconheceu que existe o vínculo de emprego entre motoristas e a Uber, sob o argumento de que o condutor  não pode ser considerado autônomo, já que não cabe a ele construir a própria clientela ou definir os preços das corridas.

Em 2019, a plataforma britânica Deliveroo foi condenada por fraude à seguridade social, sob a acusação de que os entregadores foram considerados autônomos, deixando de integrar o sistema de seguridade social.

Emirados Árabes
A operação da Uber é permitida, mas de um jeito inusitado: como os carros particulares não podem competir diretamente com os táxis, os motoristas do aplicativos são empregados de uma outra empresa, de limusines — esta, sim, contratada pela Uber.

Arcabouço jurídico 
Segundo a Ius Laboris, apesar das diferenças entre as leis trabalhistas dos vários países do mundo, há alguns pontos que as aproximam. Primeiro, é bastante comum a diferenciação entre trabalhadores empregados e os não empregados (como os autônomos). Segundo, os “testes” previstos pelas leis para verificar a existência de vínculo de emprego invariavelmente consideram a presença ou ausência de subordinação entre trabalhador e empregador.

Assim, as soluções a serem adotadas para a gig economy devem passar, em princípio, por uma das duas alternativas: ou a edição de uma regulamentação específica para esse tipo de trabalho ou a releitura dos critérios clássicos por meio dos quais o vínculo de emprego é concebido.

Para Flávia Azevedo, a primeira saída, ao menos para o caso brasileiro, é a mais viável. Para ela, o Brasil não está em estágio de maturidade para alterar o conceito básico de empregado que está na CLT.

“O que diferencia um empregado de autônomo é o nível de autonomia do trabalhador. No trabalho autônomo, não há subordinação. E o que se discute hoje é o que caracteriza a subordinação. Ela está presente no trabalho por aplicativo? Eu acredito que não. Então, em vez de alterar um conceito tão enraizado, é melhor criar uma legislação à parte que se dirija a esse novo formato de trabalho”, afirma. Assim, propõe a criação de uma categoria similar à de autônomo, que, apesar de ser pouco regulada, tem algo essencial: a cobertura pela seguridade social.

Segundo Dantas Oliva, a CLT é suficiente cuidar dessa nova forma de trabalho. Para ele, os requisitos configuradores da relação de emprego normalmente estão presentes nas relações da gig economy.

“O artigo 6º da CLT, por sinal, é claro ao estabelecer que não há distinção entre ‘o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego'”, explica.

Além disso, o parágrafo único do mesmo artigo dispõe que “os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”. 

“Assim, considerando que a exclusividade nunca foi requisito para a configuração de relação de emprego, que há absoluto controle do trabalhador por algoritmos e, inclusive, de deslocamento por GPS, parece que, em regra, é inequívoca a completa subordinação jurídico-eletrônica dos entregadores”, opina.

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Fonte: ConJur

Data original da publicação: 26/09/2020

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