Mesmo com avanços, trabalho doméstico ainda revela desigualdades de gênero. Entrevista especial com Luana Simões Pinheiro
Por João Vitor Santos | Instituto Humanitas Unisinos
“A pandemia tem se revelado como a gota d’água para derramar o copo sob vários aspectos, e um deles é relacionado ao trabalho doméstico. Com mais pessoas em casa e o lar passando a abrigar também as atividades profissionais, famílias inteiras se revelam estressadas com tantas responsabilidades. Mas esse estresse não vem somente deste momento que temos vivido. “Acredito que a pandemia contribuiu para retirar o véu da invisibilidade que marca o trabalho doméstico (seja ele remunerado ou não)”, observa a socióloga Luana Simões Pinheiro. “De repente, aquele trabalho tido como menos importante e menos valorizado (que nem trabalho é considerado) tornou-se um ‘elefante’ na sala”, acrescenta.
Luana tem se dedicado a pesquisar o tema e classifica o trabalho doméstico em duas categorias: o remunerado e o não remunerado. Em ambos os casos, é sobre as mulheres que recai a maior parte desse trabalho. “Apenas o fato de ser mulher amplia em 14 vezes a chance de realização de trabalho doméstico não remunerado e aumenta a jornada semanal em 13 horas em relação aos homens”, exemplifica, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. E no caso do trabalho doméstico remunerado, essa mulher ainda carrega outros marcadores sociais. “São basicamente mulheres, negras e de baixa renda, juntando em um mesmo corpo (e em uma mesma ocupação) o tripé de desigualdades que nos caracteriza enquanto sociedade: as desigualdades de gênero, raça e classe”, pontua.
A pesquisadora tem uma resposta pronta para quem diz que é preciso reconhecer os avanços no que diz respeito à divisão das tarefas em casa: “não há mudança na estrutura da divisão sexual do trabalho, mas uma adaptação das mulheres à sobrecarga de trabalho, seja via terceirização para o mercado para aquelas que possuem recursos para tanto (creches, serviços de cuidados, restaurantes, trabalhadoras domésticas), seja reduzindo o número de filhos que têm ao longo da vida, seja buscando novas tecnologias que possam auxiliar neste trabalho etc.” E os dados são impressionantes. “Em 2019, as mulheres dedicavam, em média, 22 horas semanais ao trabalho reprodutivo. Já os homens dedicavam, em média, 11 horas por semana”, revela.
Assim, Luana defende a emergência de se quebrarem paradigmas sociais e de se reconhecer a importância do trabalho doméstico. E essa quebra exige ações de mudanças de hábitos individuais, coletivos e mesmo estatais. “É importante não apenas a atuação dos indivíduos (estimulando posturas, comportamentos e valores mais igualitários em relação a gênero), mas é crucial que o Estado assuma sua função na construção de uma sociedade mais igualitária para homens e mulheres”, diz. Ou seja, é, por exemplo, estimular a licença-paternidade estendida para que os homens também se envolvam com as transformações do filho recém-chegado. De outro lado, é fundamental a fiscalização para o cumprimento das recentes conquistas de proteção aos trabalhadores domésticos remunerados.
Luana Simões Pinheiro é doutora e mestre em Sociologia pela Universidade de Brasília – UnB, graduada em Economia pela mesma instituição. É técnica de pesquisa e planejamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea, no Distrito Federal. A pesquisadora faz questão de destacar que sua tese de doutorado, intitulada “O trabalho nosso de cada dia: determinantes do trabalho doméstico de homens e mulheres no Brasil”, foi construída e defendida em meio a licenças-maternidade decorrentes de duas gestações. A defesa da tese, realizada em 2018, se dá em meio a atividades profissionais e aos cuidados de uma criança de cinco e outra de três anos e depois de seis anos do início dos estudos.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que caracteriza o trabalho doméstico no Brasil do século XXI? Quem é o principal agente que desenvolve essas tarefas?
Luana Simões Pinheiro – Em relação ao trabalho doméstico remunerado, este é caracterizado, ainda hoje, por uma extrema precariedade e vulnerabilidade. Não apenas o nível de proteção social é muito baixo (menos de 30% possuem carteira de trabalho assinada), como há uma grande desvalorização social e econômica (as trabalhadoras domésticas ainda ganham menos que um salário mínimo por mês, na média), bem como muitos casos de abuso e assédio moral e/ou sexual, culminando, inclusive, com trabalhadoras em situação análoga à escravidão.
As trabalhadoras domésticas são basicamente mulheres, negras e de baixa renda, juntando em um mesmo corpo (e em uma mesma ocupação) o tripé de desigualdades que nos caracteriza enquanto sociedade: as desigualdades de gênero, raça e classe.
Em relação ao trabalho doméstico não remunerado, este ainda é realizado majoritariamente por mulheres e é possível notar ao longo dos anos uma redução nas desigualdades de gênero no tempo alocado nessas atividades. Essa redução, porém, é fruto exclusivamente do comportamento das próprias mulheres que diminuíram suas jornadas reprodutivas, enquanto os homens permanecem, desde 2001 (primeiro ano para o qual o IBGE captou esta informação), realizando exatamente as mesmas 10/11 horas semanais desse trabalho.
Ou seja, não há mudança na estrutura da divisão sexual do trabalho, mas uma adaptação das mulheres à sobrecarga de trabalho, seja via terceirização para o mercado para aquelas que possuem recursos para tanto (creches, serviços de cuidados, restaurantes, trabalhadoras domésticas), seja reduzindo o número de filhos que têm ao longo da vida, seja buscando novas tecnologias que possam auxiliar neste trabalho etc. É importante, além disso, ter em mente que o trabalho doméstico e de cuidados não remunerado realizado por homens e mulheres é diferente. Enquanto cabem às mulheres os trabalhos mais rotineiros, mais consumidores de tempo e menos discricionários (têm que ser realizados todo dia), cabem aos homens trabalhos mais eventuais, que demandam menos tempo e que podem ser postergados (como trabalhos de reparos ou jardinagem).
IHU On-Line – Quanto tempo o trabalho doméstico não remunerado ocupa no cotidiano das famílias? Em que medida ele sobrecarrega a jornada profissional das mulheres?
Luana Simões Pinheiro – O tempo dedicado ao trabalho doméstico varia enormemente a depender do sexo de quem o realiza. Em 2019, as mulheres dedicavam, em média, 22 horas semanais ao trabalho reprodutivo. Já os homens dedicavam, em média, 11 horas por semana a este conjunto de atividades (dados da Pnad Contínua de 2019). É interessante notar que a jornada reprodutiva masculina pouco varia a depender de outros atributos, como sua idade, sua raça, sua condição de ocupação, a existência de filhos, de pessoas idosas no domicílio etc. Já entre as mulheres, há uma enorme variação nas jornadas: mulheres que trabalham mais horas no mercado de trabalho reduzem de forma muito expressiva sua jornada no domicílio, da mesma forma que mulheres com renda mais alta, uma vez que podem adquirir no mercado bens e serviços que substituem o trabalho doméstico.
A responsabilização feminina pelo trabalho reprodutivo faz com que as mulheres enfrentem uma dupla jornada de trabalho muito intensa. É importante notar que a dupla jornada é, de fato, um conceito que só faz sentido quando olhamos para a composição do tempo total de trabalho (no mercado + em casa) das mulheres. Isso porque a diferença entre o tempo de trabalho de homens e mulheres no mercado não é tão expressiva (cerca de 5 horas), ao passo que as desigualdades de gênero na jornada reprodutiva são muito significativas (mulheres com o dobro da jornada dos homens).
Assim, a jornada total de trabalho das mulheres é composta por duas jornadas igualmente extensas e intensas – uma no mercado de trabalho e outra no domicílio. Enquanto isso, a jornada total de trabalho dos homens é composta basicamente por uma jornada que se dá no mercado de trabalho e que é complementada de forma residual pela jornada no espaço doméstico.
Trabalho doméstico feminino antecede vida profissional
Importante destacar, ainda, que o fato de as mulheres seguirem responsáveis pelo trabalho doméstico impacta a sua trajetória profissional desde antes mesmo que elas consigam entrar no mercado de trabalho. Estudos mostram que a existência de filhos, por exemplo, é um dos maiores empecilhos para a entrada de mulheres no mercado, uma vez que o trabalho de cuidados com crianças (e idosos, doentes ou outras pessoas com dependência) é um elemento que condiciona de forma importante quando e em quais tipos de ocupações estas mulheres podem atuar.
Uma vez ocupadas no mercado, as extensas jornadas reprodutivas ainda levam mulheres a se ocuparem proporcionalmente mais em ocupações de tempo parcial que, obviamente, não são as que remuneram melhor ou as que correspondem a postos de poder e/ou decisão. Além disso, muitas vezes os postos de trabalho de maior prestígio e poder nem são oferecidos às mulheres pela pré-suposição de que elas precisarão se ausentar mais do trabalho, não terão a mesma disponibilidade que os homens para o exercício do posto etc.
Claro que muitas vezes isso pode ser verdade – exatamente porque a divisão sexual do trabalho doméstico não remunerado é desigual e injusta –, mas muitas vezes as mulheres podem ter estratégias que as possibilitem ocupar estas posições e os preconceitos as impedem de alcançá-las.
IHU On-Line – Pelo que nos traz, mesmo as famílias de hoje sendo fruto de novos arranjos, as mulheres ainda são as principais responsáveis pela cozinha, faxina e cuidado com as roupas. Como a senhora compreende essa realidade diante de todas as mudanças pelas quais passou o conceito de família?
Luana Simões Pinheiro – As mulheres continuam sendo as principais responsáveis pelos trabalhos de cuidados com o domicílio e com as pessoas que neles habitam, sejam elas crianças, idosos (cada vez mais frequente por conta do envelhecimento populacional), pessoas com deficiência ou qualquer outro tipo de dependência. É interessante dizer que umas das principais mudanças nos formatos das famílias é a redução no tamanho das famílias ao longo dos últimos anos. Hoje, a nossa taxa de fecundidade já está abaixo da taxa de reposição populacional, o que significa que estamos caminhando em direção ao envelhecimento da nossa sociedade, com cada vez menos jovens e mais idosos.
Uma das principais razões para as mulheres estarem adiando a maternidade e tendo cada vez menos filhos reside justamente nas consequências negativas que a carga do trabalho reprodutivo impõe sobre suas vidas. Não havendo divisão do trabalho reprodutivo entre homens e mulheres no interior das famílias e entre as famílias, o Estado e o mercado, as mulheres seguirão tendo poucos filhos e tendo estes filhos mais tarde. Uma das consequências é que teremos famílias cada vez menores e, portanto, cada vez menos pessoas para cuidarem dos idosos, que são uma parcela cada vez maior da população. Esse descasamento entre redução da oferta de cuidados no interior das famílias e aumento da demanda por cuidados leva a um fenômeno que tem sido chamado na literatura de “crise dos cuidados”.
Chefe de família e serva do lar
Outra mudança importante se refere ao fato de que temos cada vez mais famílias que identificam as mulheres como as principais responsáveis, ou seja, como “chefes” daquele núcleo familiar. No entanto, quando assumem a posição de chefe de famílias, as mulheres tendem a realizar ainda mais horas de trabalho doméstico e de cuidados não remunerado do que quando não são chefes, ao passo que os homens, quando chefes, possuem jornadas reprodutivas menores do que quando não são chefes.
Ou seja, mesmo com a disseminação de valores de gênero mais igualitários ao longo dos últimos anos, com os avanços das mulheres em diferentes campos da vida social, a divisão sexual do trabalho doméstico permanece insistentemente atual e presente nas mais diversas sociedades. Mesmo em sociedades vistas como mais avançadas em termos de igualdade de gênero, como as escandinavas, a desigualdade de gênero nas jornadas reprodutivas é ainda muito expressiva. Para a Suécia, por exemplo, os dados mostram que, em 2000, as mulheres ainda eram responsáveis por mais de 70% do total de trabalho reprodutivo.
IHU On-Line – Muitos analistas dizem que no Brasil de hoje ainda é muito viva a associação entre trabalho doméstico e trabalho escravo. A senhora concorda que essa raiz comum ainda é muito presente?
Luana Simões Pinheiro – O trabalho doméstico remunerado é, como dito anteriormente, baseado em um tripé de desigualdades: de gênero, de raça e de classe. Suas origens e sua formação histórica no Brasil, portanto, remontam, indubitavelmente, ao período de escravidão, no qual a população negra da senzala tinha como uma de suas missões servir aos senhores e senhoras brancos/as da casa grande, inclusive no que diz respeito à realização das tarefas domésticas e de cuidados com pessoas (vale lembrar o papel das amas-de-leite nesse período – também chamadas mães pretas –, as quais eram as escravas que amamentavam os filhos das mulheres brancas que não podiam/queriam fazê-lo).
Na atualidade, é importante notar que, enquanto as trabalhadoras domésticas são predominantemente negras, as famílias que as contratam são predominantemente brancas, pois são aquelas famílias que possuem recursos suficientes para, do seu próprio salário, conseguir remunerar uma outra pessoa. A desigualdade de renda é um pressuposto do trabalho doméstico, afinal é um salário que remunera outro salário. Ademais, as trabalhadoras domésticas seguem submetidas a condições indignas de trabalho, com muita desproteção social, abuso e assédio moral e sexual culminando com a realidade ainda presente de trabalhadoras domésticas que trabalham em condições análogas à escravidão.
Enquanto as desigualdades raciais forem parte da estrutura de desigualdades e conformação da sociedade brasileira, as trabalhadoras domésticas seguirão, em boa medida, submetidas a situações de grande vulnerabilidade e precariedade na ocupação. (…)”
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Fonte: IHU On-line
Data original da publicação: 04/11/2020