MANIFESTAÇÃO EM FAVOR DA POLÍTICA NACIONAL DE ERRADICAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO

Imagem: Reprodução

Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo

Comissão Nacional para a erradicação do trabalho escravo do MDHC manifesta sua extrema preocupação com uma grave e atual violação das normas da Política Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo

A Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo — Conatrae, por meio de suas entidades e instituições integrantes, vem, perante os Exmos. Ministros de Estado dos Direitos Humanos e da Cidadania, e do Trabalho e Emprego, manifestar sua extrema preocupação com uma grave e atual violação das normas da Política Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, a qual tem entre seus fundamentos: a clara definição do crime; a absoluta prioridade dada à integridade e aos direitos da pessoa vitimada; a cristalina articulação das atribuições definidas para combater tamanha violação dos direitos humanos.

O compromisso de erradicar a prática do trabalho em condição análoga à de escravo (ou trabalho escravo) no país foi assumido pelo Estado brasileiro perante seus cidadãos e perante a comunidade internacional, por meio de previsão legal insculpida no ordenamento jurídico do país, e pela adesão e ratificação de vários tratados e convenções internacionais.

A violação da obrigação internacional do Estado brasileiro de defender e promover os preceitos fundamentais relacionados à dignidade da pessoa humana — especificamente ao direito de não ser escravizada — já foi alvo de uma Sentença condenatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos, promulgada em 20 de outubro de 2016, no Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs Brasil, pela qual o país foi ao mesmo tempo reconhecido pelo valor da política nacional estabelecida e alertado quanto ao risco de retrocessos.

Não obstante a obrigação ‘erga omnes’ então reafirmada de combater um crime tido como crime contra a humanidade, a sociedade brasileira vem presenciando ultimamente graves violações à política nacional de erradicação do trabalho escravo, originadas em atos e omissões do próprio Estado brasileiro, conforme se passa a relatar.

Em 6 de junho de 2023, a Auditoria-Fiscal do Trabalho, a Polícia Federal, o Ministério Público Federal, o Ministério Público do Trabalho e a Defensoria Pública da União realizaram de forma planejada um operativo conjunto, executado na forma conhecida como Grupo Móvel de Fiscalização, com a finalidade de verificar a possível ocorrência de “redução de alguém à condição análoga à de escravo”, em uma situação específica de trabalho doméstico que envolvia uma senhora laborando na residência do Sr. Jorge Luiz de Borba, Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, e de sua esposa, Ana Cristina Gayotto de Borba.

Tal diligência foi executada no cumprimento de mandado de busca e apreensão expedido no âmbito do Pedido de Busca e Apreensão Criminal nº 65/DF.

A partir das investigações então levadas a cabo, ou seja: inspeção física no local de trabalho, tomada de depoimentos, entrevistas, análise documental, entre outros procedimentos técnicos, apurou-se que a senhora de nome Sônia Maria de Jesus, afeta ao serviço de empregada doméstica, hoje com 50 anos, havia sido submetida no passado a trabalho infantil e a tráfico de pessoas (por meio de adoção ilegal), e vinha sofrendo há quase 40 anos uma condição análoga à de escrava, em clara violação dos seus direitos humanos fundamentais. Em decorrência do flagrante realizado, a Sra. Sônia, uma mulher negra, com deficiência auditiva profunda (surdez bilateral), mantida analfabeta em português e libras, foi resgatada pelos servidores públicos federais (acompanhados por assistentes sociais, psicólogos e intérpretes de libras que participaram da operação), e retirada do trabalho em condição análoga à escrava, após décadas passadas nessa condição.

A partir de então, seguindo o Fluxo Nacional de Atendimento às Vítimas de Trabalho Escravo, previsto na Portaria nº 3.484 de 06 de outubro de 2021, a Sra. Sônia foi acolhida pelo Sistema Único de Assistência Social, por meio de uma unidade de acolhimento especializada para mulheres vítimas de violência, e iniciou processo para favorecer sua integração social, passando inclusive a frequentar a Associação de Surdos da Grande Florianópolis. Na ocasião, começou a receber aulas de libras, português e artes e, pela primeira vez, experimentou uma convivência comunitária, adquirindo capacidades básicas para se comunicar e interagir com outras pessoas. Ou seja: começou a receber o exigido atendimento integral correspondente à condição de extrema e múltipla vulnerabilidade na qual fora encontrada.

No entanto, já na semana subsequente à da sua libertação, iniciou-se uma série de violações à Política Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo por parte de agentes do próprio Estado brasileiro.

  1. Perseguição do Auditor-Fiscal do Trabalho coordenador do operativo

Inicialmente, sob pretexto de incorrência em violação de sigilo funcional por parte do Auditor-Fiscal do Trabalho coordenador do operativo, em razão de esse ter dado entrevista sobre o caso, foi dado início a inquérito policial em desfavor do agente público, iniciando-se um processo de perseguição ao servidor, em clara tentativa de retaliação à operação fiscal. Esse processo é uma afronta à instituição pública responsável pela coordenação das ações de combate ao trabalho escravo no país, qual seja, a Auditoria-Fiscal do Trabalho e, em última análise, à própria política nacional.

A incongruência da medida repressiva fica clara quando se considera os seguintes elementos:

I. Antes da entrevista concedida pelo Auditor-Fiscal do Trabalho ao programa Fantástico, da TV Globo, outras instituições participantes da operação fiscal já haviam concedido entrevistas sobre o caso. Por ocasião da entrevista que supostamente teria violado segredo de justiça, foram abordadas exclusivamente informações já amplamente repercutidas na imprensa em dias anteriores.

II. A própria família empregadora já havia exposto – e continuou a expor – fotos da trabalhadora, em desrespeito à sua intimidade.

O processo correcional e criminal ainda em curso deve ser analisado, portanto, como medida arbitrária, pois só tem como objetivo o de intimidar e dissuadir os agentes do Estado que têm como atribuição legal específica a de coordenar as ações de combate ao trabalho escravo.

Registre-se que os sigilos foram em tese impostos para proteger e resguardar a intimidade da vítima, mas não se aplicam aos possíveis agressores, evidenciando flagrante inversão dos objetivos da medida, para o benefício exclusivo dos supostos infratores.

  1. Violação de direitos fundamentais da trabalhadora encontrada em condição análoga à de escrava.

Após o resgate, o investigado comunicou, em Nota à imprensa, que a suspeita de que ele tenha submetido essa mulher a trabalho análogo à escravidão era infundada pois se tratava de “um ato de amor”, por ela ter sido acolhida por sua família. Negou que tenha cometido crimes no caso. Na sequência, ele e sua esposa passaram a requerer no Juízo de Família em Florianópolis (SC) o reconhecimento da paternidade e maternidade socioafetiva e, em outra instância, a restituição do “convívio familiar”.

Em 8 de setembro, por decisão judicial, foi facultado ao Sr. Borba o direito de visitar a Sra. Sônia no local do seu acolhimento e de organizar o possível regresso dela para a mesma residência da qual fora resgatada, contrariando frontalmente as determinações das instituições que decidiram pelo seu resgate – Auditoria-Fiscal do Trabalho, Polícia Federal, Ministério Público Federal, Ministério Público do Trabalho e Defensoria Pública da União –, e contrariando também a objeção formulada pela Defensoria Pública da União por meio de HC nº 232.303.

Tudo isso ocorreu sem oitiva ou consulta à família biológica da Sra. Sônia, com a qual, desde a infância, ela vive privada de contato e convivência.

Ressalta-se que o procedimento de retorno à residência da família Borba se deu sem que houvesse possibilidade de anuência expressa, clara e inequívoca da Sra. Sônia: tal possibilidade estava de qualquer forma descartada uma vez que, por ter sido privada de alfabetização em português e em libras, ela não tinha mínima condição para, naquele momento, compreender tudo o que lhe ocorria e para se expressar livremente. Chama a atenção também a pressa desarrazoada e inexplicável do prazo estipulado (quarenta e oito horas) para se cumprir a medida de retorno, em contraste brutal com os quase quarenta anos de uma convivência subalternizada na família empregadora.

Assim, em decorrência de determinação judicial, confirmada por instância superior, foi interrompido o processo incipiente de atendimento da Sra. Sônia para sua inserção no convívio social, bem como os demais procedimentos visando completar sua documentação civil e possibilitar-lhe o acesso à educação, saúde, trabalho decente, moradia e convivência com a família, elementos que, na ótica de uma atenção integral, conformam a política pública de combate ao trabalho escravo.

Tal medida violou ainda o sistema de proteção da mulher vítima de violência e os direitos fundamentais da pessoa com deficiência.

Conforme o exposto,

  1. Avaliamos como gravíssimo o atentado – ainda em curso – perpetrado contra as prerrogativas funcionais de agentes públicos que têm a missão, delegada pelo Estado brasileiro, de erradicar o trabalho escravo,
  2. Consideramos como gravíssima a revitimização – também ainda em curso – de uma trabalhadora doméstica inicialmente resgatada pelo próprio Estado e afastada da condição análoga à de escrava na qual fora encontrada e “retornada” à situação anterior.

Trata-se de uma sequência fática que, ao desconhecer, desvirtuar e violar os princípios basilares da Política Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo no Brasil, gerou uma situação que, se for não for devida e rapidamente revertida, está criando um precedente gravíssimo, pois coloca em questão a efetividade e continuidade dessa Política Nacional.

Informamos inclusive que várias instâncias internacionais já foram alertadas: Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Relatores especiais da ONU (Formas Contemporâneas de Escravidão; Violência contra Mulheres e Meninas; Direitos das Pessoas com Deficiência).

Por esses motivos, instamos os Exmos. Ministros de Estado dos Direitos Humanos e da Cidadania, e do Trabalho e Emprego a adotarem todas as medidas cabíveis no exercício de suas atribuições, para salvaguardar a política pública responsável pelo combate ao trabalho escravo e pela sua erradicação, o que passa, necessariamente, pela proteção ao exercício profissional dos servidores que a executam.

Fonte: Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo

Clique aqui para ler o texto original.

Data original de publicação: 15 de fevereiro de 2024 (Brasília)

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Translate »