Medidas do governo federal não levam em conta a vida e a saúde dos trabalhadores. Entrevista com Fausto Augusto Junior, do Dieese
Por Igor Natusch | Democracia e Mundo do Trabalho em Debate
O cenário em torno da pandemia do novo coronavírus se desdobra com grande rapidez. Das muitas nações envolvidas na luta contra a disseminação da Covid-19, o Brasil é uma das que vive maior convulsão interna – causada, na maior parte das vezes, pelo exato agente que deveria atuar para evitar esse colapso: o governo federal. Ao mesmo tempo em que insiste em uma postura indefensável, ignorando todos os alertas da ciência em nome de um suposto “isolamento vertical”, o governo do presidente Jair Bolsonaro pressiona trabalhadores e trabalhadoras a colocar suas próprias vidas em risco, pregando o retorno ao trabalho e criando obstáculos para a própria sobrevivência dos que desejam proteger a si próprio e seus familiares.
Uma dessas iniciativas supostamente surgidas para disciplinar o ambiente econômico diante do iminente agravamento da crise, a Medida Provisória 927, dá enormes poderes ao patrões, ao mesmo tempo que expõe a classe trabalhadora ao risco de meses a fio com pouca ou nenhuma garantia de renda ou estabilidade no trabalho. Para falar sobre esse cenário preocupante, o Democracia e Mundo do Trabalho em Debate – DMT conversou com o diretor técnico do Dieese, Fausto Augusto Junior.
Durante a entrevista, ele dissecou aqueles que, na visão da entidade, são os pontos mais problemáticos do que vem sendo proposto pelo Executivo Federal – em especial o artigo 18, que permitia a suspensão dos contratos de trabalho por até quatro meses, com remuneração sendo discutida diretamente entre empregador e funcionários. A hipótese não consta na MP 928, editada em seguida para substituir o texto anterior, mas isso não significa que as ameaças tenham ficado para trás. A entrevista foi concedida ao DMT no último dia 26 de março, de forma que não reflete movimentações políticas e judiciais posteriores a essa data.
Confira abaixo alguns trechos da entrevista
DMT em Debate – A Medida Provisória 927 surgiu de uma forma até certo ponto inesperada, trazendo uma série de medidas que, desde o primeiro tempo, parecem bastante desfavoráveis à classe trabalhadora. Gostaríamos de ouvir a sua visão e a visão do Dieese, sobre quais seriam os pontos mais questionáveis dessa MP.
Fausto Augusto Junior – Agora a gente já está com uma MP alterada, que é a MP 928, que foi alterada no artigo 18. Mas, ao mesmo tempo, esperamos que essa questão (de suspensão de contratos de trabalho) retorne em outra medida provisória – pelo menos é o que está sendo anunciado, que deve retornar em outras bases, mas que será retomada. Então, essa é a primeira questão que está nos deixando bastante preocupados, até no sentido de poder fazer uma análise mais completa.
Mas vamos começar do começo, então. Está cada vez mais claro que essa MP atende exclusivamente ao interesse de um grupo de empresários, que está muito mais preocupado com a economia, e mais especificamente com suas empresas, do que com o conjunto da sociedade brasileira – haja vista o que nós temos ouvido recentemente, e o próprio pronunciamento do presidente (do último dia 24 de março), que ultrapassou os limites do razoável, para não dizer algo mais forte. A MP não parte, em momento algum, do pressuposto de proteger o trabalho ou o trabalhador. Mesmo porque nenhuma das medidas que ali estão previstas propõe qualquer grau de estabilidade ou renda para o trabalhador. Aliás, não é verdade que haveria tido conversas com todas as partes (antes da edição da MP): não houve, as centrais sindicais não foram chamadas para dialogar, somente os empresários foram chamados e, inclusive, a medida vai claramente em encontro aos interesses da classe empresarial e de preocupações que eles já tinham manifestado.
Entrando na medida propriamente dita, a primeira coisa que a gente têm chamado bastante a atenção é que ela reforça a ideia que já estava na origem da reforma trabalhista e que está desde sempre na pauta desse governo, de retirar toda a representação coletiva dos trabalhadores e impor que esses trabalhadores venham, teoricamente, a negociar diretamente com suas empresas. Isso é algo que, nós sabemos, não é tranquilo em nenhuma situação, e que na atual situação é menos tranquilo ainda. Então, quando você retira e permite quase a totalidade de tipos de acordo – estou falando de jornada, de salário, de férias, tudo passando por negociação individual – é muito claro que isso vai fragilizar o trabalhador, porque, afinal de contas, ele não tem muito como dizer não, não é?
DMT – O governo estaria, então, se aproveitando da situação para avançar em uma agenda muito anterior?
Fausto Augusto Junior – O texto se aproveita do caos que está colocado por conta da pandemia e, principalmente, desse medo das empresas de ter que lidar com alguns meses de faturamento muito baixo, em alguns casos faturamento quase nenhum. Ele já chega anunciando a possibilidade de reduzir o salário das pessoas em até 25%, por motivos de força maior – e aí eu nem estou falando de redução de salário com consequente redução de jornada, é redução direta de 25%, porque ele conclama o artigo 503 da CLT que fala de casos de força maior em que você poderia reduzir salários em 25%, e a MP já abre com isso. Depois ele vai passando por uma série de questões, tratando de uma regulamentação absolutamente torta de teletrabalho. E a gente já está assistindo uma série de empresas impondo a seus trabalhadores que disponham em suas residências das condições para exercer o teletrabalho, e que se não tiverem eles têm que ir (ao local de trabalho), mesmo que arriscando sua vida, rompendo o confinamento. E acho que isso é um dado muito grave, porque ali não há nenhuma medida de proteção do trabalhador, seja na questão do teletrabalho, seja na questão de home office, ou um indicativo de como você poderia organizar essas modalidades de uma forma um pouco mais razoável.
Além disso, a MP simplesmente abre a possibilidade de antecipação dos mais diferentes tipos de férias, tanto coletivas quanto individuais – e, no caso das férias individuais, mesmo aquelas que vão vencer. Coloca também a possibilidade de antecipação de feriados… Então, você vai criando uma lógica de organização dos bancos de horas na qual você pode colocar tudo nesse banco e o trabalhador vai ficar devendo. O texto ainda mexe na questão administrativa de segurança em saúde e, especialmente, em algo que nos chama muito a atenção, que é tirar toda a possibilidade dos exames admissionais e demissionais. Deixando claro: nós estamos longe de defender que tenhamos que ocupar médicos com isso agora, ainda mais numa situação dessas. O problema é que essa medida vai junto com o artigo 29, que retira a caracterização de acidente de trabalho e doença profissional do caso da Covid-19, a não ser que você comprove o nexo causal. E como é que você comprova o nexo causal, se você não tem nenhum exame admissional ou os exames anuais que comprovem que você gozava de boa saúde em um determinado momento anterior (ao contágio do coronavírus)? Então, são duas medidas que, quando se juntam, inviabilizam que os trabalhadores, em especial os das atividades essenciais, comprovem que eles pegaram a doença na lógica do provimento da sua atividade, seja indo para o trabalho, seja no próprio trabalho. Ao livrar as empresas da caracterização da Covid-19 como acidente de trabalho, isso tem impacto na estabilidade, porque o trabalhador pode ser simplesmente mandado embora quando retorna; tem impacto na concessão de benefícios previdenciários, porque é muito diferente a concessão de benefício quando de uma doença decorrente do trabalho e quando a doença, alegadamente, não tem essa relação; e no caso mais grave, no caso de morte, um trabalhador da saúde ou de outra área essencial morre em decorrência da Covid-19 e você terá que levar para o Judiciário para convencer de que essa pessoa que morreu tem direito à concessão, em favor de seus familiares, de uma pensão equivalente ao seu salário total e não apenas 60% desse valor, de acordo com as novas determinações da reforma trabalhista. Tudo isso é muito grave.
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Fonte: Democracia e Mundo do Trabalho em Debate
Data original de publicação: 31/03/2020