Neoliberalismo e Direito: austeridade e resistência
Um efeito colateral de tais medidas é o contínuo desalento das populações – em especial as mais pobres – com a democracia.
Por Nasser Ahmad Allan
A última corrida eleitoral à presidência da República não foi suficiente a obrigar o candidato vencedor a apresentar seu plano de governo para o país. Num cenário marcado pela ausência de debates, com o deslocamento da campanha efetiva para as redes sociais, criou-se ambiente propício para proliferação de mentiras, destilar de ódios e preconceitos e, assim, possibilitando a vitória de quem pouco tinha a dizer.
Decorridos mais de quatro meses de mandato, não deve causar surpresa a atual escassez de ideias do grupo governante para enfrentar os problemas do Brasil. Pouco se fez. Nesse sentido, não se constata a adoção de medidas pela equipe econômica do Governo Federal para combater os elevados índices de desemprego e de subempregoencontrados na população economicamente ativa.
A reforma trabalhista, difundida pelos ideólogos da desregulação do trabalho como medida essencial para gerar emprego a curto prazo e assim alavancar a economia, não entregou o prometido. Ao contrário, de novembro de 2017, quando entrou em vigor, até o momento, o desemprego cresceu.
Apesar da importância da temática para o país, o presidente da República tem evitado manifestar-se publicamente sobre ela. Quando indagado a esse respeito, repetidamente, atribuiu a responsabilidade por respostas e soluções ao ministro da economia, Paulo Guedes. A condução da pauta econômica, com carta branca, por alguém reconhecidamente do mercado financeiro, ex-banqueiro, com doutorado em economia pela Universidade de Chicago, parametriza claramente o alinhamento político-ideológico do atual governo às políticas neoliberais de austeridade.
Dentre outras coisas, isso quer significar a concepção de a solução para o déficit fiscal do Estado repousar no corte de despesas estatais com direitos sociais das camadas mais pobres da sociedade, mantendo-se o mantra de ser inviável majorar a tributação sobre os ricos, como forma de aumentar a arrecadação.
De igual modo, a racionalidade neoliberal pressupõe um mercado livre e autorregulamentado, onde as interferências do Estado são tomadas como indevidas, constituindo amarras ao desenvolvimento econômico. Nesse ambiente, não haveria espaço para existência de direitos a disciplinar a livre movimentação do capital ou a livre concorrência, tanto nas relações comerciais entre capitalistas quanto nas relações de compra e venda da força de trabalho.
Outra premissa importante da racionalidade neoliberal reside na compreensão de existirem contemporaneamente poucos espaços para crescimento econômico nas relações comerciais privadas. Assim, para proporcionar um ambiente propício para o desenvolvimento do capitalismo seria fundamental o avanço do capital privado sobre o Estado, com a privatização de empresas estatais e a concessão de serviços públicos.
A contextualização das poucas medidas tomadas pela equipe econômica do Governo Federal, aliadas às suas declarações públicas, permite conformar seu alinhamento com as políticas neoliberais de austeridade.
Sem necessidade de atacar o sistema de regulação do trabalho no país, iniciativa já adotada pelo governo anterior, não foi por acaso, a reforma da previdência social a primeira grande medida apresentada pela atual gestão, com a nítida pretensão de reduzir custos estatais com aposentadorias, benefícios e assistência social, buscando abrir espaços para grandes bancos e seguradoras ocuparem com seus produtos.
No mundo há vários países onde essas políticas foram implantadas nas últimas décadas, com resultados nada animadores, pois, com o passar do tempo, constatou-se intensificação de desigualdade econômica e social, desacompanhada do prometido crescimento econômico.
Um efeito colateral de tais medidas é o contínuo desalento das populações – em especial as mais pobres – com a democracia, constatado por pesquisas de opinião pública e pela diminuição da participação popular em eleições.
Num ambiente de incremento da pobreza e da desigualdade social e econômica, de desesperança com o futuro, a manutenção desse modelo somente se mostrou possível com o endurecimento de mecanismos estatais de repressão, isto é, através do Direito Penal, e com o enfraquecimento de instrumentos, instituições ou movimentos que pudessem opor resistência.
Ao focar-se novamente ao plano interno, parece útil recordar a histórica resistência do capital nacional ao Direito do Trabalho, compreendido como interferência indevida do Estado nas relações sociais de produção. Nesse ponto, podem ser incluídos, justa ou injustamente, a Justiça do Trabalho, o já extinto Ministério do Trabalho, o Ministério Público do Trabalho e, principalmente, as organizações sindicais.
O processo de enfraquecimento das entidades sindicais representativas da classe trabalhadora teve início com a malfadada reforma trabalhista visando atacá-las a partir de suas finanças. Desde a vigência da lei, muitos sindicatos foram compelidos a reduzir o quadro de seus empregados, tendo de se adaptar à abrupta queda na arrecadação. Acabaram perdendo força, capacidade de organização e de luta.
Com a perspectiva de dificultar ainda mais a permanência dos sindicatos, com vistas a desestruturar os focos de resistência à reforma da previdência e ao vindouro processo de privatizações, o governo editou a Medida Provisória 873, visando impedir o desconto em folha de pagamento, mesmo quando autorizado pelo(a) trabalhador(a), de mensalidade, contribuição sindical, contribuição confederativa e taxa negocial/assistencial.
Sem possuir relevância ou urgência e violando convenções da Organização Internacional do Trabalho, portanto, acometidas de inconstitucionalidade e inconvencionalidade, as disposições da MP 873 têm por função eliminar a capacidade de resistência das organizações sindicais às políticas estatais de austeridade, mas também, enfraquecê-las diante do lado antagônico, criando uma disparidade ainda maior na correlação de forças entre capital e trabalho.
Como se trata de medida provisória, ela já vem produzindo efeitos, independentemente de ser convertida em lei, o que motivou muitos sindicatos ao ajuizamento de ações judiciais para garantia da sua sobrevivência imediata.
Pode parecer irônico, mas, nesse caso, caberá a – ameaçada de extinção – Justiça do Trabalho julgar estas ações e, assim, definir o futuro das organizações sindicais no Brasil e, de certo modo, decidir como será a resistência ao neoliberalismo no país.
Fonte: Carta Capital
Data original de publicação: 09/05/2019