MP 1045: trabalhadores sem direitos trabalhistas e previdenciários
Por Cassio Casagrande | JOTA
“Em 28 de abril do corrente ano, o poder executivo editou a Medida Provisória 1045, que tinha como objeto instituir “Novo Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda”. Tratava-se, na verdade, de mera extensão das medidas adotadas anteriormente pelo governo federal para enfrentamento dos problemas econômicos da pandemia. Além da prorrogação do auxílio emergencial, a MP mantinha o permissivo para suspensão do contrato de trabalho e redução de jornada e salário. A Medida Provisória não trazia, a rigor, nenhuma novidade e se resumia a meros 25 artigos.
Na semana passada, a Câmara dos Deputados aprovou a Medida Provisória em questão, mas os parlamentares, com a mão nada discreta do poder executivo, obraram um verdadeiro milagre: a Medida Provisória, editada originalmente apenas para chover no molhado, foi convertida em um monstrengo de 93 artigos que, a pretexto de criar “novos programas” de fomento ao emprego, simplesmente introduz ampla Reforma Trabalhista de consequências funestas para a classe trabalhadora, retirando-lhe direitos constitucionalmente assegurados. Permite, ainda, a contratação de servidores públicos temporários sem concurso e sem vínculo algum com a administração pública (e, claro, sem direitos a não ser um salário-esmola de cinco reais a hora).
A iniciativa chama a atenção pela evidente má-fé do poder executivo e dos legisladores de sua base de sustentação, os quais, em harmônica combinação e aproveitando-se da cortina de fumaça dos tanques depreciados da Marinha, patrocinaram com este ato uma das maiores e mais vis “picaretagens constitucionais” do governo Bolsonaro.
Observe-se, inicialmente, que os “aditamentos” ao texto original da Medida Provisória 1045, que criam regimes de trabalho “sem direitos” tanto na iniciativa privada (Regime de Qualificação Profissional), como na administração pública (Programa Nacional de Prestação de Serviço Social Voluntário), foram engendrados nos gabinetes dos Ministros Paulo Guedes e Onyx Lorenzoni, conforme reportagem da Folha de São Paulo.
E aqui já percebemos a primeira “catimba constitucional”: se o governo federal pretendia apresentar tais “projetos”, por que não o fez desde o início, quando encaminhou a Medida Provisória ao Congresso? Agindo de forma subreptícia, aguardou a tramitação de uma MP sobre a qual havia razoável consenso, para, na reta final dos debates, inserir, através de suas lideranças parlamentares, “jabutis” que não tinham nenhuma relação com o propósito inicial da norma. Essa prática abusiva e antidemocrática de colocar o quelônio na árvore, lembre-se, já foi declarada inconstitucional pelo STF, na ADI 5127.
Esses jabutis da MP 1045 trazem impactos enormes para o sistema jurídico de relações de trabalho no Brasil, pois criam uma nova modalidade de contrato de trabalho na qual o empregado não terá carteira de trabalho registrada e o empregador simplesmente não contribuirá para a seguridade social, para o FGTS e para o seguro desemprego!
O trabalhador ficará descoberto, pois somente estará protegido pelo INSS se contribuir como “autônomo” (o que evidentemente não fará, já que esse regime é de no máximo 22 horas semanais, com “salário” de 550 reais).
Há, ainda, outros dispositivos totalmente fora da órbita da redação inicial da Medida Provisória, como os que extinguem jornadas de trabalho reduzidas de certas categorias profissionais específicas ou dificultam, ainda mais, o acesso de trabalhadores à Justiça do Trabalho.
O ministro Paulo Guedes, é sabido, tem uma ideia fixa: abolir os direitos trabalhistas previstos no art. 7º. da Constituição. Desde o começo do governo Bolsonaro, ele vem tentando implantar sua “grande ideia”, que apelidou de “carteira verde amarela”: um trabalhador de segunda categoria, que receberia apenas a “hora trabalhada” e nada mais. Diz ainda que esse modelo seria “como nos Estados Unidos”. E, ainda acredita que, com essa fórmula mágica, “milhões de empregos” seriam criados.
Já mostrei em outro artigo a falsidade da premissa de Paulo Guedes, de que nos EUA o trabalhador somente recebe a hora trabalhada. A ignorância, no particular, é tamanha, que o Ministro desconhece que nos EUA o empregador faz recolhimentos para a previdência social, seguro-desemprego e receita federal. Não vou aqui perder tempo com isso, portanto.
O que realmente espanta é que, decorridos quase três anos de sua nomeação, o Ministro Guedes não se deu ao trabalho de estudar ou de ouvir uma assessoria jurídica sobre o sistema constitucional de relações de trabalho no Brasil. Qualquer cidadão tem o direito de odiar o art. 7º. da Constituição, mas o fato é que ele não pode ser revogado, suspenso ou substituído por uma lei ordinária, como está acontecendo com a tramitação da MP 1045.
E, para os mais ortodoxos em matéria constitucional, como eu, sequer poderia aquele rol de direitos sociais ser suprimido por Emenda à Constituição, pois integra a categoria de “direitos fundamentais” para além do artigo 5º, sendo, por tal motivo, insuscetível de reforma, já que protegido pela cláusula pétrea de intangibilidade.
A ideia de que seria possível criar um regime de trabalho “paralelo”, “sem direitos”, não se coaduna sequer com o princípio da “equal protection of the laws” que é subjacente ao caput do art. 7º, o qual precisa ser interpretado historicamente, já que pôs fim às várias distinções laborais que eram fixadas, até 1988, nas leis ordinárias.
Todo o texto que trata dos direitos sociais demonstra a preocupação do constituinte em equiparar trabalhadores urbanos e rurais, trabalhadores manuais e intelectuais, trabalhadores homens e mulheres, trabalhadores regulares e avulsos. Até mesmo a exceção dos trabalhadores domésticos que havia sido mantida em um dispositivo do daquele artigo – e que não se coadunava com o referido princípio constitucional de igual tratamento – foi oportunamente “corrigida” pelo constituinte derivado, quando da aprovação da EC 73/2013, que pôs fim àquela odiosa discriminação.
Igualmente inconstitucional e estrambótica é a criação do chamado “Programa Nacional de Prestação de Serviço Social Voluntário”, concebido pelo gênio do Ministro Lorenzoni, o qual permite que prefeituras possam contratar temporariamente pessoas entre 18 e 29 anos ou com mais de 50 anos, para qualquer serviço, pagando, como compensação, remuneração equivalente ao salário mínimo hora (aproximadamente cinco reais).
A inconstitucionalidade deste programa é evidente, pois viola inúmeros dispositivos do art. 37 da Constituição, desde o que obriga o concurso público aos que estabelecem direitos dos servidores, já que esses “voluntários”, tal qual os trabalhadores do “Requip”, poderiam ser contratados sem qualquer proteção a seus direitos sociais constitucionais, inclusive previdenciários. Um projeto que, além de afrontar aqueles dispositivos, viola o princípio da impessoalidade na administração pública, pois serve como uma luva, no ano eleitoral que se avizinha, para o recrutamento de um exército de cabos eleitorais.
Esperemos que o Senado Federal, ao apreciar o frankenstein legislativo em que se transformou a MP 1045, ponha fim a essa mais nova picaretagem constitucional do governo Bolsonaro. Caso não o fizer, restará confiarmos no STF. Mas se esse também falhar, será impossível continuar afirmando que “as instituições estão funcionando”.
CÁSSIO CASAGRANDE – Doutor em Ciência Política, Professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense – UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.”
Fonte: JOTA
Data original da publicação: 16/08/2021