Mariana Roncato: “A jornada para mulheres, especialmente negras e imigrantes, sempre foi mais longa”
Esquerda Diário
Esta edição do Ideias de Esquerda entrevistou Mariana Shinohara Roncato, socióloga, professora e atualmente pesquisadora do programa de pós-doutorado na Unicamp.
1) Na última semana a questão da redução da jornada de trabalho tem sido tema de intenso debate nos locais de trabalho, na imprensa e nas redes sociais, em particular o fim da escala 6×1 – jornada que faz com que os trabalhadores tenham apenas 1 dia de folga. Em suas publicações, você analisa o trabalho imigrante dos dekasseguis no Japão. Poderia nos falar um pouco sobre a relação entre trabalho imigrante e exploração, passando pela intensidade do trabalho e extensão da jornada?
Certa vez, o sociólogo italiano Pietro Basso afirmou que as pessoas imigrantes seriam os “protótipos dos trabalhadores flexíveis”, lançando uma ideia de que eles são os primeiros a sentirem os efeitos das reestruturações do capital e a consequente precarização. Penso que ele estava certo e isso vale para quase toda a experiência migrante. Eu morei 10 anos no Japão e pesquiso a temática há mais de 10 anos também e posso afirmar que os trabalhos das pessoas imigrantes são mais informalizados, mais flexíveis, com jornadas de trabalho longas e menor remunerados em comparação à classe trabalhadora nacional. A falta de proteção social e o menor salário que acometem esses trabalhos fazem com que eles tenham que prolongar a jornada de trabalho para conseguirem reproduzir as condições básicas de vida e, quando possível, façam remessas financeiras para familiares que permaneceram nos seus países de origem.
Apesar de muitos países terem discursos oficiais de rechaço e contrariedade à população imigrante, a verdade é que o trabalho por ela realizado é extremamente funcional ao capital e peça chave para a exploração capitalista de países de capitalismo central. É um movimento desigual e combinado em que o trabalho imigrante se precariza e logo em seguida a classe trabalhadora nacional tem as suas condições de vida rebaixadas também. Ou seja, sem o trabalho imigrante, os países de capitalismo central não conseguem manter seu desenvolvimento econômico.
Em paralelo a essa questão, ainda sobre a intensidade do trabalho, o Japão sempre foi um país com altas taxas de adoecimento decorrente das longas jornadas. Desde a década de 1980, as mortes e os suicídios por excesso de trabalho, chamadas de karoshi e karojisatsu são bastante conhecidos e seguem sendo um problema nacional. Trabalhos com jornadas acima de 60 horas semanais, consideradas “linha de risco” para esses tipos de mortes, ultrapassam os 10% em diversos setores da economia, com preocupação especial para o setor de serviços. As consequências desse contexto são nocivas para a própria reprodução da vida, impactando a taxa de fecundidade, de casamento, entre outras manifestações decorrentes da pobreza do tempo das pessoas.
2) Nos últimos anos você vem elaborando sobre gênero e marxismo, contribuindo particularmente com estudos sobre a teoria da reprodução social. Poderia nos falar um pouco sobre as contribuições das autoras marxistas nesse debate? Como se dá a relação entre gênero, o trabalho de reprodução e a esfera da produção?
O marxismo sempre foi e continua sendo uma teoria que se preocupa em entender a relação entre classe e opressões, a articulação entre produção e reprodução social, bem como nos oferece um horizonte político que melhor consegue combater essas questões. A teoria do valor trabalho de Marx, sua ideia da força de trabalho como a única capaz de produzir valor, a articulação entre produção e reprodução social, a categoria de totalidade, entre tantas outras perspectivas por ele elaboradas propiciaram o desenvolvimento de um feminismo marxista capaz de analisar as opressões das mulheres sob o modo de produção capitalista.
Ainda assim, quando se quer entender a relação entre gênero, raça e exploração do trabalho, era muito comum ter uma análise dualista e não materialista das opressões. Ou seja, para entender a exploração de classe utilizava-se alguma teoria econômica, como o marxismo, e, de outro lado, de modo separado, quando se olhava para as opressões, recorria-se a teorias externas ao marxismo, como a explicação via ideia de uma tradição patriarcal do passado, perspectivas culturalistas, ideológicas, funcionalistas, entre outras. O problema dessas vertentes é que elas não conseguem entender quais as origens e razões para as opressões existirem no capitalismo, comprometendo também a práxis política.
A Teoria da Reprodução Social, em uma perspectiva unitária, tenta romper com esses dualismos, buscando uma análise materialista das opressões. As contribuições para essa teoria vêm sobretudo de Marx, mas passa por influências desde uma tradição do feminismo socialista, dos feminismos negros do século XX, da obra de Lise Vogel Marxismo e a opressão às mulheres: rumo a uma teoria unitária, de inúmeras intelectuais e militantes como Tithi Bhattacharya, Susan Ferguson, David McNally, além de uma nova geração de brasileiras e outras mulheres da América Latina excepcionais que constroem essa jovem teoria.
Essa teoria em construção nos permite enxergar os fios invisíveis, como dizia o Marx, entre produção, reprodução, opressões e capitalismo. Ela nos convida a olhar para a articulação entre produção e reprodução social a fim de entender qual o local social da reprodução da força de trabalho no capitalismo e este local como pista analítica para pensar as origens das opressões das mulheres.
3) Como pensar a questão da jornada de trabalho para as mulheres, considerando sua dupla (às vezes tripla) jornada?
A jornada de trabalho para o grupo de mulheres, especialmente as mulheres negras no Brasil e as imigrantes em outros países sempre foi mais longa, mais penosa e consideravelmente diferente do padrão masculino. Isso não significa que homens da classe trabalhadora não sejam submetidos às longas jornadas, basta vermos os dados sobre trabalhadores por aplicativo e a intensidade de seus trabalhos. Cabe dizer que a jornada de trabalho exaustiva desse segmento, por exemplo, está tendo grande impacto em suas saúdes e em casos como no aumento de acidentes – fatais ou não – envolvendo motocicletas e com sobrerrepresentação de homens negros. Esse é apenas um exemplo de como a plataformização do trabalho é um dos segmentos que mais concentram as longas jornadas.
Ainda assim, a carga desigual de dedicação ao trabalho da reprodução social, incluindo o trabalho doméstico, de cuidados, emocional, somado ao trabalho da produção social, criam uma realidade em que mulheres sofrem de maneira muito mais penosa a chamada pobreza de tempo. As mulheres ocupadas no Brasil se dedicavam no ano de 2022, em média, 17 horas por semana aos trabalhos relacionados à família, enquanto para o grupo dos homens esse tempo caía para apenas 11 horas. Se a gente desagrega esses números por raça, a situação se mostra mais complexa. No ano de 2019, tínhamos dados de que os homens brancos faziam parte do grupo social que menos se dedicava ao trabalho doméstico, com 10,9 horas semanais, enquanto as mulheres negras são as pessoas que mais estavam sobrecarregadas com esse trabalho e tinham 22 horas semanais comprometidas com a reprodução social.
Isso nos mostra a necessidade de reivindicar e tecer lutas da reprodução social para a socialização desses trabalhos via creches, refeitórios, lavanderias, entre outras formas de cuidados públicos e gratuitos. No entanto, há que se romper também a ideia de que esse é um tipo de trabalho naturalmente feminino. A construção social de que o trabalho da reprodução social é algo do universo feminino, de que mulheres são naturalmente mais aptas, mais propensas, mais dispostas a realizarem esse tipo de trabalho é também um dos grandes obstáculos para a divisão igualitária do trabalho doméstico, seja ele realizado internamente às famílias ou em espaços públicos.
4) Por fim, qual a importância que você vê no atual debate sobre o fim da escala 6×1 e qual sua potencialidade para a classe trabalhadora?
A popularidade da luta pelo fim da escala 6×1, muito bem expressa em Vida Além do Trabalho demonstra que a classe trabalhadora está conseguindo ter um horizonte propositivo de lutas, a despeito da difícil conjuntura que estamos vivenciando. É uma luta pela apropriação do tempo socialmente livre, pela reivindicação de que a produção da vida deve estar no centro de nossas prioridades e não a exploração do trabalho.
Vale estender o debate para a classe trabalhadora brasileira que está na informalidade, que está à margem da proteção social trabalhista e tantos outros setores como os trabalhadores plataformizados – como motoristas e entregadores – que têm jornadas de trabalho de 6, 7 dias por semanas e sem férias. No capitalismo, como pensar o direito ao descanso para todas as pessoas, sem estender a proteção social para todos que trabalham? Nesse sentido, acredito que esse movimento tem um potencial transformador em unificar outras demandas da classe trabalhadora.
Por fim, o movimento VAT é sobretudo uma luta da reprodução social pela apropriação do tempo socialmente livre da classe trabalhadora para a produção da vida e em detrimento da exploração do trabalho. Sendo assim, tal como a Teoria da Reprodução Social analisa, não é estranho que haja uma articulação entre classe, gênero e raça nesse movimento. As mulheres e a população negra são as pessoas que mais estão sobrecarregadas, exaustas pelas longas jornadas somado ao tempo que se gasta nos péssimos transportes públicos do país, adoecidas e sem tempo para estarem com suas famílias e em companhia com quem se ama. Não é uma surpresa o fato de que são essas pessoas que abriram o caminho e que são elas a vanguarda dessa luta, assim como é mais um sinal que nos convida a entender que classe, gênero, raça e identidade nunca estiveram separadas.
Fonte: Esquerda Diário
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Data original de publicação: 17 . 11 . 24