Não reconhecer vínculo entre trabalhadores e plataformas põe o Brasil na contramão do mundo
Por Renan Kalil | Carta Capital
Nos últimos cinco anos, o Direito do Trabalho foi alvo de diversas iniciativas para rebaixar os parâmetros de proteção legal dos trabalhadores no Brasil. O maior exemplo é a reforma trabalhista de 2017, aprovada prometendo aumentar empregos com a redução de direitos. Quatro anos depois, ficamos somente com a precarização das condições de trabalho.
No fim de novembro, o chamado “Grupo de Altos Estudos Trabalhistas” (GAET), criado em 2019 pelo governo federal, divulgou novas propostas de mudança da legislação. Uma delas consiste em afastar a possibilidade de identificar a existência da relação de emprego entre trabalhador e plataforma digital.
Ao justificar a proposta, argumenta-se que o reconhecimento de vínculo empregatício colocaria em risco a viabilidade do negócio das plataformas digitais e que a definição em lei da inexistência da relação de emprego reduziria a insegurança jurídica.
Contudo, as premissas dessa proposta são equivocadas.
Primeiramente, a grande maioria das empresas que se beneficiam das atividades dos trabalhadores via plataformas digitais atua no mercado como todas as demais que adotam outras formas de contratar e gerenciar o trabalho. Prever uma exceção para as plataformas digitais cria uma desigualdade no ponto de partida dos negócios sem que haja uma justificativa plausível para tanto. Não há motivos para tratá-las como um elemento compartimentalizado dos demais aspectos da vida socioeconômica.
Em segundo lugar, deve-se mencionar que não há qualquer subsídio, seja na proposta apresentada pelo GAET, seja em estudos científicos, que permita sustentar a afirmação de que garantir direitos aos trabalhadores a partir do reconhecimento do vínculo empregatício colocaria em risco a viabilidade desse tipo de negócio. Inúmeros empreendimentos são iniciados no Brasil diariamente gerando empregos a partir do respeito às regras vigentes do Direito do Trabalho. Muitos deles com menos estrutura e com menos investimentos que as plataformas digitais. Ainda, o reconhecimento de direitos por meio de decisões judiciais, como ocorreu no Reino Unido e na Espanha, não inviabilizou a atividade das plataformas digitais nesses países.
Em terceiro lugar, o trabalho via plataformas digitais é encontrado em diferentes setores e sob distintas formas que as atividades desempenhadas por motoristas e entregadores. Existem trabalhadores que atuam no setor da educação, trabalho doméstico, cuidados de pessoas em domicílio. Ainda, há trabalhadores que executam atividades em plataformas de crowdwork, que é uma espécie de terceirização online. Afastar qualquer espécie de proteção jurídica com base em alguns casos que chegaram ao Poder Judiciário é condenar um grande número de pessoas ao trabalho sem direitos desconsiderando a diversidade do trabalho via plataformas digitais.
Em quarto lugar, reduzir o debate sobre a proteção jurídica dos trabalhadores a uma falsa dicotomia entre desemprego e um trabalho sem direitos desconsidera a razão de ser do Direito do Trabalho, que é a de assegurar a dignidade inerente a todo o ser humano. Permitir que uma pessoa trabalhe sem quaisquer direitos somente para que ela não fique desempregada acaba transformando-a em coisa e mercadoria, o que jamais deve ser admitido.
Em quinto lugar, há diversos estudos científicos que identificaram várias formas de controle dos trabalhadores que permitem a caracterização do vínculo empregatício, especialmente por meio de gerenciamento algorítmico (como o uso do algoritmo para distribuir atividades, fixar o valor do trabalho, indicar o tempo para realização de tarefas, estabelecer a duração de pausas, avaliar os trabalhadores, aplicar sanções, dentre outras).
Diante disso, o parágrafo único do art. 6º da CLT, introduzido por meio da Lei n. 12.551/2011, ao prever que “os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio” soluciona diversos questionamentos jurídicos que possam surgir e permite a aplicação da legislação trabalhista em vigor.
Em sexto lugar, negar a priori a caracterização da relação de emprego entre trabalhadores e plataformas digitais, sem que sequer permitir examinar o conteúdo real dessa relação jurídica, ignora um dos princípios fundantes do Direito do Trabalho, que é o da primazia da realidade. Esse princípio está consagrado expressamente na Recomendação n. 198 da OIT.
Finalmente, afastar a possibilidade de reconhecer o vínculo empregatício entre trabalhadores e plataformas digitais coloca o Brasil na contramão do mundo. Tribunais decidiram pela aplicação da legislação trabalhista às relações entre motoristas e entregadores e plataformas digitais nos Estados Unidos (na Califórnia), Reino Unido, Espanha, França, Uruguai, Holanda, Itália e Chile. Ainda, há países criando leis para assegurar direitos trabalhistas para entregadores, como a Espanha.
Portanto, a proposta do GAET de negar o vínculo empregatício aos trabalhadores via plataformas digitais aprofunda a precarização de suas condições de trabalho, desconsidera os princípios basilares do Direito do Trabalho e ignora o estágio do debate sobre esse tema ao redor do mundo. Ou seja, é um retrocesso.
Clique aqui e leia a matéria completa
Fonte: Carta Capital
Data original de publicação: 29/12/2021